Um trilhão de nada


Por Rosiska Darcy

Eu era bem pequena quando perguntei a meu avô o que era um trilhão. Ele começou uma longa explicação e, percebendo meu desinteresse, tão grande quanto o seu, concluiu entediado: "de toda maneira você nunca vai usar isso. Não existe um trilhão de quase nada." Não pensei nessa história ao longo da vida inteira até porque nunca, de fato, usei a palavra trilhão, senão em exageros bem latino americanos, como um trilhão de desgraças ou um trilhão de pessoas na fila do ônibus. Jamais para expressar uma realidade. Só recentemente comecei a ver impressa essa palavra e em contextos que não estão para brincadeiras, como as páginas econômicas de respeitadíssimos jornais. Tratava-se de dinheiro, um dinheiro que supostamente existia em algum lugar, embora sob forma de papéis que, ao fim de cálculos complicadíssimos e oscilações de um mercado chegado a crises de nervos, se atribuíam valor. Macaca velha, nunca acreditei nessa história - quem freqüenta a minha casa é testemunha - e me habituei a ser chamada de primitiva quando, honrando a estirpe de meu avô, afirmava que "esse dinheiro não existe". Coerente com a minha tese, desacreditava também das fortunas de muitos e muitos bilhões que foram se tornando lugar comum no noticiário sobre o jet set internacional. Tanta riqueza acumulada me parecia conter uma boa dose de impostura.Talvez pensar assim me poupasse de um ataque de indignação, já que a comparação entre essas hiperfortunas e a hipermiséria que nos atropela nas esquinas punha à prova, duramente, o meu senso moral. Preferia acreditar na megalomania de nosso tempo, produzindo um mundo de ficção, uma ficção perversa, feita de enriquecimentos ilícitos, de desvalorização do trabalho e do salário em detrimento de ganhos faraônicos nas roletas das bolsas. Achei que as pessoas estavam enlouquecendo de vez quando um amigo vendeu todos seus imóveis para jogar - ele diz investir - na Bolsa. Ontem ele veio me contar sobre o fim do mundo. Olhei para esse menino que acreditara ter desenterrado um tesouro com uma ponta de piedade. Considero falta de caráter a frase "eu não disse?" Calei a boca e ofereci café feito na hora e broa de milho quente. Ficamos assim, numa tarde de inverno, gelada para o limiar da primavera, tomando lanche, esquecendo por algumas horas o Apocalipse. Ouvimos música, ele tocou piano, o que não fazia há muitos anos. Que música é essa, perguntei? Acabei de inventar, respondeu, não tem nome. E eu, malvada, "será Sonata para o fim do mundo". Serei eu uma incurável otimista? Contei-lhe então que meu avô dissera que quase nada se conta em trilhões e que de uns dias para cá eu procurava o que, afora os dinheiros que brotam do nada e se desfazem no ar, poderia ser contado em tantos zeros. Os grãos de areia, talvez. As folhas das arvores de toda a Terra, sugeriu. As notas musicais tocadas desde o princípio dos tempos, disse eu. Os beijos, os beijos trocados em toda a história humana, retorquiu vitorioso e assim fomos em um jogo que batizamos de jogo do trilhão e que ninguém ganhou porque morremos de rir com a nossa capacidade de dizer besteira no dia do fim do mundo. O jogo do trilhão tem uma única regra, exigi: a coisa contabilizada tem que ser real, não valem papéis que não correspondem a nada. Fiz mal de invocar esse princípio, um rosto desfeito se reapresentou diante de mim. Cabisbaixo, foi logo embora. Continuei a jogar sozinha e fui descobrindo um trilhão de coisas boas que a vida real oferece aos cinco sentidos. Mas como toda regra tem exceção, esbarrei no que a humanidade mais acumulou e que não são coisas reais, mas podem ser boas: as ilusões. De ilusões vivera meu pobre amigo, do sonho infantil do seu tesouro escondido. Jogando comigo mesma, decidi ater-me às regras, deixei de fora o trilhão de ilusões que o mundo acumulou. Um certo mundo que, segundo alguns, chegou ao seu fim. Pouco sei sobre o fim dos mundos, fui sempre especializada na fundação de novos. Fico desarmada nestas situações. Mas não posso deixar de pensar com reverencia na sabedoria de meu avô. Pois, afinal, de todos os trilhões que se esfumam, dos traumatismos planetários tão previsíveis e desnecessários, o que restou? Um trilhão de nada. *Rosiska Darcy de Oliveira é escritora rosiska.darcy@uol.com.br

