Basta olhar para uma mãe prestes a voltar ao trabalho, às vésperas do fim de sua licença-maternidade, ou para aquela que já voltou à rotina: sempre há uma sombra de dúvida pairando sobre seus olhos. Se você pudesse ouvir seus pensamentos, seria algo como: 'será que fiz a escolha certa ao voltar ao trabalho/ao desistir da vida profissional/ao adotar o home office/ao manter o mesmo ritmo de antes do meu filho nascer?'. Vida profissional e maternidade estão sempre em uma queda de braço e o equilíbrio, muitas vezes, parece algo difícil de ser atingido. "A infelicidade não vem do fato de a 'conta não fechar', porque ela não fecha nunca, mas de supormos que deveríamos conseguir conciliar estas escolhas sem perdas. Acostumemos ou façamos outras escolhas, com outras perdas", afirma Vera Iaconelli, psicanalista, diretora do Instituto Gerar, que abre o primeiro debate de uma série de encontros mensais promovidos na Roda de Encontros Matutaí, na Livraria da Vila, em São Paulo, até dezembro. Vera falou sobre o "presente de estar presente" e conversou com o blog um pouco antes de sua palestra.
Blog: O que vale mais a pena quando o assunto são os filhos: mais horas juntos, mesmo sem se dedicar inteiramente a eles, porque há a rotina com a casa e com as obrigações do dia a dia, ou aquele tempo exclusivo, mesmo que menor, que muitos pais separam para se dedicar exclusivamente às crianças?
Vera:Eu retornaria a pergunta: o que é possível realmente para os pais e para cada família específica? Porque, às vezes, os pais criam um mundo ideal, no qual não haveria trabalho, não haveria outras obrigações e tampouco outros desejos e no qual eles deveriam estar sempre disponíveis para os filhos. Menos do que este ideal parece para estes pais como negligência.
Para começar, estar sempre com os filhos não é o melhor para os filhos, exceto quando recém-nascidos e, ainda assim, são necessárias algumas pessoas se revezando nesta tarefa. Então pensemos que cabe aos pais introduzir os filhos no estilo de vida possível para eles e dentro da realidade do mundo em que vivemos.
A partir daí começamos a pensar, primeiro, quanto tempo eu disponho realmente para estar com meus filhos entre trabalho e obrigações incontornáveis? Segundo, mas não menos importante, quanto tempo eu desejo estar com eles, porque bons pais e mães têm, necessariamente, outros interesses pessoais. Essas respostas são individuais e devem ser dadas com o máximo de sinceridade para que o encontro com os filhos não seja uma mera formalidade ou obrigação.
Por outro lado, temos pais que perdem tempo buscando prover filhos de bens que eles trocariam de bom grado por uma família com maior intimidade. Seja qual for o equílibrio nesta balança, sempre se perde algo, seja do lado da carreira, seja do lado da vida pessoal, seja a familiar. O cobertor é curto e as pessoas têm que fazer escolhas. Não há regras, mas há consequências.
Também cabe perguntar o que chamamos de "tempo de qualidade"? Será que significa se dedicar inteiramente ao filho, enquanto estamos juntos? Essa resposta depende da idade e vai se modificando ao longo dos anos, mas uma dica é: estar disponível não é estar o tempo todo fazendo coisas com as crianças. Por vezes, estar disponível é a criança saber que, se ela precisar, você estará lá, embora não o tempo todo.
Blog: Recentemente uma reportagem feita pelo próprio Estadão suscitou um debate nas redes sociais: uma mãe contava que o filho ficava o dia inteiro na escola que, além de lavar os uniformes do menino, ainda providenciava todas as refeições da criança. A escola afirmava oferecer o serviço para que a família tivesse "tempo de qualidade com as crianças", longe das obrigações do dia a dia. O que é tempo de qualidade? Ficar com o filho em um contexto onde as obrigações com a casa e com a rotina já foram vencidas e o tempo é exclusivo para ele? Ou ter o filho ao lado, aprendendo que a rotina não é fácil também é um "tempo junto" que vale a pena e não merece ser desprezado?
