Linn da Quebrada, artista, funkeira e performer, exibe na SP-Arte esta semana o blasFêmea, experimento audiovisual que explora a potência feminina nos diferentes corpos que caminham pelas ruas de São Paulo. O projeto foi eleito um dos grandes destaques do Melissa Meio-Fio - plataforma da marca de sapatos que reuniu 18 olhares sobre a cena cultural paulistana durante três meses, no final de 2016.
Agora, Linn apresenta a ideia no evento, que ocorre de 6 a 9 de abril, em um filme que dá voz para a potência, fragilidade e a solidão do feminino a partir de uma música inédita. A artista vem ganhando espaço ao lado de outros artistas que questionam padrões. ‘Terrorista de gênero’, como ela mesma se define, também é uma das formadoras da Ong Atravessa (Associação de Travestis de Santo André). Na entrevista ao E+, ela fala de transexualidade, carreira e representatividade.
Qual foi o pontapé inicial para você ser quem é hoje? O que te fez assumir a transexualidade? Creio que o pontapé inicial tenha sido enfrentar o espelho e ser sincera comigo mesma, a ponto de não ter certeza se eu me via no que estava refletido ali. Foi quando eu me dei o direito da dúvida e mais do que me assumir trans, foi quando eu me assumi corpo. Este corpo. Nessa pele, com esses desejos e afetos. Foi quando eu deixei de usar as respostas prontas e verdades enlatadas e passei a me fazer perguntas.
Por que ‘terrorista de gênero’? O que te levou a usar esse termo? Terrorista de gênero porque acredito que algumas vezes é preciso agir aterrorizando a norma e seus efeitos. Usando meu corpo como arma para colocar em xeque um sistema que torna invisível corpos como o meu. Me fazendo ser vista e apontando a violência do próprio sistema.
Quem você quer atingir com a sua música? Eu consigo mirar em alguns alvos, com múltiplos efeitos. Primeiramente, acredito que o tiro tenha sido em mim mesma. Fiz essas músicas para mim, por não me reconhecer na maioria das produções fonográficas. Por não ver a minha história sendo contada. Eu, enquanto ‘bixa’, travesti, preta e periférica (sic). E porque precisava ouvir aquilo. Para me fortalecer. E com isso acabo acertando em muitas outras como eu. E começo a estabelecer essa rede de conexão e apoio entre essas que também se reconhecem ali. E por último, o alvo também é o ‘macho’, essa entidade de poder e opressão sobre aquelas marcadas pelo feminino. Minha música vem pra celebrar o fim do seu império machista e falocêntrico.
Qual é o principal objetivo do blasFêmea? BlasFêmea vem do meu desejo de estabelecer entre nós, marcadas pelo feminino, uma rede de apoio e conexão, seja psicológica, emocional, econômica, financeira e até sexual. Independentes do macho. Mas que crie entre nós um espaço seguro. Onde a gente possa se proteger e se fortalecer. Num território de afeto, desejo, cuidado, cura e proteção. Não um espaço apenas utópico, mas uma obra que nos impulsione a materializar esse espaço de fato.
Como é para você estar em um evento de grande alcance, como a SP-Arte? Pra mim, estar na SP-Arte é mais uma invasão e ocupação por parte dos nossos saberes, pretos e transviados, nesses espaços de Arte com ‘A’ maiúsculo, na maioria das vezes excessivamente limpo, branco e elitizado. Para dar pinta e escurecer um pouco mais as coisas.
Qual é a sua participação na Ong Atravessa? Tive a oportunidade de colaborar com algumas travestis que estavam passando por situações de violência em Santo André. E estávamos nos articulando para resolver a situação. Mas elas ficaram à frente e se organizaram para formar a ONG, discutir suas demandas e agir politicamente sobre elas.
Como você enxerga a sociedade machista hoje? Há uma luta feminista (e de gênero) muito grande, mas a maioria da população ainda é conservadora. Olha, vivemos em uma sociedade extremamente machista, organizada por homens com H maiúsculo, pensada a partir deles e em sua função. Mas ao mesmo tempo temos avançado muito nas discussões e ganhado espaço a cada dia. Precisamos levar a discussão para outros espaços, como a escola, as artes, a TV, nossa casa, a rua, etc. Porque a informação normalmente circula apenas em um sentido, o da norma. Da heterocisnorma. E é essa ideologia que é levada adiante e naturalizada. Precisamos desnaturalizar as coisas, ter a capacidade de estranha-las, para perceber seus reais efeitos e assim pensarmos juntas em como prosseguir. Tendo a possibilidade de pensar diferente de como pensamos.
Você se sente representada pelo feminismo? Existem muitas vertentes do feminismo. E para além de me sentir representada, eu me encontro no lugar de pensar qual é o meu papel e a minha atuação nessas redes. Principalmente o transfeminismo, o feminismo negro, feminismo interseccional. De como podemos pensar o nosso lugar dentro desse sistema sexo-social, quais são as nossas funções e como podemos intervir coletivamente.
O que acha do cenário político do País? Sinceramente, eu não sei. As coisas estão muito confusas. Mas percebo que estamos vivendo um momento politicamente muito delicado. Em que nossos avanços e conquistas se veem cada vez mais ameaçados. Inclusive a suposta democracia. Pois parece que nem mesmo as decisões e escolhas que tivemos participação são levadas em conta. O que importa são os interesses de mercado. E estes serão priorizados mesmo que para isso nós enquanto classe trabalhadora sejamos prejudicadas. E por isso é fundamental que a gente se mantenha atenta, busque mais informações e se organize coletivamente para agir.
Se você pudesse falar algo para a Linn de 10 anos atrás, o que seria? Seja. Duvide. Acredite. Experimente. Erre. 'Coletive-se'. Viva o presente.