Quando começa o ser humano?


Especialistas discutem o ponto mais polêmico das pesquisas com células-tronco de embriões humanos

Por Herton Escobar

Quando começa a vida? Essa é a pergunta que está na base de toda a polêmica em torno das células-tronco embrionárias, e é sobre ela que se sustenta a ação de inconstitucionalidade movida no Supremo Tribunal Federal contra as pesquisas com embriões humanos. Da sua resposta dependem não só o futuro da ciência com células embrionárias, mas questões relacionadas ao aborto e à regulamentação das práticas de reprodução assistida. Mas, afinal, quando começa a vida? Na fecundação, quando o espermatozóide se une ao óvulo ainda na tuba uterina? Ou cinco dias depois, quando o embrião se embrenha na parede do útero, dando início à gravidez de fato? Poderia ser na quarta semana, quando o sistema nervoso começa a estabelecer suas raízes e o coração primitivo dá suas primeira batucadas? Ou ainda, quem sabe, nove meses mais tarde, quando o bebê respira pela primeira vez fora da barriga da mãe? A resposta seria até simples, se a pergunta não estivesse errada. "A pergunta que precisa ser feita não é ?Quando começa a vida??, mas ?Quando começa o indivíduo??", diz o especialista George Daley, pesquisador de células-tronco embrionárias e hematopoéticas do Children?s Hospital de Boston e membro do Instituto de Células-Tronco de Harvard. Em outras palavras: a partir de que momento o embrião deixa der ser um aglomerado de células para se tornar um ser humano distinto, com direito à vida, nome, identidade e passaporte? "Infelizmente, isso é algo que não pode ser respondido pela ciência. É uma questão metafísica", diz o colega Doug Melton, professor de biologia da Universidade Harvard e um dos maiores especialistas do mundo em células-tronco. Ainda assim, essa é a pergunta com a qual os juízes do STF terão de se digladiar quando retomarem seus trabalhos no Judiciário nesta semana. "Todas as células são formas de vida. Mas isso é bem diferente do conceito de vida que aplicamos a um paciente", completa Daley. O Estado conversou com vários especialistas em embriologia, geneticistas, bioeticistas, teólogos e advogados na busca de respostas para algumas das questões mais difíceis desse debate. FORA DO ÚTERO Ninguém nega que um embrião dentro do útero materno é uma forma de vida, ainda que no seu estágio mais primordial. Todo ser humano, afinal, começa como uma dessas minúsculas bolinhas de células, menor do que a ponta de um alfinete. O que dizer, porém, de um embrião que está fora do útero, produzido numa clínica de fertilidade e congelado dentro de um botijão de nitrogênio líquido? Teria ele os mesmos direitos que um bebê na barriga da mãe? Se a vida começa na concepção - mesmo que produzida in vitro -, o que fazer com os milhares de embriões congelados em clínicas de todo o País? Para a farmacóloga Ieda Verreschi, professora de endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os embriões congelados são o mesmo que crianças. "O potencial humano está lá; foi congelado, mas está lá", defendeu Ieda, em um debate recente sobre células-tronco embrionárias na Câmara Municipal de São Paulo. A advogada Maria Garcia, professora de biodireito constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, concorda. "São seres humanos, sem dúvida. Se toda vida começa com o óvulo fecundado, como poderiam não ser? É só por cinismo ou arrogância que alguém pode dizer que não sabe onde começa a vida." O Código Civil de 2002 diz que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Já a Constituição garante a todas as pessoas a "inviolabilidade do direito à vida" - que é o que estaria sendo violado pelas pesquisas com células embrionárias, segundo a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles. Para fazer as pesquisas é necessário destruir o embrião, o que seria equivalente a um assassinato nessa interpretação. "A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação", diz a Adin. Se um embrião congelado equivale a um nascituro, porém, é questionável. A geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), costuma argumentar que "sem útero, não há vida". A Lei de Biossegurança, publicada em 2005, autoriza as pesquisas apenas com embriões produzidos in vitro, que estejam congelados há mais de três anos e que sejam doados para a ciência com o consentimento dos "pais". São embriões excedentes que, segundo os cientistas, têm pouquíssimas chances de produzir uma gestação e que, mais cedo ou mais tarde, acabam sendo jogados no lixo - apesar de o descarte ser proibido pelo Conselho Federal de Medicina. "Querer estender o conceito de pessoa a um aglomerado de células de cinco dias é um tanto forçado; eu diria até absurdo", diz o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. IMPLANTAÇÃO Do ponto de vista puramente biológico, a biografia de qualquer ser humano começa pelo zigoto, a célula primordial formada pela fusão do espermatozóide com o óvulo. Cada zigoto é dotado de um conjunto único de DNA, formado por combinações aleatórias do genoma da mãe e do pai. Até que isso possa se transformar em um bebê chorando na sala de parto, porém, há uma série de etapas evolutivas que precisa ser superada. A primeira é a implantação do embrião na parede do útero, cerca de uma semana após a fertilização. É só a partir daí que a mulher pode ser considerada clinicamente grávida. "Se o embrião não implanta, não vira nada, isso é fato. Sem implantação não há placenta, e sem placenta não há pessoa", diz o chefe do setor de Reprodução Humana da Universidade Federal de São Paulo, Agnaldo Cedenho. "Me parece justo pensar nisso como o início da vida." As células-tronco são extraídas de embriões de cinco ou seis dias, na fase de blastocisto. É nesse estágio (pré-implantação) que os embriões excedentes produzidos in vitro são congelados. Depois da implantação vem a gastrulação (formação dos folhetos embrionários) e a organogênese (formação dos órgãos primordiais) - processos supercomplexos que envolvem a migração e diferenciação de células embrionárias em tecidos