Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Nos EUA, o rato pariu uma montanha


Trump provavelmente é o candidato mais imoral da história recente dos EUA

Por Renato Essenfelder
 

arte: loro verz

»A montanha pariu um rato é uma expressão latina muito antiga, que aparece em fábula de Esopo e nos versos do poeta romano Horácio. É uma expressão anterior a Cristo, cujo sentido geral, bem entendido, é que às vezes uma grande expectativa, um grande temor, não resulta em nada.

continua após a publicidade

Portanto falamos que a montanha pariu um rato quando percebemos que nossa ansiedade era, afinal, sem justificativa. Nada, afinal, aconteceu.

Eu pensei nessa expressão hoje pela manhã, mas no sentido inverso.

Parecia que o rato era quem estava a parir uma montanha.

continua após a publicidade

Crescemos ouvindo nos filmes e na TV que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo. Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que, na verdade, são a menor -- e a mais perigosa. Bastam 270 votos de delegados para que o rato imponha ao mundo a sua montanha. Um punhado de gente, fascinada por uma máquina de dinheiro infinito, segue decidindo sobre a paz e a guerra, a vida e a morte, a fome e a fartura.

***

Pior que a desgraça involuntária, que nos atropela, acomete, é a desgraça voluntária: aquele lento e decidido caminhar para o abismo.

continua após a publicidade

O horror espontâneo, até cobiçado. O voto pelo caos.

Nesta semana tenho escrito na minha newsletter O Lento Alento (assine aqui) sobre Zé do Caixão, personagem de um cineasta genial que praticamente inaugurou o gênero no Brasil: José Mojica Marins.

Mojica fez filmes escatológicos, sádicos e assustadores, que só conheci há pouco tempo e que me deixaram bastante impressionado.

continua após a publicidade
Cena de À Meia-Noite Levarei sua Alma, filme de 1964 | reprodução  

 

Até então, Zé/Mojica, Mojica/Zé eram figuras meio cômicas pra mim, mas isso está muito distante da realidade da obra dele.

continua após a publicidade

A realidade, quando bate à porta, tem sido muito pouco engraçada. 

***

Acordei com a notícia da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.

continua após a publicidade

Quando liguei o celular para ver se havia novidades daquele canto do planeta, logo vi uma notificação para que eu acompanhasse a transmissão em vídeo, ao vivo, do discurso de vitória de Trump (o horror, o horror).

Cliquei. Tremi. Meu celular parecia ter sido possuído por um Zé do Caixão alaranjado, platinado e doentio. A figura, eleita pelo sistema mais antidemocrático e confuso da menor democracia do mundo, falava em deportações massivas e em "curar" uma nação onde paradoxalmente a saúde é privada e impagável.

Agradeceu, é claro, Elon Musk, o bilionário que sorteou 1 milhão de dólares por dia para mal-disfarçadamente convencer eleitores a caminhar para o abismo.

Trump provavelmente é o candidato mais imoral da história recente dos EUA (país que já teve Reagan, Nixon etc.). É o primeiro presidente eleito com mais de 30 processos nas costas e sustentado por uma máquina de mentira e achaque nunca antes vista na história. Não é uma figura "controversa", como dizem os comentaristas, mas, sim, vergonhosa.

O rato vai parir agora a sua montanha. Tem apoio dos juízes que nomeou, da Câmara e do Senado. Pode ser que muito pouca coisa mude, em um mundo acostumado ao caos.

Mas pode ser também que essa montanha caia sobre as nossas cabeças.

E que, ao fim, como num filme-catástrofe, só restem as baratas.

E os ratos.«

______________________________________________________________________

Receba conteúdos no seu e-mail. 

 

arte: loro verz

»A montanha pariu um rato é uma expressão latina muito antiga, que aparece em fábula de Esopo e nos versos do poeta romano Horácio. É uma expressão anterior a Cristo, cujo sentido geral, bem entendido, é que às vezes uma grande expectativa, um grande temor, não resulta em nada.

Portanto falamos que a montanha pariu um rato quando percebemos que nossa ansiedade era, afinal, sem justificativa. Nada, afinal, aconteceu.

Eu pensei nessa expressão hoje pela manhã, mas no sentido inverso.

Parecia que o rato era quem estava a parir uma montanha.

Crescemos ouvindo nos filmes e na TV que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo. Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que, na verdade, são a menor -- e a mais perigosa. Bastam 270 votos de delegados para que o rato imponha ao mundo a sua montanha. Um punhado de gente, fascinada por uma máquina de dinheiro infinito, segue decidindo sobre a paz e a guerra, a vida e a morte, a fome e a fartura.

***

Pior que a desgraça involuntária, que nos atropela, acomete, é a desgraça voluntária: aquele lento e decidido caminhar para o abismo.

O horror espontâneo, até cobiçado. O voto pelo caos.

Nesta semana tenho escrito na minha newsletter O Lento Alento (assine aqui) sobre Zé do Caixão, personagem de um cineasta genial que praticamente inaugurou o gênero no Brasil: José Mojica Marins.

Mojica fez filmes escatológicos, sádicos e assustadores, que só conheci há pouco tempo e que me deixaram bastante impressionado.