Eu era bem pequena quando perguntei a meu avô o que era um trilhão. Ele começou uma longa explicação e, percebendo meu desinteresse, tão grande quanto o seu, concluiu entediado: "de toda maneira você nunca vai usar isso. Não existe um trilhão de quase nada." Não pensei nessa história ao longo da vida inteira até porque nunca, de fato, usei a palavra trilhão, senão em exageros bem latino americanos, como um trilhão de desgraças ou um trilhão de pessoas na fila do ônibus. Jamais para expressar uma realidade. Só recentemente comecei a ver impressa essa palavra e em contextos que não estão para brincadeiras, como as páginas econômicas de respeitadíssimos jornais. Tratava-se de dinheiro, um dinheiro que supostamente existia em algum lugar, embora sob forma de papéis que, ao fim de cálculos complicadíssimos e oscilações de um mercado chegado a crises de nervos, se atribuíam valor. Macaca velha, nunca acreditei nessa história - quem freqüenta a minha casa é testemunha - e me habituei a ser chamada de primitiva quando, honrando a estirpe de meu avô, afirmava que "esse dinheiro não existe". Coerente com a minha tese, desacreditava também das fortunas de muitos e muitos bilhões que foram se tornando lugar comum no noticiário sobre o jet set internacional. Tanta riqueza acumulada me parecia conter uma boa dose de impostura.Talvez pensar assim me poupasse de um ataque de indignação, já que a comparação entre essas hiperfortunas e a hipermiséria que nos atropela nas esquinas punha à prova, duramente, o meu senso moral. Preferia acreditar na megalomania de nosso tempo, produzindo um mundo de ficção, uma ficção perversa, feita de enriquecimentos ilícitos, de desvalorização do trabalho e do salário em detrimento de ganhos faraônicos nas roletas das bolsas. Achei que as pessoas estavam enlouquecendo de vez quando um amigo vendeu todos seus imóveis para jogar - ele diz investir - na Bolsa. Ontem ele veio me contar sobre o fim do mundo. Olhei para esse menino que acreditara ter desenterrado um tesouro com uma ponta de piedade. Considero falta de caráter a frase "eu não disse?" Calei a boca e ofereci café feito na hora e broa de milho quente. Ficamos assim, numa tarde de inverno, gelada para o limiar da primavera, tomando lanche, esquecendo por algumas horas o Apocalipse. Ouvimos música, ele tocou piano, o que não fazia há muitos anos. Que música é essa, perguntei? Acabei de inventar, respondeu, não tem nome. E eu, malvada, "será Sonata para o fim do mundo". Serei eu uma incurável otimista? Contei-lhe então que meu avô dissera que quase nada se conta em trilhões e que de uns dias para cá eu procurava o que, afora os dinheiros que brotam do nada e se desfazem no ar, poderia ser contado em tantos zeros. Os grãos de areia, talvez. As folhas das arvores de toda a Terra, sugeriu. As notas musicais tocadas desde o princípio dos tempos, disse eu. Os beijos, os beijos trocados em toda a história humana, retorquiu vitorioso e assim fomos em um jogo que batizamos de jogo do trilhão e que ninguém ganhou porque morremos de rir com a nossa capacidade de dizer besteira no dia do fim do mundo. O jogo do trilhão tem uma única regra, exigi: a coisa contabilizada tem que ser real, não valem papéis que não correspondem a nada. Fiz mal de invocar esse princípio, um rosto desfeito se reapresentou diante de mim. Cabisbaixo, foi logo embora. Continuei a jogar sozinha e fui descobrindo um trilhão de coisas boas que a vida real oferece aos cinco sentidos. Mas como toda regra tem exceção, esbarrei no que a humanidade mais acumulou e que não são coisas reais, mas podem ser boas: as ilusões. De ilusões vivera meu pobre amigo, do sonho infantil do seu tesouro escondido. Jogando comigo mesma, decidi ater-me às regras, deixei de fora o trilhão de ilusões que o mundo acumulou. Um certo mundo que, segundo alguns, chegou ao seu fim. Pouco sei sobre o fim dos mundos, fui sempre especializada na fundação de novos. Fico desarmada nestas situações. Mas não posso deixar de pensar com reverencia na sabedoria de meu avô. Pois, afinal, de todos os trilhões que se esfumam, dos traumatismos planetários tão previsíveis e desnecessários, o que restou? Um trilhão de nada. *Rosiska Darcy de Oliveira é escritora rosiska.darcy@uol.com.br