especializados. "O embrião é vida, mas não é um ser humano. São duas coisas diferentes", diz a cientista Irene Yan, especialista em embriologia do Departamento de Biologia Celular e Desenvolvimento da USP. O ser humano, acredita ela, só poderia ser definido a partir do segundo trimestre de gestação. Antes disso, argumenta Irene, qualquer malformação faz com que o embrião (ou feto) seja rejeitado naturalmente pelo organismo. O especialista em desenvolvimento Jose Garcia Abreu, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), usa um critério morfológico. Para ele, o ser humano só se consolida a partir da 9ª semana, quando tem início o estágio fetal. "É nesse período que a espécie de fato se diferencia", diz. Anatomicamente, até a quarta semana, os embriões de quase todos os vertebrados são praticamente idênticos. No estágio de blastocisto, é impossível distinguir o embrião humano do de um rato, chimpanzé ou elefante. "Se não tiver o nome escrito no tubinho, ninguém vai saber o que é", afirma. SISTEMA NERVOSO Outra forma de definir o início da vida seria pelos mesmos critérios que o seu oposto: a morte. Para transplante de órgãos, a legislação brasileira, apoiada em regulamentação do Conselho Federal de Medicina, define o fim da vida pela morte encefálica, ou perda irreversível de atividade cerebral. Para muitos cientistas que defendem as pesquisas com células-tronco embrionárias, o mesmo critério deveria ser aplicado aos embriões. Se um paciente sem atividade cerebral, porém ainda respirando e com o coração batendo, pode ser considerado morto, não haveria por que um blastocisto de cinco dias, ainda sem qualquer vestígio de sistema nervoso, ser considerado vivo. ALMA Para a Igreja Católica, não importa se o embrião já tem cérebro, braços ou cara de gente. Todo embrião possui alma no momento em que o espermatozóide se junta ao óvulo - seja dentro do útero ou numa bancada de laboratório. "A infusão da alma se dá quando há matéria apta para recebê-la, e isso ocorre na concepção", explica Antonio Marcchionni, professor do departamento de Teologia da PUC-SP. "O embrião é um de nós; não é cavalo, nem gato nem cachorro." Outras religiões têm visões diferentes. No judaísmo, a vida só começa de fato no nascimento. "Antes disso, existe apenas o potencial para a vida. O ser está formado no seu aspecto físico, mas ainda não possui história espiritual", diz o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista. DECISÃO No final, a maioria dos cientistas, independentemente de suas opiniões pessoais, reconhece que não há resposta objetiva para quando começa o ser humano. "A resposta mais adequada é ?não sei?", diz o especialista em bioética e professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP Marco Segre. "A vida existe na célula, no embrião, no ser nascido. A ciência descreve, a ciência é objetiva. O resto é cultura, é crença, é tudo que você quiser." Segre acredita que a maneira mais justa de decidir a questão seria um referendo. Diante da Adin, o STF terá de decidir se o embrião é ou não é um ser humano, ainda que não defina exatamente "quando começa a vida".

Quando começa a vida? Essa é a pergunta que está na base de toda a polêmica em torno das células-tronco embrionárias, e é sobre ela que se sustenta a ação de inconstitucionalidade movida no Supremo Tribunal Federal contra as pesquisas com embriões humanos. Da sua resposta dependem não só o futuro da ciência com células embrionárias, mas questões relacionadas ao aborto e à regulamentação das práticas de reprodução assistida. Mas, afinal, quando começa a vida? Na fecundação, quando o espermatozóide se une ao óvulo ainda na tuba uterina? Ou cinco dias depois, quando o embrião se embrenha na parede do útero, dando início à gravidez de fato? Poderia ser na quarta semana, quando o sistema nervoso começa a estabelecer suas raízes e o coração primitivo dá suas primeira batucadas? Ou ainda, quem sabe, nove meses mais tarde, quando o bebê respira pela primeira vez fora da barriga da mãe? A resposta seria até simples, se a pergunta não estivesse errada. "A pergunta que precisa ser feita não é ?Quando começa a vida??, mas ?Quando começa o indivíduo??", diz o especialista George Daley, pesquisador de células-tronco embrionárias e hematopoéticas do Children?s Hospital de Boston e membro do Instituto de Células-Tronco de Harvard. Em outras palavras: a partir de que momento o embrião deixa der ser um aglomerado de células para se tornar um ser humano distinto, com direito à vida, nome, identidade e passaporte? "Infelizmente, isso é algo que não pode ser respondido pela ciência. É uma questão metafísica", diz o colega Doug Melton, professor de biologia da Universidade Harvard e um dos maiores especialistas do mundo em células-tronco. Ainda assim, essa é a pergunta com a qual os juízes do STF terão de se digladiar quando retomarem seus trabalhos no Judiciário nesta semana. "Todas as células são formas de vida. Mas isso é bem diferente do conceito de vida que aplicamos a um paciente", completa Daley. O Estado conversou com vários especialistas em embriologia, geneticistas, bioeticistas, teólogos e advogados na busca de respostas para algumas das questões mais difíceis desse debate. FORA DO ÚTERO Ninguém nega que um embrião dentro do útero materno é uma forma de vida, ainda que no seu estágio mais primordial. Todo ser humano, afinal, começa como uma dessas minúsculas bolinhas de células, menor do que a ponta de um alfinete. O que dizer, porém, de um embrião que está fora do útero, produzido numa clínica de fertilidade e congelado dentro de um botijão de nitrogênio líquido? Teria ele os mesmos direitos que um bebê na barriga da mãe? Se a vida começa na concepção - mesmo que produzida in vitro -, o que fazer com os milhares de embriões congelados em clínicas de todo o País? Para a farmacóloga Ieda Verreschi, professora de endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os embriões congelados são o mesmo que crianças. "O potencial humano está lá; foi congelado, mas está lá", defendeu Ieda, em um debate recente sobre células-tronco