Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Todo mundo tem um passado (que não existe)


O tempo não é coisa de Deus, é coisa da nossa cabeça. E que coisa complicada: descobrir que o passado não existe.

Por Renato Essenfelder
 

arte: loro verz

»Todo mundo tem um passado - meio inventado. 

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Quando tenho muita saudade, preso na nostalgia, belisco a pele com força e me acordo subitamente. Quando enciumado, inconformado com outro evento longínquo, encosto a cabeça na janela em busca de luz. O passado não existe.

Lembro da reflexão de Santo Agostinho sobre o tempo, em suas Confissões. Quando lhe perguntam por que Deus criou o mundo e quando questionam o que Deus fazia antes da criação, sua resposta é a mesma: antes da criação não havia, pois, tempo. O tempo é parte dela.

Por isso não faz sentido questionar a "razão" da criação, pois fazê-lo implicaria numa impossível anterioridade: primeiro viria um propósito, depois a ação. Mas, se não há tempo para Deus, que vive fora dele, não se pode falar em motivo prévio. Deus vive eternamente, num presente infinitamente extenso, além do que podemos conceber.

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Somos nós os mortais, portanto o tempo é problema só nosso. Não de Deus, jamais de Deus.

O tempo é, literalmente, coisa da nossa cabeça. Ou da alma. Invenção entediada que se acumulou sobre nós sinistra e prenhe feito nuvem de tempestade. E que coisa complicada, o tempo. Convenhamos: o ser humano gosta de complicar tudo: amor, velhice, crueldade, bem, mal, família, felicidade.

Desde a invenção do tempo, vivemos com a cabeça no passado - aquele tempo que não se toca nem se cheira, que nem sequer se compartilha. (De uma mesma festa as lembranças variam tanto, de um mesmo beijo, de um mesmo funeral...) O passado só existe enquanto nele pensamos, é mesmo coisa de nossa cabeça. O passado não é nada objetivo, é pura lembrança, tão fácil de falsificar. E o futuro, esperança, tão difícil de domar.

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Espremido e sem ar, entre um e outro, está o presente. O presente sufocado. O único tempo que há: nele que a gente lembra do passado e sonha com o futuro, às vezes, simultaneamente. No presente a gente se desdobra em todos os tempos possíveis. Por isso Agostinho propõe: melhor seria chamar os tempos de presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. O que acontece só pode acontecer no instante.

No presente, todo mundo tem um passado - que, sem isso, não existiria. No presente inventamos o pretérito, e quantas oportunidades: lembrar do que quiser, contar a história que melhor servir. Todo mundo tem um passado meio inventado, meio equivocado, que varia brutalmente conforme a perspectiva - conforme, até, a hora do dia. 

Se eu pudesse dar um conselho a quem quer que fosse - digamos, a mim mesmo -, diria, então, que vivesse mais o presente. Que se preocupasse menos com lembranças e expectativas. Pois tudo o que acontece, acontece agora.

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E tudo o que acontece, nunca, nunca se repete.«

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»Todo mundo tem um passado - meio inventado. 

Quando tenho muita saudade, preso na nostalgia, belisco a pele com força e me acordo subitamente. Quando enciumado, inconformado com outro evento longínquo, encosto a cabeça na janela em busca de luz. O passado não existe.

Lembro da reflexão de Santo Agostinho sobre o tempo, em suas Confissões. Quando lhe perguntam por que Deus criou o mundo e quando questionam o que Deus fazia antes da criação, sua resposta é a mesma: antes da criação não havia, pois, tempo. O tempo é parte dela.

Por isso não faz sentido questionar a "razão" da criação, pois fazê-lo implicaria numa impossível anterioridade: primeiro viria um propósito, depois a ação. Mas, se não há tempo para Deus, que vive fora dele, não se pode falar em motivo prévio. Deus vive eternamente, num presente infinitamente extenso, além do que podemos conceber.

Somos nós os mortais, portanto o tempo é problema só nosso. Não de Deus, jamais de Deus.

O tempo é, literalmente, coisa da nossa cabeça. Ou da alma. Invenção entediada que se acumulou sobre nós sinistra e prenhe feito nuvem de tempestade. E que coisa complicada, o tempo. Convenhamos: o ser humano gosta de complicar tudo: amor, velhice, crueldade, bem, mal, família, felicidade.

Desde a invenção do tempo, vivemos com a cabeça no passado - aquele tempo que não se toca nem se cheira, que nem sequer se compartilha. (De uma mesma festa as lembranças variam tanto, de um mesmo beijo, de um mesmo funeral...) O passado só existe enquanto nele pensamos, é mesmo coisa de nossa cabeça. O passado não é nada objetivo, é pura lembrança, tão fácil de falsificar. E o futuro, esperança, tão difícil de domar.

Espremido e sem ar, entre um e outro, está o presente. O presente sufocado. O único tempo que há: nele que a gente lembra do passado e sonha com o futuro, às vezes, simultaneamente. No presente a gente se desdobra em todos os tempos possíveis. Por isso Agostinho propõe: melhor seria chamar os tempos de presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. O que acontece só pode acontecer no instante.

No presente, todo mundo tem um passado - que, sem isso, não existiria. No presente inventamos o pretérito, e quantas oportunidades: lembrar do que quiser, contar a história que melhor servir. Todo mundo tem um passado meio inventado, meio equivocado, que varia brutalmente conforme a perspectiva - conforme, até, a hora do dia. 