Eu era bem pequena quando perguntei a meu avô o que era um trilhão. Ele começou uma longa explicação e, percebendo meu desinteresse, tão grande quanto o seu, concluiu entediado: "de toda maneira você nunca vai usar isso. Não existe um trilhão de quase nada." Não pensei nessa história ao longo da vida inteira até porque nunca, de fato, usei a palavra trilhão, senão em exageros bem latino americanos, como um trilhão de desgraças ou um trilhão de pessoas na fila do ônibus. Jamais para expressar uma realidade. Só recentemente comecei a ver impressa essa palavra e em contextos que não estão para brincadeiras, como as páginas econômicas de respeitadíssimos jornais. Tratava-se de dinheiro, um dinheiro que supostamente existia em algum lugar, embora sob forma de papéis que, ao fim de cálculos complicadíssimos e oscilações de um mercado chegado a crises de nervos, se atribuíam valor. Macaca velha, nunca acreditei nessa história - quem freqüenta a minha casa é testemunha - e me habituei a ser chamada de primitiva quando, honrando a estirpe de meu avô, afirmava que "esse dinheiro não existe". Coerente com a minha tese, desacreditava também das fortunas de muitos e muitos bilhões que foram se tornando lugar comum no noticiário sobre o jet set internacional. Tanta riqueza acumulada me parecia conter uma boa dose de impostura.Talvez pensar assim me poupasse de um ataque de indignação, já que a comparação entre essas hiperfortunas e a hipermiséria que nos atropela nas esquinas punha à prova, duramente, o meu senso moral. Preferia acreditar na megalomania de nosso tempo, produzindo um mundo de ficção, uma ficção perversa, feita de enriquecimentos ilícitos, de desvalorização do trabalho e do salário em detrimento de ganhos faraônicos nas roletas das bolsas. Achei que as pessoas estavam enlouquecendo de vez quando um amigo vendeu todos seus imóveis para jogar - ele diz investir - na Bolsa. Ontem ele veio me contar sobre o fim do mundo. Olhei para esse menino que acreditara ter desenterrado um tesouro com uma ponta de piedade. Considero falta de caráter a frase "eu não disse?" Calei a boca e ofereci café feito na hora e broa de milho quente. Ficamos assim, numa tarde de inverno, gelada para o limiar da primavera, tomando lanche, esquecendo por algumas horas o Apocalipse. Ouvimos música, ele tocou piano, o que não fazia há muitos anos. Que música é essa, perguntei? Acabei de inventar, respondeu, não tem nome. E eu, malvada, "será Sonata para o fim do mundo". Serei eu uma incurável otimista? Contei-lhe então que meu avô dissera que quase nada se conta em trilhões e que de uns dias para cá eu procurava o que, afora os dinheiros que brotam do nada e se desfazem no ar, poderia ser contado em tantos zeros. Os grãos de areia, talvez. As folhas das arvores de toda a Terra, sugeriu. As notas musicais tocadas desde o princípio dos tempos, disse eu. Os beijos, os beijos trocados em toda a história humana, retorquiu vitorioso e assim fomos em um jogo que batizamos de jogo do trilhão e que ninguém ganhou porque morremos de rir com a nossa capacidade de dizer besteira no dia do fim do mundo. O jogo do trilhão tem uma única regra, exigi: a coisa contabilizada tem que ser real, não valem papéis que não correspondem a nada. Fiz mal de invocar esse princípio, um rosto desfeito se reapresentou diante de mim. Cabisbaixo, foi logo embora. Continuei a jogar sozinha e fui descobrindo um trilhão de coisas boas que a vida real oferece aos cinco sentidos. Mas como toda regra tem exceção, esbarrei no que a humanidade mais acumulou e que não são coisas reais, mas podem ser boas: as ilusões. De ilusões vivera meu pobre amigo, do sonho infantil do seu tesouro escondido. Jogando comigo mesma, decidi ater-me às regras, deixei de fora o trilhão de ilusões que o mundo acumulou. Um certo mundo que, segundo alguns, chegou ao seu fim. Pouco sei sobre o fim dos mundos, fui sempre especializada na fundação de novos. Fico desarmada nestas situações. Mas não posso deixar de pensar com reverencia na sabedoria de meu avô. Pois, afinal, de todos os trilhões que se esfumam, dos traumatismos planetários tão previsíveis e desnecessários, o que restou? Um trilhão de nada. *Rosiska Darcy de Oliveira é escritora rosiska.darcy@uol.com.br

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