embrionárias na Câmara Municipal de São Paulo. A advogada Maria Garcia, professora de biodireito constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, concorda. "São seres humanos, sem dúvida. Se toda vida começa com o óvulo fecundado, como poderiam não ser? É só por cinismo ou arrogância que alguém pode dizer que não sabe onde começa a vida." O Código Civil de 2002 diz que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Já a Constituição garante a todas as pessoas a "inviolabilidade do direito à vida" - que é o que estaria sendo violado pelas pesquisas com células embrionárias, segundo a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles. Para fazer as pesquisas é necessário destruir o embrião, o que seria equivalente a um assassinato nessa interpretação. "A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação", diz a Adin. Se um embrião congelado equivale a um nascituro, porém, é questionável. A geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), costuma argumentar que "sem útero, não há vida". A Lei de Biossegurança, publicada em 2005, autoriza as pesquisas apenas com embriões produzidos in vitro, que estejam congelados há mais de três anos e que sejam doados para a ciência com o consentimento dos "pais". São embriões excedentes que, segundo os cientistas, têm pouquíssimas chances de produzir uma gestação e que, mais cedo ou mais tarde, acabam sendo jogados no lixo - apesar de o descarte ser proibido pelo Conselho Federal de Medicina. "Querer estender o conceito de pessoa a um aglomerado de células de cinco dias é um tanto forçado; eu diria até absurdo", diz o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. IMPLANTAÇÃO Do ponto de vista puramente biológico, a biografia de qualquer ser humano começa pelo zigoto, a célula primordial formada pela fusão do espermatozóide com o óvulo. Cada zigoto é dotado de um conjunto único de DNA, formado por combinações aleatórias do genoma da mãe e do pai. Até que isso possa se transformar em um bebê chorando na sala de parto, porém, há uma série de etapas evolutivas que precisa ser superada. A primeira é a implantação do embrião na parede do útero, cerca de uma semana após a fertilização. É só a partir daí que a mulher pode ser considerada clinicamente grávida. "Se o embrião não implanta, não vira nada, isso é fato. Sem implantação não há placenta, e sem placenta não há pessoa", diz o chefe do setor de Reprodução Humana da Universidade Federal de São Paulo, Agnaldo Cedenho. "Me parece justo pensar nisso como o início da vida." As células-tronco são extraídas de embriões de cinco ou seis dias, na fase de blastocisto. É nesse estágio (pré-implantação) que os embriões excedentes produzidos in vitro são congelados. Depois da implantação vem a gastrulação (formação dos folhetos embrionários) e a organogênese (formação dos órgãos primordiais) - processos supercomplexos que envolvem a migração e diferenciação de células embrionárias em tecidos especializados. "O embrião é vida, mas não é um ser humano. São duas coisas diferentes", diz a cientista Irene Yan, especialista em embriologia do Departamento de Biologia Celular e Desenvolvimento da USP. O ser humano, acredita ela, só poderia ser definido a partir do segundo trimestre de gestação. Antes disso, argumenta Irene, qualquer malformação faz com que o embrião (ou feto) seja rejeitado naturalmente pelo organismo. O especialista em desenvolvimento Jose Garcia Abreu, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), usa um critério morfológico. Para ele, o ser humano só se consolida a partir da 9ª semana, quando tem início o estágio fetal. "É nesse período que a espécie de fato se diferencia", diz. Anatomicamente, até a quarta semana, os embriões de quase todos os vertebrados são praticamente idênticos. No estágio de blastocisto, é impossível distinguir o embrião humano do de um rato, chimpanzé ou elefante. "Se não tiver o nome escrito no tubinho, ninguém vai saber o que é", afirma. SISTEMA NERVOSO Outra forma de definir o início da vida seria pelos mesmos critérios que o seu oposto: a morte. Para transplante de órgãos, a legislação brasileira, apoiada em regulamentação do Conselho Federal de Medicina, define o fim da vida pela morte encefálica, ou perda irreversível de atividade cerebral. Para muitos cientistas que defendem as pesquisas com células-tronco embrionárias, o mesmo critério deveria ser aplicado aos embriões. Se um paciente sem atividade cerebral, porém ainda respirando e com o coração batendo, pode ser considerado morto, não haveria por que um blastocisto de cinco dias, ainda sem qualquer vestígio de sistema nervoso, ser considerado vivo. ALMA Para a Igreja Católica, não importa se o embrião já tem cérebro, braços ou cara de gente. Todo embrião possui alma no momento em que o espermatozóide se junta ao óvulo - seja dentro do útero ou numa bancada de laboratório. "A infusão da alma se dá quando há matéria apta para recebê-la, e isso ocorre na concepção", explica Antonio Marcchionni, professor do departamento de Teologia da PUC-SP. "O embrião é um de nós; não é cavalo, nem gato nem cachorro." Outras religiões têm visões diferentes. No judaísmo, a vida só começa de fato no nascimento. "Antes disso, existe apenas o potencial para a vida. O ser está formado no seu aspecto físico, mas ainda não possui história espiritual", diz o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista. DECISÃO No final, a maioria dos cientistas, independentemente de suas opiniões pessoais, reconhece que não há resposta objetiva para quando começa o ser humano. "A resposta mais adequada é ?não sei?", diz o especialista em bioética e professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP Marco Segre. "A vida existe na célula, no embrião, no ser nascido. A ciência descreve, a ciência é objetiva. O resto é cultura, é crença, é tudo que você quiser." Segre acredita que a maneira mais justa de decidir a questão seria um referendo. Diante da Adin, o STF terá de decidir se o embrião é ou não é um ser humano, ainda que não defina exatamente "quando começa a vida".

