Diante de fatos estarrecedores que marcaram a última semana como o massacre em uma boate gay, nos EUA, e a agressão à equipe da Band, vítima de racismo e machismo, o blog ouviu diferentes especialistas para debater o tema
Nós, do blog Família Plural, tratamos sobre a diversidade e o respeito a ela. Aliás, esse foi um projeto pensado, entre outras razões, também para fazer frente às manifestações de intolerância de todas as espécies que vemos por aí - só para se ter uma ideia, estima-se que um homossexual é morto de forma violenta a cada 28 horas no Brasil. Essas ações são cotidianas, infelizmente. Mas fatos recentes e estarrecedores como o ataque à boate gay, em Orlando, nos EUA, e as denúncias de agressão a um casal gay no Centro de Tradições Nordestinas (CTN), em São Paulo, e à equipe da TV Bandeirantes, vítima de racismo e machismo por torcedores alemães durante cobertura da Eurocopa, na França, fizeram com que quiséssemos debater mais diretamente o tema, que está na ordem do dia da sociedade moderna e mundial.
Gay e negro, o cinegrafista brasileiro Fernando Henrique, de 33 anos, que mora em Paris, foi um dos membros da equipe da Band agredidos, ao lado da correspondente Sonia Blota, na última quinta-feira, 16. Ele, porque é negro, e ela, porque é mulher. Ele levou um tapa no rosto, e ela, um chute na perna. Ouviram ainda "Fora daqui, negros!". "Estávamos na Gare du Nord, estação de trem ao norte de Paris. Fazíamos uma reportagem para a TV Bandeirantes sobre o jogo da Alemanha com a Polônia, rivais históricos. Na frente da estação, entrevistamos torcedores dos dois times e passamos por um grupo de torcedores alemães e escutamos algo do tipo: 'saiam daqui'. Nesse momento, entrevistávamos um homem e então começamos a caminhar no sentido contrário quando o grupo veio em nossa direção. Eles eram por volta de 50 pessoas, três deles começaram a nos hostilizar. Um deles tinha um pedaço de pau", relata Fernando, em entrevista ao blog. Depois de serem agredidos, eles conseguiram escapar e fizeram boletim de ocorrência na polícia, que, segundo o brasileiro, tratou o caso "como sendo mais um acontecido entre tantos outros".
"Os policiais que acompanharam a cena disseram que aqueles torcedores eram hooligans, grupo conhecido na Europa por ser de extrema direita, radical, comparado a nazistas e skinheads. São extremamente violentos", diz ele. "Difícil afirmar, mas acredito que o fato de estarmos filmando, e o fato de ser uma mulher e um negro não europeu cobrindo a Euro 2016 pode, sim, ser uma razão, entre tantas outras. Eles são racistas confirmados, são contra tudo e contra todos. Somos umas das vítimas entre milhares de outras." E como ele faz para lidar com (ou combater) a intolerância? "Eu não faço, e imponho respeito. Não há o que fazer. Existe uma forma de fazer entender: educação. E o que faço hoje é denunciar esse crime que considero bárbaro. Acredito que, talvez um dia, meus filhos sofrerão menos com a intolerância. O caminho é árduo."
Diante de tudo isso, lançamos a seguinte pergunta para especialistas de diferentes áreas, que estudam e/ou lidam com o assunto em seu cotidiano: Por que é difícil aceitar as diferenças?
Andréa Pachá, juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e escritora, autora dos livros 'A vida não é justa' e 'Segredo de Justiça': "Infelizmente, o que a gente percebe é que há um movimento conservador no mundo inteiro, não é só no Brasil. É um movimento muito forte, não é só contra a comunidade LGBT. Você vê movimento contra as mulheres, contra os negros. É recente a voz das minorias. Enquanto essas minorias não têm voz, não incomodam ninguém. Quando começam a aparecer, parece que quem sempre monopolizou o espaço público se sente ameaçado. O outro ter direito não significa que está tirando o direito de alguém. Quando você garante o direito do outro sem tirar o de ninguém, por que não? Quanto maior o acesso da sociedade à cultura, à informação, à arte, enfim, aos valores da humanidade, menos intolerante essa sociedade é. Eu adoraria acreditar que a criminalização resolve o problema da intolerância, mas não acredito nisso. Isso é uma questão de convivência social, viver junto significa compreender e respeitar as diferenças. Acho até que a gente tinha de substituir o discurso da tolerância pelo discurso do respeito. Quando você fala de tolerância, parece que você fala de uma posição superior, admite que o outro seja diferente. Quando você fala em respeito, você reconhece que as diferenças são possíveis, e a convivência no mesmo espaço é possível, apesar da diferença."
