Ela é presença confirmada nas passarelas de Nova York, Paris e Milão. Já posou para as páginas da Vogue e é queridinha de grifes como Chanel e Dior. Mas de acordo com Hanne Gaby Odiele, supermodelo de 29 anos de Kortrijk, na Bélgica, uma de suas maiores conquistas aconteceu na última semana.
Quase sem maquiagem, nos escritórios de sua agência de modelos em Nova York, Odiele sorriu quando uma câmera começou a gravar. "Oi eu sou Hanne - disse alegremente, admitindo estar nervosa depois - e estou animada para deixar o mundo saber que sou intersexual.”
Na segunda-feira, 23, com o lançamento de uma série desses vídeos, Odiele tornou-se uma das poucas figuras proeminentes a revelar publicamente que nasceu intersexo, um termo que descreve pessoas com traços sexuais que não são claramente masculinos ou femininos.
Cerca de 2 por cento da população mundial nasce com traços intersex, de acordo com a ‘Interact Advocates’ para a ‘Intersex Youth’, uma organização sem fins lucrativos que busca aumentar a conscientização sobre o assunto. O grupo observa que a estatística é aproximadamente a mesma que a porcentagem de pessoas nascidas com cabelo ruivo - e ainda assim permanece um estigma.
"A maioria das pessoas não sabe que nós existimos," disse Odiele, que fez o anúncio ao lado do grupo. Por mais de um ano, ela pensou na forma que poderia falar da sua própria história: sobre o silêncio e a confusão em torno dos tratamentos médicos na infância e as cirurgias dolorosas que sofreu sem consentimento."Estou falando porque é hora do maltrato chegar ao fim. Isso me causou muita dor”, acrescentou.
De acordo com a Sociedade Intersexual da América do Norte, traços intersex incluem anatomia reprodutiva ou sexual que não são tipicamente masculina ou feminina. "Por exemplo, uma pessoa pode ter nascido parecendo ser do sexo feminino do lado de fora, mas com uma anatomia predominantemente masculina no interior", observa o grupo em sua página dedicada às perguntas sobre o que significa ser intersexual.
"Ou uma pessoa pode nascer com órgãos genitais que parecem estar entre os tipos habituais masculinos e femininos - por exemplo, uma menina pode nascer com um clitóris notoriamente grande, ou sem uma abertura vaginal, ou um menino pode nascer com um pênis notavelmente pequeno, ou com um saco escrotal dividido, parecendo lábios."
As características intersexuais não se limitam à anatomia: uma pessoa também pode nascer com ‘genética do mosaico’, com algumas células com cromossomos XX e outras XY, de acordo com o grupo. Enquanto algumas pessoas intersex são identificadas no nascimento, outros só descobrem tais características mais tarde.
Odiele nasceu com síndrome de insensibilidade aos androgênios, ou AIS, com cromossomos XY tipicamente encontrados em homens. Ela tinha 10 anos de idade quando foi submetida a uma cirurgia na Bélgica para remover os testículos que não desceram, contou ela.
Na época, a consciência sobre as pessoas intersex era escassa. Médicos disseram a seus pais que ela poderia ter câncer se não passasse pela cirurgia, e então eles concordaram - mas os médicos nunca revelaram a Hanne Gaby o motivo. "Ninguém nunca me falou de intersex," disse ao Washington Post. "Eles me disseram que eu era anormal e que eu não deveria falar com ninguém."
Quando a modelo completou 18 anos, fez uma cirurgia reconstrutiva vaginal - até hoje ela a descreve como profundamente traumatizante. Foi nessa época que Odiele digitou alguns de seus ‘sintomas’ na internet e encontrou uma revista adolescente holandesa perfilando as meninas que nasceram intersexo.
“Foi assim que descobri. Eu disse ao meu médico: 'Sou eu?' Ele disse: ‘Ah, sim, você finalmente descobriu.’ Então eu conheci algumas pessoas na comunidade AIS holandesa. Eles foram uma grande inspiração".