Quando começa a vida? Essa é a pergunta que está na base de toda a polêmica em torno das células-tronco embrionárias, e é sobre ela que se sustenta a ação de inconstitucionalidade movida no Supremo Tribunal Federal contra as pesquisas com embriões humanos. Da sua resposta dependem não só o futuro da ciência com células embrionárias, mas questões relacionadas ao aborto e à regulamentação das práticas de reprodução assistida. Mas, afinal, quando começa a vida? Na fecundação, quando o espermatozóide se une ao óvulo ainda na tuba uterina? Ou cinco dias depois, quando o embrião se embrenha na parede do útero, dando início à gravidez de fato? Poderia ser na quarta semana, quando o sistema nervoso começa a estabelecer suas raízes e o coração primitivo dá suas primeira batucadas? Ou ainda, quem sabe, nove meses mais tarde, quando o bebê respira pela primeira vez fora da barriga da mãe? A resposta seria até simples, se a pergunta não estivesse errada. "A pergunta que precisa ser feita não é ?Quando começa a vida??, mas ?Quando começa o indivíduo??", diz o especialista George Daley, pesquisador de células-tronco embrionárias e hematopoéticas do Children?s Hospital de Boston e membro do Instituto de Células-Tronco de Harvard. Em outras palavras: a partir de que momento o embrião deixa der ser um aglomerado de células para se tornar um ser humano distinto, com direito à vida, nome, identidade e passaporte? "Infelizmente, isso é algo que não pode ser respondido pela ciência. É uma questão metafísica", diz o colega Doug Melton, professor de biologia da Universidade Harvard e um dos maiores especialistas do mundo em células-tronco. Ainda assim, essa é a pergunta com a qual os juízes do STF terão de se digladiar quando retomarem seus trabalhos no Judiciário nesta semana. "Todas as células são formas de vida. Mas isso é bem diferente do conceito de vida que aplicamos a um paciente", completa Daley. O Estado conversou com vários especialistas em embriologia, geneticistas, bioeticistas, teólogos e advogados na busca de respostas para algumas das questões mais difíceis desse debate. FORA DO ÚTERO Ninguém nega que um embrião dentro do útero materno é uma forma de vida, ainda que no seu estágio mais primordial. Todo ser humano, afinal, começa como uma dessas minúsculas bolinhas de células, menor do que a ponta de um alfinete. O que dizer, porém, de um embrião que está fora do útero, produzido numa clínica de fertilidade e congelado dentro de um botijão de nitrogênio líquido? Teria ele os mesmos direitos que um bebê na barriga da mãe? Se a vida começa na concepção - mesmo que produzida in vitro -, o que fazer com os milhares de embriões congelados em clínicas de todo o País? Para a farmacóloga Ieda Verreschi, professora de endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os embriões congelados são o mesmo que crianças. "O potencial humano está lá; foi congelado, mas está lá", defendeu Ieda, em um debate recente sobre células-tronco embrionárias na Câmara Municipal de São Paulo. A advogada Maria Garcia, professora de biodireito constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, concorda. "São seres humanos, sem dúvida. Se toda vida começa com o óvulo fecundado, como poderiam não ser? É só por cinismo ou arrogância que alguém pode dizer que não sabe onde começa a vida." O Código Civil de 2002 diz que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Já a Constituição garante a todas as pessoas a "inviolabilidade do direito à vida" - que é o que estaria sendo violado pelas pesquisas com células embrionárias, segundo a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles. Para fazer as pesquisas é necessário destruir o embrião, o que seria equivalente a um assassinato nessa interpretação. "A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação", diz a Adin. Se um embrião congelado equivale a um nascituro, porém, é questionável. A geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), costuma argumentar que "sem útero, não há vida". A Lei de Biossegurança, publicada em 2005, autoriza as pesquisas apenas com embriões produzidos in vitro, que estejam congelados há mais de três anos e que sejam doados para a ciência com o consentimento dos "pais". São embriões excedentes que, segundo os cientistas, têm pouquíssimas chances de produzir uma gestação e que, mais cedo ou mais tarde, acabam sendo jogados no lixo - apesar de o descarte ser proibido pelo Conselho Federal de Medicina. "Querer estender o conceito de pessoa a um aglomerado de células de