Ser mãe é padecer na internet

Opinião|Esgotamento extremo de mães (ou pais) tem nome: burnout parental


Pais esgotados se sentem ineficientes e podem, inclusive, recorrer à violência física e verbal contra os filhos

Por Rita Lisauskas
 Foto: Kat Smith (Pexels)

Quando eu olho ao redor vejo uma quantidade cada vez maior de mães exaustas, também por causa da pandemia, mas não só. Desde antes de o coronavírus virar o mundo de ponta cabeça, a conta cuidar da casa + dos filhos + da vida profissional já não fechava. E depois de perder um grande aliado no cuidado com as crianças, a escola, fechada por mais de um ano em uma tentativa de frear o avanço da doença, equilibrar todos os pratinhos ficou ainda mais difícil e a saúde mental de pais, principalmente das mães, ficou em frangalhos.

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Esse tipo de exaustão não é novo, apenas pôde ser nomeado com mais liberdade de uns tempos para cá. Depois de descobrirmos que o esgotamento extremo no trabalho causa uma doença psíquica, a síndrome de burnout, terapeutas começam a classificar esse cansaço físico e mental extremo causado pela parentalidade como burnout parental. E embora a pandemia tenha aumentado os casos de extenuação de pais e mães, os efeitos desafiadores do nascimento dos filhos na saúde mental dos seus cuidadores já vinham sendo estudados, explica a terapeuta e educadora parental Adriana Drulla, em conversa com o blog.

Blog: O burnout parental já existia antes da pandemia, certo?

Drulla: Agente até acha assim, 'ah o burnout é coisa de pandemia, o burnout parental veio depois da pandemia, porque a gente ficou obviamente em casa, sem ajuda, trabalho e filhos'. E realmente ele aumentou com a pandemia, mas o burnout parental existia desde antes disso. Os primeiros trabalhos sobre o assunto são bem antigos, mas se debruçam principalmente sobre a parentalidade de crianças atípicas, porque esses são os pais naturalmente mais sobrecarregados por conta dessas exigências a mais com as crianças atípicas. Mas em 2018 apareceu a primeira pesquisa falando que não, na verdade o burnout parental pode acontecer com qualquer pessoa que tenha filhos.

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Blog: E como essa sobrecarga se apresenta?

Drulla: É uma sobrecarga que pode aparecer como uma sobrecarga física, mas também pode aparecer como uma sobrecarga mental. Pais de crianças pequenas podem começar a sentir um cansaço físico intenso porque obviamente acabam dormindo menos, a criança pequena pode acordar mais à noite, exigir mais dos pais fisicamente, enquanto os pais de adolescentes podem demonstrar um pouco mais de cansaço mental. E daí vem aquela sensação de 'meu filho dá trabalho demais', 'não aguento mais isso', aquela coisa de querer sumir, mais ou menos assim. Então pode aparecer como um tipo de cansaço ou uma mistura dos dois. Mas o que os pesquisadores em burnout parental mostram é que ele acontece em fases, que não sempre são lineares, mas ainda assim são fases: primeiro a gente tem essa sensação de cansaço, de não dar conta, de sentir que o mundo inteiro está nas nossas costas, de que não vai conseguir lidar com tudo o que precisa fazer. E aí a gente começa a se estender, não dorme pra dar conta à noite do que deveria ter sido feito durante o dia, fica acordada pra trabalhar, começa a se esgotar fisicamente. Então talvez essa seja a primeira fase.

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A terapeuta Adriana Drulla Foto: J. Mantovani

Blog: E o que vem depois disso?

Drulla: A segunda fase é os pais se distanciarem das crianças, aquela coisa de não querer se envolver com os filhos talvez até em um ímpeto inconsciente de preservar a própria energia. Depois disso começam a sentir menos satisfação no seu papel parental, aquilo que trazia preenchimento, sentido e sensação de bem-estar não existe mais, é como se o papel parental perdesse a graça, perdesse a cor, o que é muito similar ao que acontece no burnout profissional, quando se perde o brilho pelo trabalho, perde-se o interesse. Isso também acontece com os pais. E, por último, essa exaustão e essa falta de envolvimento, essa falta de brilho nos olhos começa a causar comportamentos do qual, óbvio, os pais não se orgulham. Muitos pais começam a gritar muito mais com os filhos, podem recorrer à violência física, à violência verbal, até mesmo aqueles pais que não acreditam nessas estratégias como boas estratégias parentais. Pessoas que são contra a violência podem mesmo assim se virem mais violentas. E na hora que se percebem violentas é que veem que não estão dando conta, sentem uma certa incapacidade de cuidar bem da criança. Mas isso não é incapacidade, mas sim exaustão. E aí eles entram no ciclo de se compararem com outros pais ou se compararem com eles mesmos há tempos atrás, 'eu costumava ser assim e agora não consigo mais'. E essa sensação de ineficiência, de incapacidade, de inferioridade, contribui ainda mais para esse ciclo destrutivo em que cada vez eu me sinto pior, mais violento, mais reativo, menos capaz. Quanto mais eu percebo isso, mais inferior eu me sinto, e aí eu fico cada vez mais desconectado da criança e aquilo se torna um ciclo destrutivo.