A carreira da top estava apenas começando. Ela logo se mudaria para Nova York e mergulharia em sua carreira, viajando pelo mundo para desfiles de moda e sessões de fotos. Por causa disso, durante muitos anos, ela disse que "realmente não prestava muita atenção a toda a comunidade intersexual".
No ano passado, no entanto, Hanne Gaby começou a revisitar os grupos de apoio na internet. "Comecei a visitar as páginas novamente e a ler histórias. Então lembrei o quão traumático foi para mim", disse. Embora se sentisse confortável para discutir ser intersexual com seu marido, amigos íntimos e membros da família, nunca esqueceu o quão isolada ela se sentiu na adolescência - ou como ela se sentia em relação às cirurgias "irreversíveis e desnecessárias" que sofreu.
"Essas cirurgias causaram mais danos do que bem", disse ela em um dos vídeos gravados na semana passada. "Eu não quero que nenhum outro garoto ou garota sofra dessa maneira. É hora de quebrar o estigma."
“Embora existam esforços crescentes em todo o mundo para reconhecer questões intersex, eles raramente são discutidos”, explicou Kimberly Zieselman, diretor executivo da InterACT.
Em 2002, Jeffrey Eugenides publicou ‘Middlesex’, um romance abrangente sobre três gerações de uma família grega centrada em Cal, um personagem principal intersexo. O livro ganhou o Prêmio Pulitzer 2003 por ficção. Embora alguns na comunidade intersexual fossem críticos de certos aspectos do livro - assim como das revisões do livro que usaram a palavra ‘hermafrodita’ (consideraram um termo contraditório) - outros o elogiaram.
Em 2015, Malta se tornou o primeiro país do mundo a proibir procedimentos médicos não consensuais para modificar a anatomia do sexo. Nos Estados Unidos, não há leis especificamente abordando a cirurgia intersex.
"Em muitos países, as crianças intersex são submetidas a cirurgias e tratamentos para tentar mudar as características sexuais e a aparência, causando terríveis sofrimentos físicos, psicológicos e emocionais - e violando seus direitos", afirmou a campanha das Nações Unidas. Alguns desses efeitos incluem infertilidade permanente e dor ao longo da vida, incontinência, perda de sensação sexual e sofrimento mental.
Apesar destes esforços crescentes, Zieselman disse que ainda existem alguns pais que se sentem pressionados a concordar com cirurgias sem o consentimento da criança. Muitas vezes, uma criança sofre múltiplas cirurgias dolorosas, acrescentou. "Isso vem dessa necessidade de" corrigir ", eu acho, e esse medo de corpos não-binários", disse a modelo.
O grupo recomenda que os pais de crianças intersexuais esperem até que tenham idade suficiente para decidir quais procedimentos médicos eles podem querer ou precisar.
"Não somos anti-cirúrgicos", disse Zieselman. "Somos contra cirurgias e tratamentos prejudiciais impostos para as crianças sem o consentimento delas."
Zieselman disse que suas próprias experiências - nascer intersex e passar por uma cirurgia não-consensual quando ela tinha 15 anos - contribuiu para um sentimento de vergonha e motivou-a a se envolver no trabalho de advocacia décadas depois. "Eu não sabia nada sobre a natureza da cirurgia", disse ela. "Isso resulta em muito medo e na sensação de ser uma aberração. É tão ruim que tinha que ser escondido de mim." Isso é um tema comum em nossa comunidade. Felizmente, está começando a mudar."
Depois que os vídeos para InterACT foram lançados segunda-feira, Hanne Gaby Odiele disse que o público começou a contatá-la através das mídias sociais. "Ontem à noite meus seguidores me encheram lágrimas", disse. Alguns compartilharam histórias de nascer intersexo, enquanto outros pais disseram que estavam criando crianças não-binárias de gênero por causa de histórias como a dela.
Uma das reações mais bacanas foi a de sua mãe, que a chamou depois de assistir aos vídeos. Ela disse que sentia como se pesos fossem tirados de seus ombros. "Eu acho que ela chorou mais do que eu", contou a top. "Ela estava muito feliz com isso."