cinco dias é um tanto forçado; eu diria até absurdo", diz o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. IMPLANTAÇÃO Do ponto de vista puramente biológico, a biografia de qualquer ser humano começa pelo zigoto, a célula primordial formada pela fusão do espermatozóide com o óvulo. Cada zigoto é dotado de um conjunto único de DNA, formado por combinações aleatórias do genoma da mãe e do pai. Até que isso possa se transformar em um bebê chorando na sala de parto, porém, há uma série de etapas evolutivas que precisa ser superada. A primeira é a implantação do embrião na parede do útero, cerca de uma semana após a fertilização. É só a partir daí que a mulher pode ser considerada clinicamente grávida. "Se o embrião não implanta, não vira nada, isso é fato. Sem implantação não há placenta, e sem placenta não há pessoa", diz o chefe do setor de Reprodução Humana da Universidade Federal de São Paulo, Agnaldo Cedenho. "Me parece justo pensar nisso como o início da vida." As células-tronco são extraídas de embriões de cinco ou seis dias, na fase de blastocisto. É nesse estágio (pré-implantação) que os embriões excedentes produzidos in vitro são congelados. Depois da implantação vem a gastrulação (formação dos folhetos embrionários) e a organogênese (formação dos órgãos primordiais) - processos supercomplexos que envolvem a migração e diferenciação de células embrionárias em tecidos especializados. "O embrião é vida, mas não é um ser humano. São duas coisas diferentes", diz a cientista Irene Yan, especialista em embriologia do Departamento de Biologia Celular e Desenvolvimento da USP. O ser humano, acredita ela, só poderia ser definido a partir do segundo trimestre de gestação. Antes disso, argumenta Irene, qualquer malformação faz com que o embrião (ou feto) seja rejeitado naturalmente pelo organismo. O especialista em desenvolvimento Jose Garcia Abreu, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), usa um critério morfológico. Para ele, o ser humano só se consolida a partir da 9ª semana, quando tem início o estágio fetal. "É nesse período que a espécie de fato se diferencia", diz. Anatomicamente, até a quarta semana, os embriões de quase todos os vertebrados são praticamente idênticos. No estágio de blastocisto, é impossível distinguir o embrião humano do de um rato, chimpanzé ou elefante. "Se não tiver o nome escrito no tubinho, ninguém vai saber o que é", afirma. SISTEMA NERVOSO Outra forma de definir o início da vida seria pelos mesmos critérios que o seu oposto: a morte. Para transplante de órgãos, a legislação brasileira, apoiada em regulamentação do Conselho Federal de Medicina, define o fim da vida pela morte encefálica, ou perda irreversível de atividade cerebral. Para muitos cientistas que defendem as pesquisas com células-tronco embrionárias, o mesmo critério deveria ser aplicado aos embriões. Se um paciente sem atividade cerebral, porém ainda respirando e com o coração batendo, pode ser considerado morto, não haveria por que um blastocisto de cinco dias, ainda sem qualquer vestígio de sistema nervoso, ser considerado vivo. ALMA Para a Igreja Católica, não importa se o embrião já tem cérebro, braços ou cara de gente. Todo embrião possui alma no momento em que o espermatozóide se junta ao óvulo - seja dentro do útero ou numa bancada de laboratório. "A infusão da alma se dá quando há matéria apta para recebê-la, e isso ocorre na concepção", explica Antonio Marcchionni, professor do departamento de Teologia da PUC-SP. "O embrião é um de nós; não é cavalo, nem gato nem cachorro." Outras religiões têm visões diferentes. No judaísmo, a vida só começa de fato no nascimento. "Antes disso, existe apenas o potencial para a vida. O ser está formado no seu aspecto físico, mas ainda não possui história espiritual", diz o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista. DECISÃO No final, a maioria dos cientistas, independentemente de suas opiniões pessoais, reconhece que não há resposta objetiva para quando começa o ser humano. "A resposta mais adequada é ?não sei?", diz o especialista em bioética e professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP Marco Segre. "A vida existe na célula, no embrião, no ser nascido. A ciência descreve, a ciência é objetiva. O resto é cultura, é crença, é tudo que você quiser." Segre acredita que a maneira mais justa de decidir a questão seria um referendo. Diante da Adin, o STF terá de decidir se o embrião é ou não é um ser humano, ainda que não defina exatamente "quando começa a vida".

