Apesar dos problemas internos, o Sistema Único de Saúde (SUS) é um modelo para os demais países em desenvolvimento. A afirmação é de Jorge Bermudez, diretor-executivo do Unitaid, fundo internacional para a compra de medicamentos contra aids, tuberculose e malária. Para Bermudez, o aumento da cooperação promovida pelo governo brasileiro com os países africanos nos últimos anos e outras ações, como a que criou a Unitaid em parceria com a França, em 2006, coloca o Brasil como ator de destaque no cenário. Porém, diz, a falta de qualificação dos laboratórios públicos e privados impede que o País alcance um desempenho comercial à altura do que vem tendo politicamente. Em apenas três anos, Bermudez - que trabalha em Genebra, na Suíça, com uma equipe equipe pequena (cerca de 30 pessoas) - conseguiu arrecadar quase US$ 1 bilhão e comprar medicamentos que foram distribuídos em 93 países pobres. Na semana passada, o diretor-executivo esteve no Rio de Janeiro para reuniões com representantes dos ministérios da Saúde e das Relações Exteriores e, entre um encontro e outro, conversou com o Estado. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista. Como funciona a Unitaid e por que ela foi criada? O Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária financia todo tratamento inicial contra essas três doenças. Nós trabalhamos com medicamentos pediátricos e de segunda linha (para quando há resistência aos remédios utilizados). A Unitaid foi criada a partir da Assembléia Geral da ONU de 2006, quando países como França e Brasil achavam necessário discutir mecanismos financeiros inovadores para saúde e desenvolvimento. Chile, Noruega e Reino Unido juntaram-se a eles e fundaram a Unitaid. Trabalhamos com a compra de medicamentos para áreas que não são cobertas por outros programas, complementando ações de organismos como o Fundo Global. E qual é balanço dos resultados? Conseguimos baixar o preço de produtos e introduzir no mercados novas formulações - pediátricas e de medicamentos que não existiam porque não havia demanda suficiente. Um exemplo é um novo antirretroviral infantil que não era fabricado porque apenas 30 mil crianças no mundo precisavam dele. Passamos a comprar 100 mil tratamentos por ano e criamos uma demanda. Isso levou um laboratório da Índia a fabricá-lo, e o preço anual caiu de US$ 200 para US$ 60 por criança. Esse produto foi aprovado pela OMS e hoje já está disponível. Atualmente, apoiamos 93 países com remédios ou diagnóstico. Recebemos cerca de US$ 350 milhões por ano para atuar nessas áreas. Como você arrecadam recursos? Por meio de financiamento junto aos países que têm comprometimento de médio prazo, como o Brasil - que contribui com US$ 12 milhões por ano - e a Espanha. Também utilizamos um mecanismo inovador: a cobrança de imposto sobre a emissão de tarifas aéreas, como fazem o Chile e a França. Começamos com 5 países contribuintes e hoje temos 29. Entre as nações africanas, 18 querem, além de receber o remédio, contribuir com recursos. Como é feita a distribuição desses medicamentos? Trabalhamos em parceria com organismos internacionais, como a Unicef, Fundação Clinton e a Stop TB. Em todos os países temos acordo com o Ministério da Saúde, que é o gestor. Queremos ter a certeza de que o produto entrará no sistema de saúde do país para não criar um mercado paralelo. Por isso, nos espelhamos na experiência do Ministério da Saúde. O Brasil é sempre visto como um exemplo de como se integra um sistema de saúde. Mas o SUS não tem muitos problemas para resolver? O SUS é um modelo que tem cobertura universal e tratamento gratuito para todo mundo. Diferentes programas brasileiros têm sido colocados pela OMS como modelo para países em desenvolvimento, como o de aids, tuberculose, malária, diabetes e hipertensão. O governo brasileiro tem se esforçado para aumentar a cooperação na área de saúde, sobretudo com países africanos. O Brasil não deveria solucionar primeiro os problemas externos? As duas coisas podem ser feitas ao mesmo tempo. A África tem problemas que o Brasil já enfrentou e ainda enfrenta, com sucesso. A Europa pode ajudar com recursos, mas dificilmente terá soluções que se apliquem a eles. Nos países que ajudamos não se pode pensar em cobrar - é preciso um esforço internacional, coordenado com o Ministério da Saúde local, para fortalecê-los. Nos últimos anos, o Brasil tem aumentado muito a sua cooperação internacional. Um dos exemplos é a fábrica de antirretrovirais que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está ajudando a implantar em Moçambique. A produção regional desses produtos na África vai, além de baratear o custo, gerar emprego. Uma das missões da Unitaid é a criação de mecanismos inovadores. Além da taxação de tarifas aéreas, o que mais já foi proposto? Estamos discutindo com laboratórios a criação de um pool de patentes. A ideia é combinar dois ou mais produtos de patentes diferentes que, espontaneamente, dificilmente entrariam em um acordo. O primeiro passo já foi dado pelo nosso comitê de especialistas. Eles definiram quais os medicamentos que deveriam estar no mercado. Agora estamos discutindo com os detentores dessas patentes a possibilidade de produzir um medicamento com três princípios ativos diferentes para facilitar o tratamento. É um remédio para aids, mas depois também negociaremos medicamentos para tuberculose e malária. Inicialmente temos tido uma receptividade muito boa, tanto dos produtores de laboratórios com patente como dos genéricos, que produziriam a nova formulação. Quais são as próximas metas? Queremos estimular laboratórios da América Latina e da África a se capacitarem no sistema de pré-qualificação da OMS para fornecerem para a Unitaid e outros organismos internacionais. Foi uma oportunidade que os laboratórios da Índia souberam aproveitar. A Fiocruz já se comprometeu a entrar com o processo, mas é um trabalho que leva meses. Esperamos que avance porque a Fundação produz antirretrovirais e medicamentos para a malária e tuberculose que poderiam ser exportados. O setor privado indiano fez isso muito bem. Esperamos em breve poder comprar mais produtos brasileiros.