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Blog: E os pais demoram pra identificar isso que tá acontecendo ou não conseguem nomear esse ciclo de coisas negativas, achando que podem ser outras coisas?

Drulla: Acho que se a gente pode dizer que existe uma regra ou uma norma, na maioria das vezes o que acontece é que os pais se veem cansados sim, sabem que estão mais reativos porque estão cansados, exauridos, então essa consciência pode existir. Mas ainda assim há um julgamento, um autojulgamento, em que eles se classificam como incapazes e inferiores. Então existe uma consciência de que eu estou fazendo isso porque eu estou cansada, mas ao mesmo tempo o pensamento que vem é 'se fosse outra pessoa cansada ela não faria isso, eu faço isso quando cansada porque eu sou ruim', entende? Falta aquele senso de humanidade comum, falta aquele senso de pensar 'eu estou fazendo isso porque eu estou cansada e qualquer pessoa cansada na minha situação teria dificuldades'. Isso falta.

Blog: E qual que é o caminho pra sair desse lugar nebuloso, cinzento, dessa névoa que o burnout parental coloca esses cuidadores?

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Drulla: Eu acho que a primeira boa saída é a gente pedir ajuda, conseguir falar sobre o que sente. Porque quando a gente fala sobre o que sente começa a perceber que o desgaste, a estafa e o excesso de responsabilidades causam comportamentos mais reativos em qualquer pessoa. A saída deste lugar envolve entender que o problema não é incapacidade, não é que se seja inadequado, o problema não é que não se dá conta, não é que ela é uma mãe ou ele um pai ruim, o problema é que se está sobrecarregado, precisa-se de ajuda, é preciso olhar pra si de uma forma um pouco menos exigente.

Então eu acho que primeiro a gente precisa reconhecer as coisas positivas que se faz, reconhecer a nossa capacidade, nossos recursos internos, aprender talvez a lidar com as nossas emoções, fazer um exercício físico, praticar uma meditação, uma respiração, alguma coisa que nos ajude a regular melhor as nossas emoções. Mas, por outro lado, devido ao tamanho do desafio é importante que a gente pense também sobre como pode dar conta disso junto com outras pessoas, como que a gente pode distribuir melhor o que abraça. De repente, uma forma pode ser deixar de se exigir tanto, não querer tanto alcançar a perfeição, talvez eu não precise ser a melhor profissional e a melhor mãe se isso significar nunca ter um tempo pra mim. Talvez eu não precise ser a melhor em tudo, mesmo naquilo que parece ser mais básico, ser uma profissional boa o suficiente, uma mãe boa o suficiente às vezes é pesado e às vezes a gente precisa de ajuda pra isso também. Porque certamente essa coisa de criar filho em dupla é uma coisa nova na nossa civilização, somos feitos pra funcionarmos em tribos, então a gente precisa de ajuda pra cuidar de filho. Pedir ajuda e distribuir tarefas, se possível, é importante também. A gente precisa que a sociedade nos ajude a encontrar soluções, opções de ajuda no cuidado com as crianças.

Blog: E para não entrar nesse processo ou até pra conseguir sair desse processo precisa se ter consciência de que não dá pra fazer tudo, não dá pra carregar todas essas pedras, sozinho ou sozinha, ou às vezes como casal. Você acha que isso é um ponto importante para se evitar entrar nesse processo de burnout?

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Drulla: Sim.E a gente precisa parar de falar deveria, é uma palavra que a gente precisa reconsiderar o quanto a gente usa, eu deveria isso, eu deveria aquilo, como se a gente tivesse sempre devendo. E é importante ter um tempo pra si, ter um tempo pro casal. Entender que a gente não vai conseguir dar conta de todas as necessidades da criança, então às vezes é necessário deixar a criança com outra pessoa pra você conseguir cuidar de você, pra você conseguir perseguir os objetivos que são importantes na sua vida e voltar inteira pra aquela relação.