Quando começa a vida? Essa é a pergunta que está na base de toda a polêmica em torno das células-tronco embrionárias, e é sobre ela que se sustenta a ação de inconstitucionalidade movida no Supremo Tribunal Federal contra as pesquisas com embriões humanos. Da sua resposta dependem não só o futuro da ciência com células embrionárias, mas questões relacionadas ao aborto e à regulamentação das práticas de reprodução assistida. Mas, afinal, quando começa a vida? Na fecundação, quando o espermatozóide se une ao óvulo ainda na tuba uterina? Ou cinco dias depois, quando o embrião se embrenha na parede do útero, dando início à gravidez de fato? Poderia ser na quarta semana, quando o sistema nervoso começa a estabelecer suas raízes e o coração primitivo dá suas primeira batucadas? Ou ainda, quem sabe, nove meses mais tarde, quando o bebê respira pela primeira vez fora da barriga da mãe? A resposta seria até simples, se a pergunta não estivesse errada. "A pergunta que precisa ser feita não é ?Quando começa a vida??, mas ?Quando começa o indivíduo??", diz o especialista George Daley, pesquisador de células-tronco embrionárias e hematopoéticas do Children?s Hospital de Boston e membro do Instituto de Células-Tronco de Harvard. Em outras palavras: a partir de que momento o embrião deixa der ser um aglomerado de células para se tornar um ser humano distinto, com direito à vida, nome, identidade e passaporte? "Infelizmente, isso é algo que não pode ser respondido pela ciência. É uma questão metafísica", diz o colega Doug Melton, professor de biologia da Universidade Harvard e um dos maiores especialistas do mundo em células-tronco. Ainda assim, essa é a pergunta com a qual os juízes do STF terão de se digladiar quando retomarem seus trabalhos no Judiciário nesta semana. "Todas as células são formas de vida. Mas isso é bem diferente do conceito de vida que aplicamos a um paciente", completa Daley. O Estado conversou com vários especialistas em embriologia, geneticistas, bioeticistas, teólogos e advogados na busca de respostas para algumas das questões mais difíceis desse debate. FORA DO ÚTERO Ninguém nega que um embrião dentro do útero materno é uma forma de vida, ainda que no seu estágio mais primordial. Todo ser humano, afinal, começa como uma dessas minúsculas bolinhas de células, menor do que a ponta de um alfinete. O que dizer, porém, de um embrião que está fora do útero, produzido numa clínica de fertilidade e congelado dentro de um botijão de nitrogênio líquido? Teria ele os mesmos direitos que um bebê na barriga da mãe? Se a vida começa na concepção - mesmo que produzida in vitro -, o que fazer com os milhares de embriões congelados em clínicas de todo o País? Para a farmacóloga Ieda Verreschi, professora de endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os embriões congelados são o mesmo que crianças. "O potencial humano está lá; foi congelado, mas está lá", defendeu Ieda, em um debate recente sobre células-tronco embrionárias na Câmara Municipal de São Paulo. A advogada Maria Garcia, professora de biodireito constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, concorda. "São seres humanos, sem dúvida. Se toda vida começa com o óvulo fecundado, como poderiam não ser? É só por cinismo ou arrogância que alguém pode dizer que não sabe onde começa a vida." O Código Civil de 2002 diz que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Já a Constituição garante a todas as pessoas a "inviolabilidade do direito à vida" - que é o que estaria sendo violado pelas pesquisas com células embrionárias, segundo a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles. Para fazer as pesquisas é necessário destruir o embrião, o que seria equivalente a um assassinato nessa interpretação. "A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação", diz a Adin. Se um embrião congelado equivale a um nascituro, porém, é questionável. A geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), costuma argumentar que "sem útero, não há vida". A Lei de Biossegurança, publicada em 2005, autoriza as pesquisas apenas com embriões produzidos in vitro, que estejam congelados há mais de três anos e que sejam doados para a ciência com o consentimento dos "pais". São embriões excedentes que, segundo os cientistas, têm pouquíssimas chances de produzir uma gestação e que, mais cedo ou mais tarde, acabam sendo jogados no lixo - apesar de o descarte ser proibido pelo Conselho Federal de Medicina. "Querer estender o conceito de pessoa a um aglomerado de células de cinco dias é um tanto forçado; eu diria até absurdo", diz o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. IMPLANTAÇÃO Do ponto de vista puramente biológico, a biografia de qualquer ser humano começa pelo zigoto, a célula primordial formada pela fusão do espermatozóide com o óvulo. Cada zigoto é dotado de um conjunto único de DNA, formado por combinações aleatórias do genoma da mãe e do pai. Até que isso possa se transformar em um bebê chorando na sala de parto, porém, há uma série de etapas evolutivas que precisa ser superada. A primeira é a implantação do embrião na parede do útero, cerca de uma semana após a fertilização. É só a partir daí que a mulher pode ser considerada clinicamente grávida. "Se o embrião não implanta, não vira nada, isso é fato. Sem implantação não há placenta, e sem placenta não há pessoa", diz o chefe do setor de Reprodução Humana da Universidade Federal de São Paulo, Agnaldo Cedenho. "Me parece justo pensar nisso como o início da vida." As células-tronco são extraídas de embriões de cinco ou seis dias, na fase de blastocisto. É nesse estágio (pré-implantação) que os embriões excedentes produzidos in vitro são congelados. Depois da implantação vem a gastrulação (formação dos folhetos embrionários) e a organogênese (formação dos órgãos primordiais) - processos supercomplexos que envolvem a migração e diferenciação de células embrionárias em tecidos especializados. "O embrião é vida, mas não é um ser humano. São duas coisas diferentes", diz a cientista Irene Yan, especialista