Em algumas tribos indígenas brasileiras, assim como em civilizações africanas e na França dos séculos XVII e XVIII, a mulher que amamenta sofre forte interdição sexual. Ela é proibida de ter relações com o parceiro até que deixe de amamentar, supostamente para preservar a saúde da criança, que seria prejudicada pela interação do leite com o sêmen. Se o costume nos parece anacrônico, a visão de um seio nu materno ainda confunde a imagem erogenizada de mulher e a imagem cândida de mãe presentes em nossa cultura,aterrorizando alguns passantes quando mulheres se sentem no legítimo direito de alimentar seu rebento publicamente.
A aprovação recente (no último dia 10) pela Câmara Municipal de São Paulo do projeto de lei que prevê multa para estabelecimentos que constrangerem ou proibirem mães de amamentarem no recinto aguarda sanção do prefeito Fernando Haddad. Motivado por episódios como o vivido por Roseane Domingues, “aconselhada” por um segurança a amamentar fora da Pinacoteca, o projeto de lei levanta dois questionamentos:
1) Por que é necessária uma lei para assegurar um direito garantido?
2) No “país do carnaval”, quem tem medo da imagem do seio maternal nu?
De maneira geral, o estranhamento não parte das mães brasileiras. De acordo com a Pesquisa Global Lansinoh sobre Amamentação 2014, feita com 13.169 mães e gestantes em nove países e destinada a investigar tanto variações culturais quanto temas universais na experiência de amamentação, somente 2% das mães no Brasil encaram a amamentação em público como algo errado (em oposição a 20% das mães turcas, por exemplo). Para 55% das brasileiras ouvidas amamentar em público é perfeitamente natural, e para 22% delas, o ato é inevitável.
O aleitamento materno exclusivo é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) até os 6 meses de vida do bebê, sendo continuado após esse período por até 2 anos ou mais, com a adição de alimentos complementares. Se as mães desejarem seguir essa cartilha, não
amamentar em público é de fato “inevitável”, como respondem 22% das mães da pesquisa: sem que se possa amamentar onde e quando houver necessidade, inclusive fora de casa, a mulher se encontra tolhida do seu direito ao espaço público durante esses seis meses e corre o risco de ficar restrita a uma “divisão sexual do trabalho”, pela qual a amamentação lhe reserva o papel de ficar em casa durante toda sua duração.
O pediatra Luciano Borges Martins, representante da Sociedade Brasileira de Pediatria no Comitê Nacional de Aleitamento Materno do Ministério da Saúde, esclarece que a mãe tem todos os motivos para seguir à risca a recomendação da OMS: “amamentar traz inúmeros benefícios para o bebê, como a prevenção imediata de infecções e, segundo pesquisas recentes, o aumento a longo prazo da inteligência da criança, proporcional ao tempo de amamentação”.Os benefícios se estendem também à mãe,na diminuição das chances de desenvolver câncer de mama e de ovário, anemia e sangramentos pós-parto, além da prevenção a longo prazo de diabete do tipo 2 e enfarto agudo do miocárdio.
Martins recomenda que o bebê seja amamentado em livre demanda, pois além do aspecto nutricional, o leite mata a sede. Para o médico, a lei é importante para que aceitação do aleitamento caminhe com maior rapidez na cultura brasileira, mas admite que o ideal seria não precisar de multa. “Perdeu-se muito o costume da amamentação, ele se enfraqueceu no País a partir dos anos 1970”, diz. Entretanto, ele afirma que desde o final dos anos 1980 e 1990, o costume tem sido retomado por meio de programas de incentivo, como os que desenvolve o Comitê Nacional de Aleitamento Materno.
Freud explica. Com a leie a saúde a favor da amamentação, por que sua prática pública incomoda? As respostas podem estar na psicanálise: a reação de quem olha uma mulher que amamenta publicamente, seja ela de respeito ou constrangimento, tem a ver com a integração de fatores de diversos níveis envolvendo o observador, do social (constranger porque não considera socialmente aceitável a exposição do seio da mãe) ao psíquico (constranger por questões ligadas à formação do seu próprio eu ou respeitar e se enternecer pela mesma razão, se existem memórias afetivas positivas da primeira infância associadas ao ato de amamentar), explica Belinda Mandelbaum, psicanalista, professora do Departamento de Psicologia Social e coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade (Lefam) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Para Freud, a primeira fase do desenvolvimento psicossexual é a oral, diretamente ligada à amamentação. Na teoria psicanalítica dos instintos, os seres humanos possuem uma libido instintiva desde o nascimento, que se desenvolve através de cinco estágios. Cada estágio, do oral ao genital, é caracterizado por uma zona erógena, fonte de unidade da libido: no primeiro, a respectiva zona é o seio, primeiro “objeto bom”, na denominação de Melanie Klein, do mundo interno da criança, seu meio de estabelecer de formas de relaçãoe “investimento libidinal” com o mundo.