Blog: Você acha que a pandemia deixou isso ainda mais evidente ou isso já era uma coisa muito pesada mesmo antes de a gente ter que cuidar dos filhos, trabalhar dentro de casa, ficar sem a ajuda escola? Como é que você vê esses últimos dois anos que a gente passou quando se pensa no burnout parental?

Drulla: Sem dúvida a pandemia aumentou muito os casos de burnout porque a gente perdeu aquela ajuda que estávamos acostumados a ter, pelo menos daquele tempo dos filhos na escola. Muitas pessoas tinham ajuda de terceiros também e não foi mais possível continuar com esse auxílio por conta da pandemia, do isolamento. Então ficamos isolados em casa com essa tarefa de cuidar das crianças, que é uma tarefa 24 horas por dia, 7 dias por semana, além da vida profissional e dos cuidados com a casa. Na Austrália, por exemplo, foi feita uma pesquisa em que se descobriu que os pais que trabalhavam e que também eram principais cuidadores das crianças, normalmente mães, mas, enfim, aqueles pais que trabalhavam, que tinham um emprego, mas que também eram o principal cuidador dos filhos durante a pandemia tinham quatro vezes mais chances de ter burnout do que pais que não eram os principais cuidadores. Então certamente a pandemia não só aumentou o burnout parental como deixou muito mais evidente que isso poderia acontecer.

Antes da pandemia existia uma cobrança muito grande da sociedade principalmente sobre as mulheres que trabalhavam, colocavam essas mulheres até como culpadas quando não davam conta de tudo. 'Por que é que você resolveu ter filho?', ou então 'Por que é que você resolveu trabalhar? 'Então as mulheres tinham vergonha de assumir que não estavam dando conta quando não estavam dando conta. E obviamente, quando a gente não pode assumir isso, a gente também não pode pedir ajuda, o que só agrava mais o problema, porque o burnout é um problema que a primeira a saída é pedir ajuda. E se a gente está com vergonha, não conseguimos pedir. Então eu acho que a pandemia nos permitiu falar sobre isso, porque de repente estávamos todos sentindo a mesma coisa, então talvez isso tenha desmistificado um pouco essa sobrecarga, tirado um pouco dessa sensação de vergonha e incapacidade. Mas certamente o burnout parental sempre existiu, principalmente entre mães solteiras. No Brasil, por exemplo, a gente sabe que temos uma parcela gigantesca de mulheres que tem que dar conta de tudo sozinha. Às vezes há mulheres que até têm um companheiro, mas elenão faz o seu papel, não divide as funções. Existe muita mulher que tem o companheiro, mas na hora do vamos ver não tem, né?

Blog: Tem 'mãe solteira' que é casada, né?

Drula: É, pois é. Tem muita 'mãe solteira' casada.

Leia mais: 'É a primeira vez que se vê campanha difamatória patrocinada por quem deveria estimular a vacinação'

Leia também: Está difícil engravidar? A culpa pode ser da endometriose

 

 Foto: Kat Smith (Pexels)

Quando eu olho ao redor vejo uma quantidade cada vez maior de mães exaustas, também por causa da pandemia, mas não só. Desde antes de o coronavírus virar o mundo de ponta cabeça, a conta cuidar da casa + dos filhos + da vida profissional já não fechava. E depois de perder um grande aliado no cuidado com as crianças, a escola, fechada por mais de um ano em uma tentativa de frear o avanço da doença, equilibrar todos os pratinhos ficou ainda mais difícil e a saúde mental de pais, principalmente das mães, ficou em frangalhos.

Esse tipo de exaustão não é novo, apenas pôde ser nomeado com mais liberdade de uns tempos para cá. Depois de descobrirmos que o esgotamento extremo no trabalho causa uma doença psíquica, a síndrome de burnout, terapeutas começam a classificar esse cansaço físico e mental extremo causado pela parentalidade como burnout parental. E embora a pandemia tenha aumentado os casos de extenuação de pais e mães, os efeitos desafiadores do nascimento dos filhos na saúde mental dos seus cuidadores já vinham sendo estudados, explica a terapeuta e educadora parental Adriana Drulla, em conversa com o blog.

Blog: O burnout parental já existia antes da pandemia, certo?