em embriologia do Departamento de Biologia Celular e Desenvolvimento da USP. O ser humano, acredita ela, só poderia ser definido a partir do segundo trimestre de gestação. Antes disso, argumenta Irene, qualquer malformação faz com que o embrião (ou feto) seja rejeitado naturalmente pelo organismo. O especialista em desenvolvimento Jose Garcia Abreu, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), usa um critério morfológico. Para ele, o ser humano só se consolida a partir da 9ª semana, quando tem início o estágio fetal. "É nesse período que a espécie de fato se diferencia", diz. Anatomicamente, até a quarta semana, os embriões de quase todos os vertebrados são praticamente idênticos. No estágio de blastocisto, é impossível distinguir o embrião humano do de um rato, chimpanzé ou elefante. "Se não tiver o nome escrito no tubinho, ninguém vai saber o que é", afirma. SISTEMA NERVOSO Outra forma de definir o início da vida seria pelos mesmos critérios que o seu oposto: a morte. Para transplante de órgãos, a legislação brasileira, apoiada em regulamentação do Conselho Federal de Medicina, define o fim da vida pela morte encefálica, ou perda irreversível de atividade cerebral. Para muitos cientistas que defendem as pesquisas com células-tronco embrionárias, o mesmo critério deveria ser aplicado aos embriões. Se um paciente sem atividade cerebral, porém ainda respirando e com o coração batendo, pode ser considerado morto, não haveria por que um blastocisto de cinco dias, ainda sem qualquer vestígio de sistema nervoso, ser considerado vivo. ALMA Para a Igreja Católica, não importa se o embrião já tem cérebro, braços ou cara de gente. Todo embrião possui alma no momento em que o espermatozóide se junta ao óvulo - seja dentro do útero ou numa bancada de laboratório. "A infusão da alma se dá quando há matéria apta para recebê-la, e isso ocorre na concepção", explica Antonio Marcchionni, professor do departamento de Teologia da PUC-SP. "O embrião é um de nós; não é cavalo, nem gato nem cachorro." Outras religiões têm visões diferentes. No judaísmo, a vida só começa de fato no nascimento. "Antes disso, existe apenas o potencial para a vida. O ser está formado no seu aspecto físico, mas ainda não possui história espiritual", diz o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista. DECISÃO No final, a maioria dos cientistas, independentemente de suas opiniões pessoais, reconhece que não há resposta objetiva para quando começa o ser humano. "A resposta mais adequada é ?não sei?", diz o especialista em bioética e professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP Marco Segre. "A vida existe na célula, no embrião, no ser nascido. A ciência descreve, a ciência é objetiva. O resto é cultura, é crença, é tudo que você quiser." Segre acredita que a maneira mais justa de decidir a questão seria um referendo. Diante da Adin, o STF terá de decidir se o embrião é ou não é um ser humano, ainda que não defina exatamente "quando começa a vida".

Quando começa a vida? Essa é a pergunta que está na base de toda a polêmica em torno das células-tronco embrionárias, e é sobre ela que se sustenta a ação de inconstitucionalidade movida no Supremo Tribunal Federal contra as pesquisas com embriões humanos. Da sua resposta dependem não só o futuro da ciência com células embrionárias, mas questões relacionadas ao aborto e à regulamentação das práticas de reprodução assistida. Mas, afinal, quando começa a vida? Na fecundação, quando o espermatozóide se une ao óvulo ainda na tuba uterina? Ou cinco dias depois, quando o embrião se embrenha na parede do útero, dando início à gravidez de fato? Poderia ser na quarta semana, quando o sistema nervoso começa a estabelecer suas raízes e o coração primitivo dá suas primeira batucadas? Ou ainda, quem sabe, nove meses mais tarde, quando o bebê respira pela primeira vez fora da barriga da mãe? A resposta seria até simples, se a pergunta não estivesse errada. "A pergunta que precisa ser feita não é ?Quando começa a vida??, mas ?Quando começa o indivíduo??", diz o especialista George Daley, pesquisador de células-tronco embrionárias e hematopoéticas do Children?s Hospital de Boston e membro do Instituto de Células-Tronco de Harvard. Em outras palavras: a partir de que momento o embrião deixa der ser um aglomerado de células para se tornar um ser humano distinto, com direito à vida, nome, identidade e passaporte? "Infelizmente, isso é algo que não pode ser respondido pela ciência. É uma questão metafísica", diz o colega Doug Melton, professor de biologia da Universidade Harvard e um dos maiores especialistas do mundo em células-tronco. Ainda assim, essa é a pergunta com a qual os juízes do STF terão de se digladiar quando retomarem seus trabalhos no Judiciário nesta semana. "Todas as células são formas de vida. Mas isso é bem diferente do conceito de vida que aplicamos a um paciente", completa Daley. O Estado conversou com vários especialistas em embriologia, geneticistas, bioeticistas, teólogos e advogados na busca de respostas para algumas das questões mais difíceis desse debate. FORA DO ÚTERO Ninguém nega que um embrião dentro do útero materno é uma forma de vida, ainda que no seu estágio mais primordial. Todo ser humano, afinal, começa como uma dessas minúsculas bolinhas de células, menor do que a ponta de um alfinete. O que dizer, porém, de um embrião que está fora do útero, produzido numa clínica de fertilidade e congelado dentro de um botijão de nitrogênio líquido? Teria ele os mesmos direitos que um bebê na barriga da mãe? Se a vida começa na concepção - mesmo que produzida in vitro -, o que fazer com os milhares de embriões congelados em clínicas de todo o País? Para a farmacóloga Ieda Verreschi, professora de endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os embriões congelados são o mesmo que crianças. "O potencial humano está lá; foi congelado, mas está lá", defendeu Ieda, em um debate recente sobre células-tronco embrionárias na Câmara Municipal de São Paulo. A advogada Maria Garcia, professora