Segundo a psicanalista, os episódios em que mulheres são impedidas de amamentar em público são situações de “dissonância cultural” -o constrangimento deriva da confusão entre um ato de nutrição e um ato sexual, uma vez que o seio à mostra causa inevitável erogenização. Mas ressalta: “apesar de a confusão ser compreensível, não deve ser tolerada. Saber discriminar a natureza do ato deve ser problema de cada um”. Descriminar sua natureza, porém, não pode cair na armadilha de dissociar totalmente a nutrição do prazer, ali presente tanto por parte da mãe, quanto na recepção, por parte do bebê. O seio para a criança não é apenas fonte de alimento, mas de carinho, é elemento constituinte do elo entre criança e mãe e uma das primeiras fontes de prazer da criança.
O estudo “Amamentação e Sexualidade”, da antropóloga Gilza Sandre-Pereira, publicado em 2003 na Revista Estudos Feministas pontua que o seio à mostra causar “inevitável erogenização” é um fato relativamente novo na História:: “Na cultura ocidental o seio foi inscrito durante muito tempo em uma percepção funcional alimentar, sendo muito recente a erotização dessa parte do corpo feminino. Ao traçar a história da nudez, Jean-Claude Bologne mostrou que, em diferentes sociedades e em épocas diversas, certas partes dos corpos femininos e masculinos, mesmo as mais íntimas, podiam ser mostradas.Segundo esse autor, o significado do olhar lançado sobre a nudez mudou muito ao longo dos séculos no Ocidente, e foi apenas no final da Idade Média que a nudez feminina e a visão do nu passaram a ser identificadas com o desejo e a ter a conotação erótica que conhecemos hoje. O seio, no entanto, permanece discreto até o surgimento do ‘amor romântico’, no século XVIII. Na sociedade ocidental moderna, a função estética do corpo, e do seio, em particular, se hipertrofiou. Sua forma, seu volume, sua consistência devem se alinhar a um modelo preciso. Nesse contexto, o seio é percebido primeiro e antes de tudo como um órgão sexual, de grande apelo erótico.”
A confusão na visão do seio materno citada por Belinda Mandelbaum, portanto, também encontra eco na Antropologia. A dupla representação dessa parte do corpo feminino é a mesma oposição fundamental da Antropologia, entre a natureza da alimentação da cria ea cultura responsável pelas diversas representações do seio em nossa sociedade, com destaque a erótica, que se choca com a imagem do amor materno assexuado e puro.
Resistência. Numa era de protestos midiáticos apelidados de "beijaços", "twitaços" e "panelaços", os mamaços são ações coletivas nos lugares onde normalmente uma mãe já foi proibida de amamentar. Diante do grupo ali presente com crianças coradas nos braços, o constrangimento se volta contra a instituição: Itaú Cultural e Sesc Belenzinho já foram alvo dos atos maternais. “Espaços onde crianças não são bem-vindas, como exposições, tendem a ser menos tolerantes, porque o público não espera ter que lidar com uma criança ali, com o choro e com a amamentação.” diz Perla Cavalcante, executiva e ativista pró-amamentação. Ao mesmo tempo em que lemos notícias de mães que denunciam ter sido constrangidas em espaços culturais, exposições e outros, Perla diz que deve haver muitas mães impedidas de amamentar em outros espaços de que não ouvimos falar, porque se sentem constrangidas até de protestar. Para ela, a lei tem que ser aliada a uma campanha forte, como o que fazem as mães nos grupos pró-amamentação e nos mamaços.
No esforço de chamar atenção para o direito de amamentar em público, a campanha fotográfica “When Nurture Calls” (Quando a alimentação chama, em português), criada pelos estudantes da Universidade do Norte do Texas Kris Haro e Johnathan Wenske, exibe mulheres dentro de banheiros públicos amamentando seus bebês. Com slogans provocadores, como “mesa para dois” e “bon appétit” e a pergunta “você comeria aqui?”, incita à reflexão do por que uma mãe deveria ter hora e lugar certos para dar de mamar se o bebê não tem hora nem lugar para sentir fome.
Páginas e grupos no Facebook, como “Mães de Peito” e “Matrice”, atuam como espaço de troca de saberes e informações entre mães em fase de lactação, mães que já passaram por ela e aquelas que desejam praticar o aleitamento exclusivo, mas não encontram o apoio necessário no pediatra ou na família. Perla diz que o desincentivo pode começar pelohospital onde é feito o parto, ao dar informações erradas sobre a amamentação, ser aprofundado pediatras que argumentam que o leite da mãe é fraco ou que ela não o produz e mesmo pela própria família, quando censura a mãe amamentando em livre demanda porque ficar com o bebê no colo o tempo todo “estraga”a criança. “Nossa cultura não favorece a amamentação, por isso a lei é tão importante.” afirma a ativista. “Sob o pretexto de dar mais conforto para as mães, isolam-nas em salas específicas para amentação.E elas querem viver, trabalhar, estar no espaço público.”