O Brasil é uma potência no skate, e não apenas por causa das três medalhas conquistadas em Tóquio ou em razão de ter conseguido as 12 vagas possíveis para os Jogos Olímpicos de Paris. O protagonismo dos skatistas brasileiros foi construído antes de o esporte se tornar olímpico. Quando a oportunidade de ir às Olimpíadas chegou, um longo caminho já havia sido percorrido por pioneiros que brilharam nas competições próprias deste universo e em vídeos e revistas “nichadas” ao longo dos anos.
Hoje, nomes que participaram dessa construção fazem o elo com as novas gerações. É o caso de Allan Mesquita, precursor do bowriding, hoje conhecido como park, no Brasil. Ativo nas pistas e nas ruas desde o final da década de 1980, o skatista de 48 anos agora se dedica a passar seu conhecimento aos skatistas da seleção júnior de park, iniciativa da Confederação Brasileira de Skate (CBSk) para auxiliar a formação de jovens atletas sub-16, criada em 2020. O trabalho de consultoria técnica é feito a distância e com encontros pontuais para treinamentos.
Mesmo que o skate seja um esporte que permite adolescentes e até crianças a competirem com adultos, ter essa ainda recente estrutura de base é visto como um fator que acelera a evolução do esporte. Além disso, a vivência dentro de um universo de seleção e da lógica de representar toda uma nação são elementos usados para reforçar o senso de coletividade que já faz parte da cultura do esporte radical.
“Apesar de terem o nível bem alto em faixas etárias cada vez mais baixas, você faz com que esses jovens possam olhar de outro ângulo. Ajeitar uma postura, um aéreo mais alto, com mais estilo e plasticidade. Você vai moldando isso, são ajustes finos que fazem essa molecada poder sonhar com o alto rendimento”, explica Mesquita ao Estadão. “Quando eles alcançam esse título de seleção brasileira, de certa forma desenvolvem essa responsabilidade um pouco mais aguçada”, completa.
A melhor brasileira do ranking mundial de park na atualidade e candidata ao pódio nas Olimpíadas de Paris, Raicca Ventura, de 17 anos, passou pela seleção júnior antes de chegar à principal. O caso é usado como um exemplo de sucesso do trabalho de base, sem pular etapas na sanha de repetir sucessos tão precoces quanto o de Rayssa Leal, prata olímpica na modalidade street aos 13, embora seja possível que casos como o da maranhense se repitam. Entenda a diferença entre park e street.
Dentro da atual seleção júnior de park, a atleta que competiu em um evento de maior nível é Helena Laurino, de 12 anos, que disputou etapa de Dubai do circuito de classificação olímpica, em janeiro deste ano. Na ocasião, ainda com 11 anos, tornou-se a primeira brasileira a acertar o McTwist - manobra que consiste em um giro de 540° segurando a ponta do skate com a mão - em uma competição internacional.
O talento de Helena já foi percebido dentro do mercado esportivo, não à toa ela passou a ser agenciada pela mesma empresa que cuida da carreira de Rayssa. O mesmo aconteceu com Manuella Moretti, também de 12 anos e integrante da seleção júnior de street, treinada por Fábio Castilho, que, durante os anos 2000, integrou ao lado de Bob Burnquist a equipe da Urgh, primeira marca de skate do Brasil. Muito mais jovem do que Castilho era na época, Manu já é patrocinada pela Converse e pela Volcom.
“Eu, julgando campeonatos, já acompanhava ela desde os nove anos. Foi crescendo, e eu falei ‘essa menina é um diamante, não pode ficar fora da seleção júnior’. Usei o critério do talento, da técnica, do carisma, do trato com os pais, o jeito e onde ela anda”, diz Castilho. “E o lance da visibilidade também é muito importante. Nas redes sociais veem que tal skatista faz parte da seleção, chama a atenção de patrocinadores e ajuda a ser visto como atleta de grande potencial.”