Vera: As famílias têm expectativas e formas diferentes, qualquer regra aqui acaba por fazer supor que haveria "a família ideal". A escolha que você descreveu tem vantagens e desvantagens, mas estejamos atentos de que não tem nada de novo aí. Muitas gerações antes das nossas foram criadas por um séquito de funcionários: sempre que havia condições financeiras e mão de obra disponível se usou este artifício. Isto na história e não é novidade. Muitas mães de aldeias tradicionais africanas, por exemplo, não se ocupam de seus bebês, que são inteiramente cuidados pelas avós. Cabe aos pais saberem o tipo de relação que querem e podem estabelecer com seus filhos e o que querem transmitir a eles sobre a autonomia ou estilo de vida. Não há como julgá-los sem lhes impor nossos modelos.
Blog: Hoje em dia é comum que as mulheres (e também os homens, embora em um número menor), abram mão de empregos que consomem tempo demais de suas vidas em nome de mais tempo com os filhos. Muitos fazem home office e sentem que não conseguem nem ser mães e pais e nem profissionais de qualidade. Como equilibrar o tempo entre a maternidade/paternidade e o trabalho? Existe felicidade no equilíbrio? Como fazer para não achar que está sempre devendo algo para alguém -ou para o filho ou para o empregador?
Vera: Estamos obcecados pelo trabalho, leia-se, pelos bens de consumo que o trabalho acessa e o prestígio decorrente. Estamos também obcecados por uma parentalidade irreal. Mesmo quando as mulheres ficavam em casa e os maridos voltavam cedo para casa, não se ficava à disposição dos filhos. É interessante essa ideia da importância que os pais dão pra si mesmos na vida dos filhos. O recomendável, se é que existe, vai na direção da autonomia da criança, da oferta de experiências no mundo e não de um fechamento familiar em si mesmo.
É curioso notar que a escolha de uma geração frequentemente é rejeitada pela geração seguinte. Filhos de 'pais hippies' se tornaram 'caretas' e o inverso também acontece. Porque o modelo escolhido por cada família só deveria servir para estas pessoas e não necessariamente para os filhos, o que torna nossa busca pela forma correta, no mínimo, bizarra. A infelicidade não vem do fato de a conta não fechar, porque ela fecha nunca, mas de supormos que deveríamos conseguir conciliar estas escolhas sem perdas. Acostumemos ou façamos outras escolhas, com outras perdas.
Blog: A criança precisa da presença da mãe e do pai igualmente? Na falta de tempo de um dos dois, a presença mais constante do outro compensa essa 'falta'? Quais os efeitos desse 'desequilíbrio' na vida da crianças?
Vera: A criança precisa de sujeitos muito investidos em cuidar delas, que as amem, respeitem, responsabilizem-se, eduquem. Quem puder fazer isso ostensivamente ao longo da vida de outro ser humano leva o título, digamos, o ônus e o bônus da função parental. Esqueçam essa disputa de pai e mãe. Precisamos de outros humanos com as incríveis competências acima.
Blog: Homens e mulheres 'sem tempo' conseguem ser bons pais? Escola em tempo integral, babás e avós conseguem suprir essa ausência com qualidade?
Vera: Só podemos responder isto caso a caso mas, quando não, a criança sinaliza com o adoecimento.
Blog: Qual o 'presente de estar 'presente'?
Vera: Vivemos divididos entre, de um lado, o passado, o qual lamentamos pelo que "poderia" ter sido e, de outro, sofrendo a ansiedade de tentar antecipar e controlar o futuro. Também vivemos deslocados pela virtualidade, pois não estamos aqui, embora compartilhemos espaços. Basta ver restaurantes lotados de mesas onde todos estão em outro lugar por meio dos celulares. O presente de estar presente se refere a conseguir sustentar laços afetivos no aqui e agora e ver o que acontece. Sustentar silêncios, desencontros, mal-entendidos, e reaprender a conversar. Afinal, perdemos esta capacidade tão recentemente, ainda está em tempo voltar a cultivá-la.
Mês que vem, no dia 19/09, o encontro da 'Roda' é com Alexandre Le Voci Sayad, que falará sobre "A boa relação com a escolha que você escolheu". Alexandre é jornalista, educador, escritor e membro do comitê GapMil da UNESCO. Mais informações sobre a "Roda de encontros Matutaí" aqui.
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