"Tenho medo do Rodrigo. Ele mexe com esses trecos... ele sabe cada Oxum [divindade de matriz africana] deles lá. Nosso Deus é maior". Essa frase, dita pela participante do Big Brother Brasil Paula Von Sperling, gerou polêmica e foi considerada racista por muitos internautas. A repercussão veio acompanhada de desentendimentos entre os dois e levou a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), do Rio de Janeiro, a investigar o caso em segredo de justiça.
Desde então, muitos brasileiros têm se manifestado contra ou a favor dos dois de forma ofensiva. "Querem que ela [Paula] saia logo. Teria que por aquele macaco do Rodrigo [para fora]", escreveu uma mulher em um grupo do WhatsApp. "Chora que amanhã esse macaco pobre vai sair, e se depender de mim morre ainda em 2019. Paula vai ser campeã", afirmou outro pelo Instagram.
É comum associarem os comentários ao reality show, mas um rosto pouco visto no meio dessa história é o de Vera Lúcia, de 70 anos. Mãe de Rodrigo França, a idosa precisou tomar o antidepressivo Sertralina durante a participação do filho no programa para aguentar a série de agressões que leu. "Disseram que ela utilizou entidades diabólicas para ele ganhar no jogo. Não existe diabo no candomblé. Essa é uma nomenclatura cristã e não queremos catequizar ninguém", diz Fábio França, irmão de Rodrigo, ao E+.
"Nós não deixamos nossa mãe manusear as redes sociais. A gente filtra, porque é uma senhora que voltou a usar remédio e fazer terapia por conta das ofensas", afirma. "É um jogo, mas as pessoas ultrapassam o limite da dignidade humana".
'Sendo crime ou não, a fala de Paula não pode ser admitida'
Segundo o advogado e professor de práticas antidiscriminatórias da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Silvio Almeida, afirmações como a de Paula sobre a religiosidade de Rodrigo não podem ser discutidas só na esfera criminal.
"Para avaliar se a lei é efetiva, precisamos pensar no modo como a sociedade vive e como ela reproduz comportamentos. Nos dias de hoje, a Constituição não basta para combater a cultura de intolerância. Precisamos de conscientização política e social para as normas se tornarem efetivas".
A afirmação do jurista se reflete nos números: a lei que penaliza a intolerância religiosa existe há mais de 20 anos, mas dados do Disque 100 sobre o tema calculam que houve uma denúncia a cada 15 horas entre janeiro de 2015 e junho de 2017, no Brasil - o equivalente a cerca de 1,4 mil casos.
Diante do alto índice de violência, Fábio França, irmão de Rodrigo, diz que a postura de Paula foi irresponsável ao falar do candomblé em rede nacional. "Quando estamos diante de uma câmera, temos que ter responsabilidade, porque falas como a da Paula são perigosas", explica.
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"Tem terreiro que está sendo violado e incendiado devido a frases que demonstram desconhecimento. Se não entendo, tenho que perguntar. Não posso achar que o meu deus é maior que outro deus. Sendo crime ou não, a fala da Paula não pode ser admitida", completa.
Vale ressaltar que não se pode dizer, antes da decisão da Justiça, que Paula cometeu crime racial ou de intolerância. Precipitar uma resposta fere o princípio constitucional da presunção de inocência - norma em que ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença.
Segundo o advogado de Rodrigo França, Ricardo Brajterman, não há previsão para a investigação sobre o caso terminar, mas ele analisa que a situação é considerada de alto potencial ofensivo. "O juiz vai ver a intensidade do dano, a forma como foi cometido e se as partes são reincidentes ou não. Em um crime menor, a pena poderia ser trabalho comunitário, por exemplo. Mas não é o caso", explica.
Se a participante do Big Brother Brasil for condenada, ela pode pegar até três anos de prisão e multa, mas há outras alternativas processuais aplicáveis para evitar a reclusão. O E+ entrou em contato com a família de Paula por e-mail e telefone ao longo da semana para comentar as críticas, mas não obteve retorno.
'Sintoma de uma sociedade doente'
Tiago Leifert, que apresenta o BBB 19, deixou claro que a Rede Globo vai contribuir com o que a polícia precisar durante as investigações. Em fevereiro, por exemplo, a emissora enviou às autoridades as gravações das falas consideradas ofensivas e, durante o programa, o apresentador disse que o diálogo é o melhor caminho.
"Há dois anos temos uma campanha que diz que tudo começa com respeito. A diversidade é um dos pilares da empresa e isso fica claro na nossa programação. Vamos seguir o jogo, mas com olhar sempre atento", afirmou Leifert durante o programa.
Silvio Almeida, no entanto, acredita que é necessário ir além disso e tomar partido diante da situação. "A emissora estava em um momento em que o apresentador deveria virar para a câmera e dizer que o que Paula disse é errado. A televisão é irresponsável ao não problematizar isso", critica.
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De acordo com o jurista, o Brasil está num momento em que a subjetividade dos cidadãos está sendo constituída pela intolerância, sem qualquer controle da lei. "Existe uma rede de afetos que se formam a partir do racismo e da intolerância religiosa. Há pessoas que acham que negros merecem morrer porque fizeram alguma coisa; que acham normal desrespeitar as crenças de matriz africana. [Portanto], a frase de Paula [mencionada no começo da matéria] é sintoma de uma sociedade doente", lamenta.
O que diz a Rede Globo?
O E+ perguntou ao canal se a polêmica em torno da intolerância religiosa poderia resultar na expulsão de participantes, se a produção do reality show interferiu nas declarações e qual a opinião da Rede Globo diante das críticas do jurista Silvio Almeida. Sem entrar em detalhes, a emissora respondeu:
"Como já esclarecemos, a Globo respeita a diversidade, a liberdade de expressão e repudia com veemência qualquer tipo de intolerância e preconceito, em todas as suas formas. Desde 2016 a emissora mantém no ar a campanha ‘Tudo começa pelo Respeito’, em parceria com UNESCO, UNICEF, UNAIDS e ONU MULHERES, que atua na mobilização da sociedade para o fortalecimento de uma cultura que não apenas tolere, mas respeite e discuta amplamente os direitos de públicos vulneráveis à discriminação e ao preconceito. Desta forma, é importante reiterar que qualquer manifestação pessoal, equivocada ou não, feita pelos participantes do programa, não reflete o posicionamento da emissora."
Diante de toda a situação, dona Vera Lúcia, mãe do Rodrigo França, segue fazendo terapia psicológica e acupuntura. Ela já parou com o remédio antidepressivo e se sente aliviada com o fim do programa. "Hoje ela está melhor. Está muito acolhida pelos familiares, amigos e fãs", conta Fábio. Enquanto isso, as ofensas raciais e contra o candomblé nas redes sociais continuam, mas o irmão destaca que, como educador, ainda tem a esperança de que o racismo e a intolerância religiosa serão destruídos um dia. "A sociedade precisa perceber que essa luta é de todos, e não só dos afrodescendentes. Estamos vindo fortes", finaliza.
*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais