Psiquiatria e sociedade

Opinião|Argumentos no liquidificador


Aberta a temporada de caça às falácias.

Por Daniel Martins de Barros
fonte:Estadão Acervo Foto: Estadão

Alguém com mais tempo deveria começar a fazer uma análise sistemática do discurso dos políticos. Esse povo é talentoso com as palavras, então nem sempre fica claro que, muitas vezes, as palavras bem articuladas só servem para esconder o contorcionismo verbal utilizado para justificar ideias nem sempre sustentáveis. Eles abusam das falácias, aqueles argumentos que aparentam ser sólidos mas que, quando são analisados, mostram grandes falhas.

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Embora falte-me tempo para esmiuçar o noticiário, algumas falácias recentes saltaram-me aos olhos. O mérito não é meu, elas foram tão óbvias que viraram meme. Mas vale a pena aproveitar o gancho para refletir um pouco sobre como argumentos podem induzir ao erro quando são mal construídos - de propósito ou não.

Ao defender a flexibilização da posse de arma, o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni argumentou contra o aumento do risco de acidentes: "Criei quatro filhos com arma dentro de casa e meus filhos nunca foram lá porque eu ensinei para eles o que significava. A gente vê criança pequena botar o dedo dentro do liquidificador e ligar o liquidificador e perder o dedinho. Aí vamos proibir o liquidificador? Não".

Resistindo à tentação de apelar para a tiração de sarro quero apontar duas falácias nessa única fala.

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Ele começa com um recurso muito comum na linguagem do dia-a-dia, presente nos mais variados bate-papos entre amigos. Apresenta-se um fato isolado e tenta-se, a partir desse evento único, concluir algo que se aplique à realidade ampla. Essa falácia é conhecida como Generalização precipitada, porque seu mecanismo é exatamente tentar generalizar uma regra, uma verdade, de forma muito rápida, sem investigação aprofundada dos dados. Quem nunca ouviu algo como "Essa história de cigarro causar câncer é balela. Meus pais contam que meus quatro avós fumaram a vida toda e não tiveram câncer. ". Por isso essa falácia é também chamada de Evidência anedótica, pois sua base não passa de causos, não há evidência formal. No que se refere às armas, por exemplo, os trabalhos epidemiológicos estão cansados de mostrar que a presença de arma em casa eleva em muito o risco de acidentes, homicídios e suicídios. E que cada vez que uma arma dispara a chance de um bandido morrer é centenas de vezes menor do que alguém da família. As evidências formais, não anedóticas, apontam para o lado oposto ao do argumento de Lorenzoni.

A segunda falácia presente na argumentação dele é a Falsa analogia. A analogia é uma forma legítima de argumentar, quando se comparam duas coisas que, embora sejam diferentes, têm semelhanças que sustentam um ponto. Dizer, por exemplo, que uma cidade é como um organismo vivo ou que namorar é como um jogo. Coisas diferentes têm pontos em comum que ilustram o que se quer enfatizar (o dinamismo da cidade, as reviravoltas dos relacionamentos). Mas a falsa analogia ocorre quando se pesa a mão nessa aproximação, extrapolando-se uma semelhança para variáveis que não podem ser comparadas. Foi o que fez Lorenzoni: acidentes domésticos acontecem; há acidentes com liquidificadores e também com arma de fogo. Ambos são eventos indesejáveis que devem ser evitados pelo cuidado paterno. Mas a analogia acaba aí, pois eles são tão diferentes em termos de gravidade, risco de morte, incidência, e até mesmo em termos de utilidade e representação social e psicológica dos objetos, que - para o ponto que ele queria ilustrar - não podem ser comparados.

As falácias são cotidianas entre políticos, não são exclusividade do governo atual. (Eu mesmo apontei que Dilma se utilizara de uma falácia chamada de Equívoco ao criticar a delação premiada - confira). Mas nenhuma ponta do espectro político ignora que os tempos vindouros indicam a proliferação de falas superficiais, argumentos rasos, indiferença à verdade, desprezo por evidências. Acho que nunca terá sido tão fácil pescar falácias. Nem tão importante.

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Leitura mental

 Foto: Estadão
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O lançamento não é tão recente, nem eu gosto de ficar fazendo jabá, mas o gancho impõe a indicação de meu livro-caixinha, Exercícios de argumentação - 50 cartas para melhorar o embasamento de suas ideias (Editora Matrix, 2018). Trata-se de uma obra num formato pouco usual, já que o livro vem numa pequena caixa e suas páginas são independentes, como num jogo de cartas. Em cada uma está identificada uma falácia, como as três citadas no texto acima, com exemplos, uma explicação de como desmascará-las e um exercício para o leitor tentar criar seus próprios argumentos. Das conversas em família aos debates nas redes sociais, conhecer melhor as falácias é fundamental para quem quer identificá-las na fala dos outros e, mais importante, em sua própria argumentação.

fonte:Estadão Acervo Foto: Estadão

Alguém com mais tempo deveria começar a fazer uma análise sistemática do discurso dos políticos. Esse povo é talentoso com as palavras, então nem sempre fica claro que, muitas vezes, as palavras bem articuladas só servem para esconder o contorcionismo verbal utilizado para justificar ideias nem sempre sustentáveis. Eles abusam das falácias, aqueles argumentos que aparentam ser sólidos mas que, quando são analisados, mostram grandes falhas.

Embora falte-me tempo para esmiuçar o noticiário, algumas falácias recentes saltaram-me aos olhos. O mérito não é meu, elas foram tão óbvias que viraram meme. Mas vale a pena aproveitar o gancho para refletir um pouco sobre como argumentos podem induzir ao erro quando são mal construídos - de propósito ou não.

Ao defender a flexibilização da posse de arma, o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni argumentou contra o aumento do risco de acidentes: "Criei quatro filhos com arma dentro de casa e meus filhos nunca foram lá porque eu ensinei para eles o que significava. A gente vê criança pequena botar o dedo dentro do liquidificador e ligar o liquidificador e perder o dedinho. Aí vamos proibir o liquidificador? Não".

Resistindo à tentação de apelar para a tiração de sarro quero apontar duas falácias nessa única fala.

Ele começa com um recurso muito comum na linguagem do dia-a-dia, presente nos mais variados bate-papos entre amigos. Apresenta-se um fato isolado e tenta-se, a partir desse evento único, concluir algo que se aplique à realidade ampla. Essa falácia é conhecida como Generalização precipitada, porque seu mecanismo é exatamente tentar generalizar uma regra, uma verdade, de forma muito rápida, sem investigação aprofundada dos dados. Quem nunca ouviu algo como "Essa história de cigarro causar câncer é balela. Meus pais contam que meus quatro avós fumaram a vida toda e não tiveram câncer. ". Por isso essa falácia é também chamada de Evidência anedótica, pois sua base não passa de causos, não há evidência formal. No que se refere às armas, por exemplo, os trabalhos epidemiológicos estão cansados de mostrar que a presença de arma em casa eleva em muito o risco de acidentes, homicídios e suicídios. E que cada vez que uma arma dispara a chance de um bandido morrer é centenas de vezes menor do que alguém da família. As evidências formais, não anedóticas, apontam para o lado oposto ao do argumento de Lorenzoni.

A segunda falácia presente na argumentação dele é a Falsa analogia. A analogia é uma forma legítima de argumentar, quando se comparam duas coisas que, embora sejam diferentes, têm semelhanças que sustentam um ponto. Dizer, por exemplo, que uma cidade é como um organismo vivo ou que namorar é como um jogo. Coisas diferentes têm pontos em comum que ilustram o que se quer enfatizar (o dinamismo da cidade, as reviravoltas dos relacionamentos). Mas a falsa analogia ocorre quando se pesa a mão nessa aproximação, extrapolando-se uma semelhança para variáveis que não podem ser comparadas. Foi o que fez Lorenzoni: acidentes domésticos acontecem; há acidentes com liquidificadores e também com arma de fogo. Ambos são eventos indesejáveis que devem ser evitados pelo cuidado paterno. Mas a analogia acaba aí, pois eles são tão diferentes em termos de gravidade, risco de morte, incidência, e até mesmo em termos de utilidade e representação social e psicológica dos objetos, que - para o ponto que ele queria ilustrar - não podem ser comparados.

As falácias são cotidianas entre políticos, não são exclusividade do governo atual. (Eu mesmo apontei que Dilma se utilizara de uma falácia chamada de Equívoco ao criticar a delação premiada - confira). Mas nenhuma ponta do espectro político ignora que os tempos vindouros indicam a proliferação de falas superficiais, argumentos rasos, indiferença à verdade, desprezo por evidências. Acho que nunca terá sido tão fácil pescar falácias. Nem tão importante.

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Leitura mental

 Foto: Estadão

O lançamento não é tão recente, nem eu gosto de ficar fazendo jabá, mas o gancho impõe a indicação de meu livro-caixinha, Exercícios de argumentação - 50 cartas para melhorar o embasamento de suas ideias (Editora Matrix, 2018). Trata-se de uma obra num formato pouco usual, já que o livro vem numa pequena caixa e suas páginas são independentes, como num jogo de cartas. Em cada uma está identificada uma falácia, como as três citadas no texto acima, com exemplos, uma explicação de como desmascará-las e um exercício para o leitor tentar criar seus próprios argumentos. Das conversas em família aos debates nas redes sociais, conhecer melhor as falácias é fundamental para quem quer identificá-las na fala dos outros e, mais importante, em sua própria argumentação.

fonte:Estadão Acervo Foto: Estadão

Alguém com mais tempo deveria começar a fazer uma análise sistemática do discurso dos políticos. Esse povo é talentoso com as palavras, então nem sempre fica claro que, muitas vezes, as palavras bem articuladas só servem para esconder o contorcionismo verbal utilizado para justificar ideias nem sempre sustentáveis. Eles abusam das falácias, aqueles argumentos que aparentam ser sólidos mas que, quando são analisados, mostram grandes falhas.

Embora falte-me tempo para esmiuçar o noticiário, algumas falácias recentes saltaram-me aos olhos. O mérito não é meu, elas foram tão óbvias que viraram meme. Mas vale a pena aproveitar o gancho para refletir um pouco sobre como argumentos podem induzir ao erro quando são mal construídos - de propósito ou não.

Ao defender a flexibilização da posse de arma, o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni argumentou contra o aumento do risco de acidentes: "Criei quatro filhos com arma dentro de casa e meus filhos nunca foram lá porque eu ensinei para eles o que significava. A gente vê criança pequena botar o dedo dentro do liquidificador e ligar o liquidificador e perder o dedinho. Aí vamos proibir o liquidificador? Não".

Resistindo à tentação de apelar para a tiração de sarro quero apontar duas falácias nessa única fala.

Ele começa com um recurso muito comum na linguagem do dia-a-dia, presente nos mais variados bate-papos entre amigos. Apresenta-se um fato isolado e tenta-se, a partir desse evento único, concluir algo que se aplique à realidade ampla. Essa falácia é conhecida como Generalização precipitada, porque seu mecanismo é exatamente tentar generalizar uma regra, uma verdade, de forma muito rápida, sem investigação aprofundada dos dados. Quem nunca ouviu algo como "Essa história de cigarro causar câncer é balela. Meus pais contam que meus quatro avós fumaram a vida toda e não tiveram câncer. ". Por isso essa falácia é também chamada de Evidência anedótica, pois sua base não passa de causos, não há evidência formal. No que se refere às armas, por exemplo, os trabalhos epidemiológicos estão cansados de mostrar que a presença de arma em casa eleva em muito o risco de acidentes, homicídios e suicídios. E que cada vez que uma arma dispara a chance de um bandido morrer é centenas de vezes menor do que alguém da família. As evidências formais, não anedóticas, apontam para o lado oposto ao do argumento de Lorenzoni.

A segunda falácia presente na argumentação dele é a Falsa analogia. A analogia é uma forma legítima de argumentar, quando se comparam duas coisas que, embora sejam diferentes, têm semelhanças que sustentam um ponto. Dizer, por exemplo, que uma cidade é como um organismo vivo ou que namorar é como um jogo. Coisas diferentes têm pontos em comum que ilustram o que se quer enfatizar (o dinamismo da cidade, as reviravoltas dos relacionamentos). Mas a falsa analogia ocorre quando se pesa a mão nessa aproximação, extrapolando-se uma semelhança para variáveis que não podem ser comparadas. Foi o que fez Lorenzoni: acidentes domésticos acontecem; há acidentes com liquidificadores e também com arma de fogo. Ambos são eventos indesejáveis que devem ser evitados pelo cuidado paterno. Mas a analogia acaba aí, pois eles são tão diferentes em termos de gravidade, risco de morte, incidência, e até mesmo em termos de utilidade e representação social e psicológica dos objetos, que - para o ponto que ele queria ilustrar - não podem ser comparados.

As falácias são cotidianas entre políticos, não são exclusividade do governo atual. (Eu mesmo apontei que Dilma se utilizara de uma falácia chamada de Equívoco ao criticar a delação premiada - confira). Mas nenhuma ponta do espectro político ignora que os tempos vindouros indicam a proliferação de falas superficiais, argumentos rasos, indiferença à verdade, desprezo por evidências. Acho que nunca terá sido tão fácil pescar falácias. Nem tão importante.

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Leitura mental

 Foto: Estadão

O lançamento não é tão recente, nem eu gosto de ficar fazendo jabá, mas o gancho impõe a indicação de meu livro-caixinha, Exercícios de argumentação - 50 cartas para melhorar o embasamento de suas ideias (Editora Matrix, 2018). Trata-se de uma obra num formato pouco usual, já que o livro vem numa pequena caixa e suas páginas são independentes, como num jogo de cartas. Em cada uma está identificada uma falácia, como as três citadas no texto acima, com exemplos, uma explicação de como desmascará-las e um exercício para o leitor tentar criar seus próprios argumentos. Das conversas em família aos debates nas redes sociais, conhecer melhor as falácias é fundamental para quem quer identificá-las na fala dos outros e, mais importante, em sua própria argumentação.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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