Drulla: Agente até acha assim, 'ah o burnout é coisa de pandemia, o burnout parental veio depois da pandemia, porque a gente ficou obviamente em casa, sem ajuda, trabalho e filhos'. E realmente ele aumentou com a pandemia, mas o burnout parental existia desde antes disso. Os primeiros trabalhos sobre o assunto são bem antigos, mas se debruçam principalmente sobre a parentalidade de crianças atípicas, porque esses são os pais naturalmente mais sobrecarregados por conta dessas exigências a mais com as crianças atípicas. Mas em 2018 apareceu a primeira pesquisa falando que não, na verdade o burnout parental pode acontecer com qualquer pessoa que tenha filhos.

Blog: E como essa sobrecarga se apresenta?

Drulla: É uma sobrecarga que pode aparecer como uma sobrecarga física, mas também pode aparecer como uma sobrecarga mental. Pais de crianças pequenas podem começar a sentir um cansaço físico intenso porque obviamente acabam dormindo menos, a criança pequena pode acordar mais à noite, exigir mais dos pais fisicamente, enquanto os pais de adolescentes podem demonstrar um pouco mais de cansaço mental. E daí vem aquela sensação de 'meu filho dá trabalho demais', 'não aguento mais isso', aquela coisa de querer sumir, mais ou menos assim. Então pode aparecer como um tipo de cansaço ou uma mistura dos dois. Mas o que os pesquisadores em burnout parental mostram é que ele acontece em fases, que não sempre são lineares, mas ainda assim são fases: primeiro a gente tem essa sensação de cansaço, de não dar conta, de sentir que o mundo inteiro está nas nossas costas, de que não vai conseguir lidar com tudo o que precisa fazer. E aí a gente começa a se estender, não dorme pra dar conta à noite do que deveria ter sido feito durante o dia, fica acordada pra trabalhar, começa a se esgotar fisicamente. Então talvez essa seja a primeira fase.

A terapeuta Adriana Drulla Foto: J. Mantovani

Blog: E o que vem depois disso?

Drulla: A segunda fase é os pais se distanciarem das crianças, aquela coisa de não querer se envolver com os filhos talvez até em um ímpeto inconsciente de preservar a própria energia. Depois disso começam a sentir menos satisfação no seu papel parental, aquilo que trazia preenchimento, sentido e sensação de bem-estar não existe mais, é como se o papel parental perdesse a graça, perdesse a cor, o que é muito similar ao que acontece no burnout profissional, quando se perde o brilho pelo trabalho, perde-se o interesse. Isso também acontece com os pais. E, por último, essa exaustão e essa falta de envolvimento, essa falta de brilho nos olhos começa a causar comportamentos do qual, óbvio, os pais não se orgulham. Muitos pais começam a gritar muito mais com os filhos, podem recorrer à violência física, à violência verbal, até mesmo aqueles pais que não acreditam nessas estratégias como boas estratégias parentais. Pessoas que são contra a violência podem mesmo assim se virem mais violentas. E na hora que se percebem violentas é que veem que não estão dando conta, sentem uma certa incapacidade de cuidar bem da criança. Mas isso não é incapacidade, mas sim exaustão. E aí eles entram no ciclo de se compararem com outros pais ou se compararem com eles mesmos há tempos atrás, 'eu costumava ser assim e agora não consigo mais'. E essa sensação de ineficiência, de incapacidade, de inferioridade, contribui ainda mais para esse ciclo destrutivo em que cada vez eu me sinto pior, mais violento, mais reativo, menos capaz. Quanto mais eu percebo isso, mais inferior eu me sinto, e aí eu fico cada vez mais desconectado da criança e aquilo se torna um ciclo destrutivo.

Blog: E os pais demoram pra identificar isso que tá acontecendo ou não conseguem nomear esse ciclo de coisas negativas, achando que podem ser outras coisas?

Drulla: Acho que se a gente pode dizer que existe uma regra ou uma norma, na maioria das vezes o que acontece é que os pais se veem cansados sim, sabem que estão mais reativos porque estão cansados, exauridos, então essa consciência pode existir. Mas ainda assim há um julgamento, um autojulgamento, em que eles se classificam como incapazes e inferiores. Então existe uma consciência de que eu estou fazendo isso porque eu estou cansada, mas ao mesmo tempo o pensamento que vem é 'se fosse outra pessoa cansada ela não faria isso, eu faço isso quando cansada porque eu sou ruim', entende? Falta aquele senso de humanidade comum, falta aquele senso de pensar 'eu estou fazendo isso porque eu estou cansada e qualquer pessoa cansada na minha situação teria dificuldades'. Isso falta.