de biodireito constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, concorda. "São seres humanos, sem dúvida. Se toda vida começa com o óvulo fecundado, como poderiam não ser? É só por cinismo ou arrogância que alguém pode dizer que não sabe onde começa a vida." O Código Civil de 2002 diz que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Já a Constituição garante a todas as pessoas a "inviolabilidade do direito à vida" - que é o que estaria sendo violado pelas pesquisas com células embrionárias, segundo a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles. Para fazer as pesquisas é necessário destruir o embrião, o que seria equivalente a um assassinato nessa interpretação. "A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação", diz a Adin. Se um embrião congelado equivale a um nascituro, porém, é questionável. A geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), costuma argumentar que "sem útero, não há vida". A Lei de Biossegurança, publicada em 2005, autoriza as pesquisas apenas com embriões produzidos in vitro, que estejam congelados há mais de três anos e que sejam doados para a ciência com o consentimento dos "pais". São embriões excedentes que, segundo os cientistas, têm pouquíssimas chances de produzir uma gestação e que, mais cedo ou mais tarde, acabam sendo jogados no lixo - apesar de o descarte ser proibido pelo Conselho Federal de Medicina. "Querer estender o conceito de pessoa a um aglomerado de células de cinco dias é um tanto forçado; eu diria até absurdo", diz o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. IMPLANTAÇÃO Do ponto de vista puramente biológico, a biografia de qualquer ser humano começa pelo zigoto, a célula primordial formada pela fusão do espermatozóide com o óvulo. Cada zigoto é dotado de um conjunto único de DNA, formado por combinações aleatórias do genoma da mãe e do pai. Até que isso possa se transformar em um bebê chorando na sala de parto, porém, há uma série de etapas evolutivas que precisa ser superada. A primeira é a implantação do embrião na parede do útero, cerca de uma semana após a fertilização. É só a partir daí que a mulher pode ser considerada clinicamente grávida. "Se o embrião não implanta, não vira nada, isso é fato. Sem implantação não há placenta, e sem placenta não há pessoa", diz o chefe do setor de Reprodução Humana da Universidade Federal de São Paulo, Agnaldo Cedenho. "Me parece justo pensar nisso como o início da vida." As células-tronco são extraídas de embriões de cinco ou seis dias, na fase de blastocisto. É nesse estágio (pré-implantação) que os embriões excedentes produzidos in vitro são congelados. Depois da implantação vem a gastrulação (formação dos folhetos embrionários) e a organogênese (formação dos órgãos primordiais) - processos supercomplexos que envolvem a migração e diferenciação de células embrionárias em tecidos especializados. "O embrião é vida, mas não é um ser humano. São duas coisas diferentes", diz a cientista Irene Yan, especialista em embriologia do Departamento de Biologia Celular e Desenvolvimento da USP. O ser humano, acredita ela, só poderia ser definido a partir do segundo trimestre de gestação. Antes disso, argumenta Irene, qualquer malformação faz com que o embrião (ou feto) seja rejeitado naturalmente pelo organismo. O especialista em desenvolvimento Jose Garcia Abreu, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), usa um critério morfológico. Para ele, o ser humano só se consolida a partir da 9ª semana, quando tem início o estágio fetal. "É nesse período que a espécie de fato se diferencia", diz. Anatomicamente, até a quarta semana, os embriões de quase todos os vertebrados são praticamente idênticos. No estágio de blastocisto, é impossível distinguir o embrião humano do de um rato, chimpanzé ou elefante. "Se não tiver o nome escrito no tubinho, ninguém vai saber o que é", afirma. SISTEMA NERVOSO Outra forma de definir o início da vida seria pelos mesmos critérios que o seu oposto: a morte. Para transplante de órgãos, a legislação brasileira, apoiada em regulamentação do Conselho Federal de Medicina, define o fim da vida pela morte encefálica, ou perda irreversível de atividade cerebral. Para muitos cientistas que defendem as pesquisas com células-tronco embrionárias, o mesmo critério deveria ser aplicado aos embriões. Se um paciente sem atividade cerebral, porém ainda respirando e com o coração batendo, pode ser considerado morto, não haveria por que um blastocisto de cinco dias, ainda sem qualquer vestígio de sistema nervoso, ser considerado vivo. ALMA Para a Igreja Católica, não importa se o embrião já tem cérebro, braços ou cara de gente. Todo embrião possui alma no momento em que o espermatozóide se junta ao óvulo - seja dentro do útero ou numa bancada de laboratório. "A infusão da alma se dá quando há matéria apta para recebê-la, e isso ocorre na concepção", explica Antonio Marcchionni, professor do departamento de Teologia da PUC-SP. "O embrião é um de nós; não é cavalo, nem gato nem cachorro." Outras religiões têm visões diferentes. No judaísmo, a vida só começa de fato no nascimento. "Antes disso, existe apenas o potencial para a vida. O ser está formado no seu aspecto físico, mas ainda não possui história espiritual", diz o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista. DECISÃO No final, a maioria dos cientistas, independentemente de suas opiniões pessoais, reconhece que não há resposta objetiva para quando começa o ser humano. "A resposta mais adequada é ?não sei?", diz o especialista em bioética e professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP Marco Segre. "A vida existe na célula, no embrião, no ser nascido. A ciência descreve, a ciência é objetiva. O resto é cultura, é crença, é tudo que você quiser." Segre acredita que a maneira mais justa de decidir a questão seria um referendo. Diante da Adin, o STF terá de decidir se o embrião é ou não é um ser humano, ainda que não defina exatamente "quando começa a vida".

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