Apoio da família facilita
Apesar da bagagem acumulada pela experiência, fazer parte da seleção não é garantia de colher bons frutos. Skatistas mirins têm um longo caminho para desenvolvimento e dependem de apoio da família. Helena Laurino e Manu Moretti possuem esse suporte.
Helena foi introduzida ao esporte andando de patins, por influência da mãe Vanessa Mascaro, e depois se interessou pelo skate. O pai Cristiano Laurino comprou um de brinquedo, da Barbie, antes de ouvir que era melhor trocar por um profissional em conversas com atletas que notaram o talento da menina, ainda aos seis anos.
Cristiano é médico ortopedista e trabalhou, de 1997 a 2005, em um ambulatório de atendimento a skatistas na Universidade Federação de São Paulo (Unifesp). Chegou até a escrever um artigo sobre lesões no skate, portanto tinha alguma proximidade com o esporte e pôde contribuir com o interesse da filha. Existe um cuidado, contudo, para não transformar o que começou como diversão em um fardo.
“Até agora, não existe uma cobrança, de fato, de ter que ganhar, ter que ser a primeira. Tem a cobrança dela mesma em querer acertar aquilo que ela se propõe a fazer. Ela se programou para fazer algo de valor e quer conseguir. A gente tem observado que ela consegue concluir, e não é por imposição nossa, ou de treinador. Ela está fazendo porque ela gosta”, comenta o médico.
O pai ajuda Helena com cronogramas de treinos e se comunica com Allan Mesquita para ajustar alguns pontos. A pequena skatista também se orienta por vídeos disponíveis na internet de atletas que admira. Foi na junção desses processos que ela se capacitou para se especializar no McTwist. “Fiquei muito feliz de ter sido chamada para a seleção. Eu acho que eu evolui muito, até porque, por exemplo, um dos meus sonhos era ter o McTwist no pé, e agora eu tenho”, diz Helena.
Manu Moretti também recebe suporte intenso da família. O pai dela, Filippo Tricanico, dono de um comércio no Brás e skatista amador, a leva desde muito cedo para a Pista da Saúde, na Zona Sul de São Paulo. Inicialmente, ela apenas olhava, mas com o tempo começou a pedir para praticar. “Eu praticamente nasci naquela pista”, diz Manu ao Estadão. A mãe, Bárbara Moretti, não pratica o esporte, mas se engajou para ajudar a filha. Encarou um mundo desconhecido até para o marido skatista, que não era muito íntimo ao universo das competições.
“A gente não tinha esse conhecimento de campeonato, seleção e tudo mais. Como ela foi evoluindo, pegando mais confiança, a parte psicológica foi desenvolvendo, até porque a mãe trabalha mais esse lado, intermediando. Está nessa fase de pré-adolescência, com mais personalidade, então eu tento cuidar do psicológico dela, ainda mais porque está ficando cada vez mais sério. Agora é tudo em função dos eventos dela, das viagens dela”, afirma Bárbara.
Agora com uma estrutura mais profissional à disposição, a família pretendia levar Manu para a Califórnia, ‘a meca do skate’, neste mês de julho, mas não conseguiram o visto a tempo. Há esperança, contudo, de realizar o sonho até o final do ano.
O sonho é difícil e não há garantias
Ter o apoio familiar, apesar de importante, também não é o suficiente para jovens skatistas de destacarem. A maior visibilidade que o esporte ganhou e a promessa de mudança de vida como ocorre com o futebol, em menores proporções, deixou a briga por espaço mais difícil. Muitas meninas e meninos querem repetir a história de Rayssa Leal, que transformou a realidade de sua família.
A pequena Maria Vitória Pimentinha, de 9 anos, é uma das crianças que tem potencial para viver algo parecido. Filha de recicladores residente em Ananindeua, no Pará, ela teve um dos primeiros contatos com o esporte andando em um patinete encontrado no lixo pelos pais. Um dia, passando com a mãe, Rosa Oliveira, por uma quadra frequentada por skatistas, mostrou vontade de tentar andar de skate. “Eu não queria deixar. Olhei aqueles meninos cabeludos e disse ‘não’. Aí, eu acabei deixando e o rapaz que estava lá pista ficou admirado com ela”, conta a mãe.