Adriana Galvão, advogada e presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/SP: "A intolerância é consequência de um conjunto de fatores. A sociedade não está preparada culturalmente para respeitar as diferenças, sejam elas políticas, ideológicas, religiosas, de classes sociais e, em especial, de diversidade sexual e de gênero. Precisamos rever nossa postura frente às crianças e aos adolescentes, principalmente no ambiente escolar, que, se não for cuidadosamente preparado, é um cenário propício para a disseminação da intolerância e da violência. A temática da intolerância deve ser abordada de forma efetiva e responsável no contexto social, estabelecer espaços de discussão e abordagem sobre as diferenças é pressuposto para uma cultura de pacificação. A OAB/SP, por meio das comissões da diversidade sexual e da 'OAB vai à escola', promove eventos e palestras para capacitar profissionais e também nossos jovens do ensino médio sobre vários temas que envolvem as diversidades, reforçando o compromisso institucional com os direitos de cidadania e de respeito ao ser humano, independentemente das diferenças. É nosso dever lutar diariamente contra qualquer tipo de discriminação e intolerância. Se queremos um país diferente, as diversidades têm de ser respeitadas."
Fábio Mariano Borges, sociólogo do Mestrado Profissional em Comportamento do Consumidor (MPCC), da ESPM, e estudioso de consumo e diversidade: "Não fomos e não somos educados para sermos diferentes nem para convivermos com as diferenças. A sociedade humana é marcada pelas regras, mesmo quando são invisíveis, ou seja, quando não se encontram registradas no formato de leis. É através das regras que somos normatizados, isto é, equiparados a um padrão considerado a normalidade que deve ser seguida. Qualquer diferença a este padrão é vista como quebra e desrespeito às regras, com alto risco de punição. Nossa educação seja nas escolas ou em casa, como em qualquer outra instituição, não estimula o desenvolvimento de diferenças e, ao contrário, nos ensina a tratar as diferenças como algo estranho e perigoso. Temos medo do diferente e do que não conhecemos. Nunca será possível conhecer tudo, mas é possível educar para compreender que a natureza é plural, rica em diversidade, variedade e diferenças. Mais do que conviver com as diferenças, é urgente termos uma sociedade que promova a fomentação da diversidade."
Salete Monteiro Amador, psicóloga, pós-graduada em Saúde Coletiva pela FUNDAP, fundadora e editora do Site Ser Melhor: "Nós, seres humanos, somos muito diferentes uns dos outros. Vamos nos construindo intimamente a partir de nossas percepções, experiências e relações com o mundo. Desta forma, somos únicos, pois nenhuma interação pode ser idêntica entre as pessoas. A nossa subjetividade expressa-se de maneiras múltiplas. Estamos sempre em transformação, já que as experiências e relações sociais continuam ao longo de nossa vida. O que para alguns pode ser fonte de reflexões, mudanças e amadurecimento, para outros, mais rígidos, é fonte de raiva, que se expressa de várias formas como preconceitos e atos de intolerância e violência. Por trás da intolerância há um insuportável e íntimo conflito sobre si mesmo, que a pessoa tenta reprimir e aniquilar. O desejo ou afeto entre pessoas do mesmo sexo pode se tornar uma afronta para pessoas mais rígidas que não se permitem olhar e rever o seu próprio desejo sexual, seus valores e crenças. Infelizmente, a intolerância ainda é muito incentivada socialmente por grupos e instituições que disseminam preconceitos e fomentam ódio e violência. Isto ocorre em algumas religiões e na cultura do machismo, por exemplo."
Rita do Val, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM): "A sociedade é estruturada com base em padrões construídos historicamente: heterossexuais, brancos, cristãos. Não fomos educados para convivermos com as diferenças, não fomos preparados para aceitar o que foge dos padrões estabelecidos, logo, como vamos tolerar o que não entendemos? Por trás da intolerância está o preconceito, indiscutivelmente. A falta de conhecimento, a ignorância, a desinformação e a informação inadequada, distorcida são as causas que fomentam a intolerância. Vivemos um momento em que se erguem bandeiras religiosas, políticas, ideológicas que, ao mesmo tempo que defendem direitos e prerrogativas de determinados grupos, não admitem posições contrárias. Mata-se em nome de um Deus particular, em nome de ideias, mas, na verdade, o que se tem é a incapacidade de respeitar e entender o que é diferente. A educação fundada no respeito à diversidade, à diferença, que desconstrua padrões de "certo", "normal" é fundamental para enfrentarmos a crescente onda de intolerância e violência."
Andrea Marques, autora do livro 'Amor de Cordel', que trata de temas como homossexualidade: "Infelizmente, o ser humano sempre teve medo do diferente, daquele que não se encaixa em padrões preestabelecidos. Talvez esteja de alguma forma relacionado ao instinto de preservação da espécie, mas o fato é que o homem possui a capacidade de raciocinar, de refletir e por isso deveria perceber que diferenças são importantes. Se todos pensassem da mesma forma e sentissem as mesmas coisas, com certeza a humanidade teria ficado estagnada. É justamente a não uniformidade que possibilita o desenvolvimento das pessoas. No meu livro, procurei ser cuidadosa ao abordar um tema tão importante como a homofobia, afinal o que queria mostrar é que as pessoas são intolerantes sem nem mesmo conhecerem o caráter do outro. Geralmente, o ser humano julga antes de saber a fundo os sentimentos do seu semelhante."
Colaborou Claudia Pereira
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