Blog: E qual que é o caminho pra sair desse lugar nebuloso, cinzento, dessa névoa que o burnout parental coloca esses cuidadores?

Drulla: Eu acho que a primeira boa saída é a gente pedir ajuda, conseguir falar sobre o que sente. Porque quando a gente fala sobre o que sente começa a perceber que o desgaste, a estafa e o excesso de responsabilidades causam comportamentos mais reativos em qualquer pessoa. A saída deste lugar envolve entender que o problema não é incapacidade, não é que se seja inadequado, o problema não é que não se dá conta, não é que ela é uma mãe ou ele um pai ruim, o problema é que se está sobrecarregado, precisa-se de ajuda, é preciso olhar pra si de uma forma um pouco menos exigente.

Então eu acho que primeiro a gente precisa reconhecer as coisas positivas que se faz, reconhecer a nossa capacidade, nossos recursos internos, aprender talvez a lidar com as nossas emoções, fazer um exercício físico, praticar uma meditação, uma respiração, alguma coisa que nos ajude a regular melhor as nossas emoções. Mas, por outro lado, devido ao tamanho do desafio é importante que a gente pense também sobre como pode dar conta disso junto com outras pessoas, como que a gente pode distribuir melhor o que abraça. De repente, uma forma pode ser deixar de se exigir tanto, não querer tanto alcançar a perfeição, talvez eu não precise ser a melhor profissional e a melhor mãe se isso significar nunca ter um tempo pra mim. Talvez eu não precise ser a melhor em tudo, mesmo naquilo que parece ser mais básico, ser uma profissional boa o suficiente, uma mãe boa o suficiente às vezes é pesado e às vezes a gente precisa de ajuda pra isso também. Porque certamente essa coisa de criar filho em dupla é uma coisa nova na nossa civilização, somos feitos pra funcionarmos em tribos, então a gente precisa de ajuda pra cuidar de filho. Pedir ajuda e distribuir tarefas, se possível, é importante também. A gente precisa que a sociedade nos ajude a encontrar soluções, opções de ajuda no cuidado com as crianças.

Blog: E para não entrar nesse processo ou até pra conseguir sair desse processo precisa se ter consciência de que não dá pra fazer tudo, não dá pra carregar todas essas pedras, sozinho ou sozinha, ou às vezes como casal. Você acha que isso é um ponto importante para se evitar entrar nesse processo de burnout?

Drulla: Sim.E a gente precisa parar de falar deveria, é uma palavra que a gente precisa reconsiderar o quanto a gente usa, eu deveria isso, eu deveria aquilo, como se a gente tivesse sempre devendo. E é importante ter um tempo pra si, ter um tempo pro casal. Entender que a gente não vai conseguir dar conta de todas as necessidades da criança, então às vezes é necessário deixar a criança com outra pessoa pra você conseguir cuidar de você, pra você conseguir perseguir os objetivos que são importantes na sua vida e voltar inteira pra aquela relação.

Blog: Você acha que a pandemia deixou isso ainda mais evidente ou isso já era uma coisa muito pesada mesmo antes de a gente ter que cuidar dos filhos, trabalhar dentro de casa, ficar sem a ajuda escola? Como é que você vê esses últimos dois anos que a gente passou quando se pensa no burnout parental?

Drulla: Sem dúvida a pandemia aumentou muito os casos de burnout porque a gente perdeu aquela ajuda que estávamos acostumados a ter, pelo menos daquele tempo dos filhos na escola. Muitas pessoas tinham ajuda de terceiros também e não foi mais possível continuar com esse auxílio por conta da pandemia, do isolamento. Então ficamos isolados em casa com essa tarefa de cuidar das crianças, que é uma tarefa 24 horas por dia, 7 dias por semana, além da vida profissional e dos cuidados com a casa. Na Austrália, por exemplo, foi feita uma pesquisa em que se descobriu que os pais que trabalhavam e que também eram principais cuidadores das crianças, normalmente mães, mas, enfim, aqueles pais que trabalhavam, que tinham um emprego, mas que também eram o principal cuidador dos filhos durante a pandemia tinham quatro vezes mais chances de ter burnout do que pais que não eram os principais cuidadores. Então certamente a pandemia não só aumentou o burnout parental como deixou muito mais evidente que isso poderia acontecer.