Cena de À Meia-Noite Levarei sua Alma, filme de 1964 | reprodução  

 

Até então, Zé/Mojica, Mojica/Zé eram figuras meio cômicas pra mim, mas isso está muito distante da realidade da obra dele.

A realidade, quando bate à porta, tem sido muito pouco engraçada. 

***

Acordei com a notícia da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.

Quando liguei o celular para ver se havia novidades daquele canto do planeta, logo vi uma notificação para que eu acompanhasse a transmissão em vídeo, ao vivo, do discurso de vitória de Trump (o horror, o horror).

Cliquei. Tremi. Meu celular parecia ter sido possuído por um Zé do Caixão alaranjado, platinado e doentio. A figura, eleita pelo sistema mais antidemocrático e confuso da menor democracia do mundo, falava em deportações massivas e em "curar" uma nação onde paradoxalmente a saúde é privada e impagável.

Agradeceu, é claro, Elon Musk, o bilionário que sorteou 1 milhão de dólares por dia para mal-disfarçadamente convencer eleitores a caminhar para o abismo.

Trump provavelmente é o candidato mais imoral da história recente dos EUA (país que já teve Reagan, Nixon etc.). É o primeiro presidente eleito com mais de 30 processos nas costas e sustentado por uma máquina de mentira e achaque nunca antes vista na história. Não é uma figura "controversa", como dizem os comentaristas, mas, sim, vergonhosa.

O rato vai parir agora a sua montanha. Tem apoio dos juízes que nomeou, da Câmara e do Senado. Pode ser que muito pouca coisa mude, em um mundo acostumado ao caos.

Mas pode ser também que essa montanha caia sobre as nossas cabeças.

E que, ao fim, como num filme-catástrofe, só restem as baratas.

E os ratos.«

______________________________________________________________________

Receba conteúdos no seu e-mail. 

 

arte: loro verz

»A montanha pariu um rato é uma expressão latina muito antiga, que aparece em fábula de Esopo e nos versos do poeta romano Horácio. É uma expressão anterior a Cristo, cujo sentido geral, bem entendido, é que às vezes uma grande expectativa, um grande temor, não resulta em nada.

Portanto falamos que a montanha pariu um rato quando percebemos que nossa ansiedade era, afinal, sem justificativa. Nada, afinal, aconteceu.

Eu pensei nessa expressão hoje pela manhã, mas no sentido inverso.

Parecia que o rato era quem estava a parir uma montanha.

Crescemos ouvindo nos filmes e na TV que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo. Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que, na verdade, são a menor -- e a mais perigosa. Bastam 270 votos de delegados para que o rato imponha ao mundo a sua montanha. Um punhado de gente, fascinada por uma máquina de dinheiro infinito, segue decidindo sobre a paz e a guerra, a vida e a morte, a fome e a fartura.

***

Pior que a desgraça involuntária, que nos atropela, acomete, é a desgraça voluntária: aquele lento e decidido caminhar para o abismo.

O horror espontâneo, até cobiçado. O voto pelo caos.

Nesta semana tenho escrito na minha newsletter O Lento Alento (assine aqui) sobre Zé do Caixão, personagem de um cineasta genial que praticamente inaugurou o gênero no Brasil: José Mojica Marins.

Mojica fez filmes escatológicos, sádicos e assustadores, que só conheci há pouco tempo e que me deixaram bastante impressionado.

Cena de À Meia-Noite Levarei sua Alma, filme de 1964 | reprodução  

 

Até então, Zé/Mojica, Mojica/Zé eram figuras meio cômicas pra mim, mas isso está muito distante da realidade da obra dele.

A realidade, quando bate à porta, tem sido muito pouco engraçada. 

***

Acordei com a notícia da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.

Quando liguei o celular para ver se havia novidades daquele canto do planeta, logo vi uma notificação para que eu acompanhasse a transmissão em vídeo, ao vivo, do discurso de vitória de Trump (o horror, o horror).

Cliquei. Tremi. Meu celular parecia ter sido possuído por um Zé do Caixão alaranjado, platinado e doentio. A figura, eleita pelo sistema mais antidemocrático e confuso da menor democracia do mundo, falava em deportações massivas e em "curar" uma nação onde paradoxalmente a saúde é privada e impagável.

Agradeceu, é claro, Elon Musk, o bilionário que sorteou 1 milhão de dólares por dia para mal-disfarçadamente convencer eleitores a caminhar para o abismo.

Trump provavelmente é o candidato mais imoral da história recente dos EUA (país que já teve Reagan, Nixon etc.). É o primeiro presidente eleito com mais de 30 processos nas costas e sustentado por uma máquina de mentira e achaque nunca antes vista na história. Não é uma figura "controversa", como dizem os comentaristas, mas, sim, vergonhosa.

O rato vai parir agora a sua montanha. Tem apoio dos juízes que nomeou, da Câmara e do Senado. Pode ser que muito pouca coisa mude, em um mundo acostumado ao caos.

Mas pode ser também que essa montanha caia sobre as nossas cabeças.

E que, ao fim, como num filme-catástrofe, só restem as baratas.

E os ratos.«

______________________________________________________________________

Receba conteúdos no seu e-mail. 

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.