Rosa conseguiu comprar um skate para incentivar a filha a desenvolver o talento. Com ele, Pimentinha acertou um flip, segurando na mão da mãe para ter mais confiança O momento foi gravado em vídeo e publicado nas redes sociais. Em pouco tempo, chegou ao lendário skatista americano Tony Hawk, que compartilhou o conteúdo no Instagram, assim como fez com a gravação de Rayssa vestida de Fadinha, em 2015.
O episódio trouxe animação à família, que recebeu apoio de algumas pessoas do mundo do skate, como da campeã mundial Pâmela Rosa, de quem a menina recebeu roupas e peças de skate. Ainda muito jovem, Pimentinha não tem nenhum patrocínio e vem disputando as seletivas regionais da CBSk que dão vaga para a disputa do Campeonato Brasileiro na categoria mirim.
“Não teve muitas oportunidades até agora. Eu já tive que dormir em praça para levar ela em campeonato. Eu vendo rifa, o pessoal aqui da rua me ajuda como pode. Muita gente conhece pelo Instagram, e ajuda também”, diz Rosa. “O que eu puder fazer pelo sonho dela eu vou fazer. 2028 minha filha vai estar na Olimpíada.”
A menina de 9 anos estuda de manhã e retorna da escola por volta das 12 horas. Mais para o meio da tarde, treina em obstáculos construídos na própria casa pelos pais, com materiais reciclados. Algumas vezes por semana, pega um ônibus com a mãe para treinar na pista da cidade, inaugurada em 2022. Embora tenha sua cultura de skate, especialmente na capital Belém, o Pará não oferece as mesmas possibilidades para skatistas que outros estados, como São Paulo, Rio, Paraná e Santa Catarina.
Eixo Sul-Sudeste ainda domina o skate
Sem braços para se estender tanto, a CBSk tem feito um movimento para tentar garimpar talentos longe dos principais centros do esporte. A seleção júnior de street tem em seu grupo a amazonense Daniela Vitória, de 15 anos, integrada após uma visita técnica realizada por Fábio Castilho a Manaus. “Entendi a história dela e fizemos a visita, que foi uma oportunidade, a gente começou a dar essa atenção a cada região. Passamos três, quatro dias na região para aí, então, fechar um contrato, fechar um time”, conta Castilho.
De qualquer forma, mesmo com a skatista mais midiática da atualidade, Rayssa Leal, sendo nordestina, o domínio do Sul e Sudeste ainda é gritante. Na seleção júnior, Daniela Vitória é a única que não vem dessas regiões. Castilho admite que, apesar da evolução, ainda há muito a percorrer nesse quesito. “É uma questão de alimentar o skate no local de cada um, agregar a cultura do skateboard e alimentar este sonho de lá na frente o atleta poder ser um atleta olímpico”.
O street tem, além da manauara, Maria Lúcia Rocha (Canoas-RS), Manu Moretti (São Paulo), Matheus Mendes (Rio), Vicente Abrahão de Oliveira (Florianópolis) e Zion Moltocaro Furegato (Itapetininga-SP). No park, o grupo é formado por Fernanda Galdino (São Paulo), Helena Laurino (São Paulo), Maitê Demantova (Curitiba), Dan Sabino (São Bernardo do Campo), Pedro Vita (Rio) e Pietro Nunes (São Bernardo do Campo).
No caso do park, cuja prática depende de uma estrutura bem mais específica, em forma parecida à de uma piscina, a democratização já é um pouco mais difícil, embora possível de ser alcançada em breve, conforme avaliação de Allan Mesquita.
“Não que em outras regiões não tenham praticantes dessa modalidade, mas os que estão mesmo na disputa de uma vaga para seleção estão estão nesse eixo. Então, a gente tenta buscar talentos por meio campeonatos encontros e tem acontecido bastante. E tem aumentado muito o nível de boas pistas, novas. Acredito que, em pouquíssimo tempo, pode se igualar ao street”, opina o consultor técnico da seleção júnior de park.