Antes da pandemia existia uma cobrança muito grande da sociedade principalmente sobre as mulheres que trabalhavam, colocavam essas mulheres até como culpadas quando não davam conta de tudo. 'Por que é que você resolveu ter filho?', ou então 'Por que é que você resolveu trabalhar? 'Então as mulheres tinham vergonha de assumir que não estavam dando conta quando não estavam dando conta. E obviamente, quando a gente não pode assumir isso, a gente também não pode pedir ajuda, o que só agrava mais o problema, porque o burnout é um problema que a primeira a saída é pedir ajuda. E se a gente está com vergonha, não conseguimos pedir. Então eu acho que a pandemia nos permitiu falar sobre isso, porque de repente estávamos todos sentindo a mesma coisa, então talvez isso tenha desmistificado um pouco essa sobrecarga, tirado um pouco dessa sensação de vergonha e incapacidade. Mas certamente o burnout parental sempre existiu, principalmente entre mães solteiras. No Brasil, por exemplo, a gente sabe que temos uma parcela gigantesca de mulheres que tem que dar conta de tudo sozinha. Às vezes há mulheres que até têm um companheiro, mas elenão faz o seu papel, não divide as funções. Existe muita mulher que tem o companheiro, mas na hora do vamos ver não tem, né?

Blog: Tem 'mãe solteira' que é casada, né?

Drula: É, pois é. Tem muita 'mãe solteira' casada.

Leia mais: 'É a primeira vez que se vê campanha difamatória patrocinada por quem deveria estimular a vacinação'

Leia também: Está difícil engravidar? A culpa pode ser da endometriose

 

 Foto: Kat Smith (Pexels)

Quando eu olho ao redor vejo uma quantidade cada vez maior de mães exaustas, também por causa da pandemia, mas não só. Desde antes de o coronavírus virar o mundo de ponta cabeça, a conta cuidar da casa + dos filhos + da vida profissional já não fechava. E depois de perder um grande aliado no cuidado com as crianças, a escola, fechada por mais de um ano em uma tentativa de frear o avanço da doença, equilibrar todos os pratinhos ficou ainda mais difícil e a saúde mental de pais, principalmente das mães, ficou em frangalhos.

Esse tipo de exaustão não é novo, apenas pôde ser nomeado com mais liberdade de uns tempos para cá. Depois de descobrirmos que o esgotamento extremo no trabalho causa uma doença psíquica, a síndrome de burnout, terapeutas começam a classificar esse cansaço físico e mental extremo causado pela parentalidade como burnout parental. E embora a pandemia tenha aumentado os casos de extenuação de pais e mães, os efeitos desafiadores do nascimento dos filhos na saúde mental dos seus cuidadores já vinham sendo estudados, explica a terapeuta e educadora parental Adriana Drulla, em conversa com o blog.

Blog: O burnout parental já existia antes da pandemia, certo?

Drulla: Agente até acha assim, 'ah o burnout é coisa de pandemia, o burnout parental veio depois da pandemia, porque a gente ficou obviamente em casa, sem ajuda, trabalho e filhos'. E realmente ele aumentou com a pandemia, mas o burnout parental existia desde antes disso. Os primeiros trabalhos sobre o assunto são bem antigos, mas se debruçam principalmente sobre a parentalidade de crianças atípicas, porque esses são os pais naturalmente mais sobrecarregados por conta dessas exigências a mais com as crianças atípicas. Mas em 2018 apareceu a primeira pesquisa falando que não, na verdade o burnout parental pode acontecer com qualquer pessoa que tenha filhos.

Blog: E como essa sobrecarga se apresenta?

Drulla: É uma sobrecarga que pode aparecer como uma sobrecarga física, mas também pode aparecer como uma sobrecarga mental. Pais de crianças pequenas podem começar a sentir um cansaço físico intenso porque obviamente acabam dormindo menos, a criança pequena pode acordar mais à noite, exigir mais dos pais fisicamente, enquanto os pais de adolescentes podem demonstrar um pouco mais de cansaço mental. E daí vem aquela sensação de 'meu filho dá trabalho demais', 'não aguento mais isso', aquela coisa de querer sumir, mais ou menos assim. Então pode aparecer como um tipo de cansaço ou uma mistura dos dois. Mas o que os pesquisadores em burnout parental mostram é que ele acontece em fases, que não sempre são lineares, mas ainda assim são fases: primeiro a gente tem essa sensação de cansaço, de não dar conta, de sentir que o mundo inteiro está nas nossas costas, de que não vai conseguir lidar com tudo o que precisa fazer. E aí a gente começa a se estender, não dorme pra dar conta à noite do que deveria ter sido feito durante o dia, fica acordada pra trabalhar, começa a se esgotar fisicamente. Então talvez essa seja a primeira fase.