Se eu pudesse dar um conselho a quem quer que fosse - digamos, a mim mesmo -, diria, então, que vivesse mais o presente. Que se preocupasse menos com lembranças e expectativas. Pois tudo o que acontece, acontece agora.

E tudo o que acontece, nunca, nunca se repete.«

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Quando tenho muita saudade, preso na nostalgia, belisco a pele com força e me acordo subitamente. Quando enciumado, inconformado com outro evento longínquo, encosto a cabeça na janela em busca de luz. O passado não existe.

Lembro da reflexão de Santo Agostinho sobre o tempo, em suas Confissões. Quando lhe perguntam por que Deus criou o mundo e quando questionam o que Deus fazia antes da criação, sua resposta é a mesma: antes da criação não havia, pois, tempo. O tempo é parte dela.

Por isso não faz sentido questionar a "razão" da criação, pois fazê-lo implicaria numa impossível anterioridade: primeiro viria um propósito, depois a ação. Mas, se não há tempo para Deus, que vive fora dele, não se pode falar em motivo prévio. Deus vive eternamente, num presente infinitamente extenso, além do que podemos conceber.

Somos nós os mortais, portanto o tempo é problema só nosso. Não de Deus, jamais de Deus.

O tempo é, literalmente, coisa da nossa cabeça. Ou da alma. Invenção entediada que se acumulou sobre nós sinistra e prenhe feito nuvem de tempestade. E que coisa complicada, o tempo. Convenhamos: o ser humano gosta de complicar tudo: amor, velhice, crueldade, bem, mal, família, felicidade.

Desde a invenção do tempo, vivemos com a cabeça no passado - aquele tempo que não se toca nem se cheira, que nem sequer se compartilha. (De uma mesma festa as lembranças variam tanto, de um mesmo beijo, de um mesmo funeral...) O passado só existe enquanto nele pensamos, é mesmo coisa de nossa cabeça. O passado não é nada objetivo, é pura lembrança, tão fácil de falsificar. E o futuro, esperança, tão difícil de domar.

Espremido e sem ar, entre um e outro, está o presente. O presente sufocado. O único tempo que há: nele que a gente lembra do passado e sonha com o futuro, às vezes, simultaneamente. No presente a gente se desdobra em todos os tempos possíveis. Por isso Agostinho propõe: melhor seria chamar os tempos de presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. O que acontece só pode acontecer no instante.

No presente, todo mundo tem um passado - que, sem isso, não existiria. No presente inventamos o pretérito, e quantas oportunidades: lembrar do que quiser, contar a história que melhor servir. Todo mundo tem um passado meio inventado, meio equivocado, que varia brutalmente conforme a perspectiva - conforme, até, a hora do dia. 

Se eu pudesse dar um conselho a quem quer que fosse - digamos, a mim mesmo -, diria, então, que vivesse mais o presente. Que se preocupasse menos com lembranças e expectativas. Pois tudo o que acontece, acontece agora.

E tudo o que acontece, nunca, nunca se repete.«

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Lembro da reflexão de Santo Agostinho sobre o tempo, em suas Confissões. Quando lhe perguntam por que Deus criou o mundo e quando questionam o que Deus fazia antes da criação, sua resposta é a mesma: antes da criação não havia, pois, tempo. O tempo é parte dela.

Por isso não faz sentido questionar a "razão" da criação, pois fazê-lo implicaria numa impossível anterioridade: primeiro viria um propósito, depois a ação. Mas, se não há tempo para Deus, que vive fora dele, não se pode falar em motivo prévio. Deus vive eternamente, num presente infinitamente extenso, além do que podemos conceber.

Somos nós os mortais, portanto o tempo é problema só nosso. Não de Deus, jamais de Deus.

O tempo é, literalmente, coisa da nossa cabeça. Ou da alma. Invenção entediada que se acumulou sobre nós sinistra e prenhe feito nuvem de tempestade. E que coisa complicada, o tempo. Convenhamos: o ser humano gosta de complicar tudo: amor, velhice, crueldade, bem, mal, família, felicidade.

Desde a invenção do tempo, vivemos com a cabeça no passado - aquele tempo que não se toca nem se cheira, que nem sequer se compartilha. (De uma mesma festa as lembranças variam tanto, de um mesmo beijo, de um mesmo funeral...) O passado só existe enquanto nele pensamos, é mesmo coisa de nossa cabeça. O passado não é nada objetivo, é pura lembrança, tão fácil de falsificar. E o futuro, esperança, tão difícil de domar.

Espremido e sem ar, entre um e outro, está o presente. O presente sufocado. O único tempo que há: nele que a gente lembra do passado e sonha com o futuro, às vezes, simultaneamente. No presente a gente se desdobra em todos os tempos possíveis. Por isso Agostinho propõe: melhor seria chamar os tempos de presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. O que acontece só pode acontecer no instante.

No presente, todo mundo tem um passado - que, sem isso, não existiria. No presente inventamos o pretérito, e quantas oportunidades: lembrar do que quiser, contar a história que melhor servir. Todo mundo tem um passado meio inventado, meio equivocado, que varia brutalmente conforme a perspectiva - conforme, até, a hora do dia. 

Se eu pudesse dar um conselho a quem quer que fosse - digamos, a mim mesmo -, diria, então, que vivesse mais o presente. Que se preocupasse menos com lembranças e expectativas. Pois tudo o que acontece, acontece agora.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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