A terapeuta Adriana Drulla Foto: J. Mantovani

Blog: E o que vem depois disso?

Drulla: A segunda fase é os pais se distanciarem das crianças, aquela coisa de não querer se envolver com os filhos talvez até em um ímpeto inconsciente de preservar a própria energia. Depois disso começam a sentir menos satisfação no seu papel parental, aquilo que trazia preenchimento, sentido e sensação de bem-estar não existe mais, é como se o papel parental perdesse a graça, perdesse a cor, o que é muito similar ao que acontece no burnout profissional, quando se perde o brilho pelo trabalho, perde-se o interesse. Isso também acontece com os pais. E, por último, essa exaustão e essa falta de envolvimento, essa falta de brilho nos olhos começa a causar comportamentos do qual, óbvio, os pais não se orgulham. Muitos pais começam a gritar muito mais com os filhos, podem recorrer à violência física, à violência verbal, até mesmo aqueles pais que não acreditam nessas estratégias como boas estratégias parentais. Pessoas que são contra a violência podem mesmo assim se virem mais violentas. E na hora que se percebem violentas é que veem que não estão dando conta, sentem uma certa incapacidade de cuidar bem da criança. Mas isso não é incapacidade, mas sim exaustão. E aí eles entram no ciclo de se compararem com outros pais ou se compararem com eles mesmos há tempos atrás, 'eu costumava ser assim e agora não consigo mais'. E essa sensação de ineficiência, de incapacidade, de inferioridade, contribui ainda mais para esse ciclo destrutivo em que cada vez eu me sinto pior, mais violento, mais reativo, menos capaz. Quanto mais eu percebo isso, mais inferior eu me sinto, e aí eu fico cada vez mais desconectado da criança e aquilo se torna um ciclo destrutivo.

Blog: E os pais demoram pra identificar isso que tá acontecendo ou não conseguem nomear esse ciclo de coisas negativas, achando que podem ser outras coisas?

Drulla: Acho que se a gente pode dizer que existe uma regra ou uma norma, na maioria das vezes o que acontece é que os pais se veem cansados sim, sabem que estão mais reativos porque estão cansados, exauridos, então essa consciência pode existir. Mas ainda assim há um julgamento, um autojulgamento, em que eles se classificam como incapazes e inferiores. Então existe uma consciência de que eu estou fazendo isso porque eu estou cansada, mas ao mesmo tempo o pensamento que vem é 'se fosse outra pessoa cansada ela não faria isso, eu faço isso quando cansada porque eu sou ruim', entende? Falta aquele senso de humanidade comum, falta aquele senso de pensar 'eu estou fazendo isso porque eu estou cansada e qualquer pessoa cansada na minha situação teria dificuldades'. Isso falta.

Blog: E qual que é o caminho pra sair desse lugar nebuloso, cinzento, dessa névoa que o burnout parental coloca esses cuidadores?

Drulla: Eu acho que a primeira boa saída é a gente pedir ajuda, conseguir falar sobre o que sente. Porque quando a gente fala sobre o que sente começa a perceber que o desgaste, a estafa e o excesso de responsabilidades causam comportamentos mais reativos em qualquer pessoa. A saída deste lugar envolve entender que o problema não é incapacidade, não é que se seja inadequado, o problema não é que não se dá conta, não é que ela é uma mãe ou ele um pai ruim, o problema é que se está sobrecarregado, precisa-se de ajuda, é preciso olhar pra si de uma forma um pouco menos exigente.

Então eu acho que primeiro a gente precisa reconhecer as coisas positivas que se faz, reconhecer a nossa capacidade, nossos recursos internos, aprender talvez a lidar com as nossas emoções, fazer um exercício físico, praticar uma meditação, uma respiração, alguma coisa que nos ajude a regular melhor as nossas emoções. Mas, por outro lado, devido ao tamanho do desafio é importante que a gente pense também sobre como pode dar conta disso junto com outras pessoas, como que a gente pode distribuir melhor o que abraça. De repente, uma forma pode ser deixar de se exigir tanto, não querer tanto alcançar a perfeição, talvez eu não precise ser a melhor profissional e a melhor mãe se isso significar nunca ter um tempo pra mim. Talvez eu não precise ser a melhor em tudo, mesmo naquilo que parece ser mais básico, ser uma profissional boa o suficiente, uma mãe boa o suficiente às vezes é pesado e às vezes a gente precisa de ajuda pra isso também. Porque certamente essa coisa de criar filho em dupla é uma coisa nova na nossa civilização, somos feitos pra funcionarmos em tribos, então a gente precisa de ajuda pra cuidar de filho. Pedir ajuda e distribuir tarefas, se possível, é importante também. A gente precisa que a sociedade nos ajude a encontrar soluções, opções de ajuda no cuidado com as crianças.

Blog: E para não entrar nesse processo ou até pra conseguir sair desse processo precisa se ter consciência de que não dá pra fazer tudo, não dá pra carregar todas essas pedras, sozinho ou sozinha, ou às vezes como casal. Você acha que isso é um ponto importante para se evitar entrar nesse processo de burnout?

Drulla: Sim.E a gente precisa parar de falar deveria, é uma palavra que a gente precisa reconsiderar o quanto a gente usa, eu deveria isso, eu deveria aquilo, como se a gente tivesse sempre devendo. E é importante ter um tempo pra si, ter um tempo pro casal. Entender que a gente não vai conseguir dar conta de todas as necessidades da criança, então às vezes é necessário deixar a criança com outra pessoa pra você conseguir cuidar de você, pra você conseguir perseguir os objetivos que são importantes na sua vida e voltar inteira pra aquela relação.

Blog: Você acha que a pandemia deixou isso ainda mais evidente ou isso já era uma coisa muito pesada mesmo antes de a gente ter que cuidar dos filhos, trabalhar dentro de casa, ficar sem a ajuda escola? Como é que você vê esses últimos dois anos que a gente passou quando se pensa no burnout parental?

Drulla: Sem dúvida a pandemia aumentou muito os casos de burnout porque a gente perdeu aquela ajuda que estávamos acostumados a ter, pelo menos daquele tempo dos filhos na escola. Muitas pessoas tinham ajuda de terceiros também e não foi mais possível continuar com esse auxílio por conta da pandemia, do isolamento. Então ficamos isolados em casa com essa tarefa de cuidar das crianças, que é uma tarefa 24 horas por dia, 7 dias por semana, além da vida profissional e dos cuidados com a casa. Na Austrália, por exemplo, foi feita uma pesquisa em que se descobriu que os pais que trabalhavam e que também eram principais cuidadores das crianças, normalmente mães, mas, enfim, aqueles pais que trabalhavam, que tinham um emprego, mas que também eram o principal cuidador dos filhos durante a pandemia tinham quatro vezes mais chances de ter burnout do que pais que não eram os principais cuidadores. Então certamente a pandemia não só aumentou o burnout parental como deixou muito mais evidente que isso poderia acontecer.

Antes da pandemia existia uma cobrança muito grande da sociedade principalmente sobre as mulheres que trabalhavam, colocavam essas mulheres até como culpadas quando não davam conta de tudo. 'Por que é que você resolveu ter filho?', ou então 'Por que é que você resolveu trabalhar? 'Então as mulheres tinham vergonha de assumir que não estavam dando conta quando não estavam dando conta. E obviamente, quando a gente não pode assumir isso, a gente também não pode pedir ajuda, o que só agrava mais o problema, porque o burnout é um problema que a primeira a saída é pedir ajuda. E se a gente está com vergonha, não conseguimos pedir. Então eu acho que a pandemia nos permitiu falar sobre isso, porque de repente estávamos todos sentindo a mesma coisa, então talvez isso tenha desmistificado um pouco essa sobrecarga, tirado um pouco dessa sensação de vergonha e incapacidade. Mas certamente o burnout parental sempre existiu, principalmente entre mães solteiras. No Brasil, por exemplo, a gente sabe que temos uma parcela gigantesca de mulheres que tem que dar conta de tudo sozinha. Às vezes há mulheres que até têm um companheiro, mas elenão faz o seu papel, não divide as funções. Existe muita mulher que tem o companheiro, mas na hora do vamos ver não tem, né?

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Drula: É, pois é. Tem muita 'mãe solteira' casada.

Leia mais: 'É a primeira vez que se vê campanha difamatória patrocinada por quem deveria estimular a vacinação'

Leia também: Está difícil engravidar? A culpa pode ser da endometriose

 

Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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