Há pouco mais de uma semana li com grande prazer, e certo atraso, o livro cujo título é Mestre Dicá, da autoria de André Pecora e Stephan Campineiro. É uma belíssima biografia de um jogador singular e, num certo sentido, único: um craque que exigia um time e um lugar determinado para exibir sua arte. Ao contrário da maioria dos jogadores que planeja, tão logo possa, sair de sua cidade, ganhar um centro adiantado e jogar num grande clube, Dicá exigia, ao contrário, ficar na Ponte Preta e em Campinas. Sempre que saiu de lá não conseguiu jogar o que sabia, embora tenha se transferido para o Santos de Pelé, Edu e companhia, e depois para a Portuguesa, ainda grande naqueles dias. Era na Ponte que precisava jogar, tendo por testemunhas todos os que o viram crescer e surgir para o futebol.
Acredito que todos nós temos um pouco disso, todos temos um lugar de eleição ao qual pertencemos. Em geral, porém, nos damos por vencidos, e embarcamos em outras direções ao compreender que as belas coisas estão, em geral, fora da nossa aldeia. Uns poucos, como Dicá, se contentam, e até almejam, apenas as coisas da aldeia. Para estes, lá estão o que consideram suas “belas coisas”.
Ainda não tinha acabado bem de degustar completamente o livro de André e Stephan quando, por coincidência, ocorre a morte de Otacilio Pires de Camargo, o Cilinho. É impossível não fazer um paralelo entre certos aspectos das vidas e das carreiras do craque Dicá e de Cilinho. Ao fazerem o elogio fúnebre do treinador todas as atenções são para os pouco mais de dois anos que dirigiu o São Paulo e montou times memoráveis.
É verdade, foram times inesquecíveis, os times de Silas, Muller, Pita, Sidney. Ainda assim acho que os que se referem com insistência a esses momentos estão cometendo um grave equívoco de interpretação da pessoa de Cilinho. Na verdade, o auge de Cilinho foi no São Paulo, mas sua busca incessante pelo seu lugar no mundo, como Dicá, o levava invariavelmente para a Ponte Preta. Foi treinador da Ponte se não me engano por nove vezes, foi treinador do próprio Dicá, de Marco Aurélio e outros dos grandes times campineiros do passado. Sua carreira o empurrava para outros lugares inutilmente. Ele acabava por voltar para a Ponte, e para Campinas. A importância da cidade era tão grande que, em falta da Ponte, treinou até o Guarani.
Mas era a Ponte que habitava seu coração, exatamente como Dicá. Ouso até uma explicação ainda mais oculta sobre essa atitude dos dois. No fundo da alma os dois consideravam a Ponte como um clube grande, talvez como o maior deles, no mínimo igual a qualquer outro da capital. Acho que era mais um sentimento interno, inexplicável, visível apenas por meio de ações que tomavam. Na pior das hipóteses, acreditavam que, se não fossem grandes, e às vezes os fatos provavam que efetivamente nem Ponte nem Guarani eram de fato grandes clubes, estavam na iminência de ser.
Não era possível acreditar que um Guarani, campeão brasileiro com um timaço, não tivesse se tornado definitivamente um grande de São Paulo. Não era possível que com seus grandes times a Ponte, por várias vezes vice-campeã paulista, enfrentando de igual para igual os grandes e perdendo, às vezes de maneira discutível, não tivesse se tornado um clube protagonista.
Acho que hoje esse sentimento não existe mais e essa ilusão está desfeita. Os clubes do interior resignaram-se a não mais perseguir a grandeza, mas apenas um lugar que lhes garanta permanecer nas séries A ou B ou, num delírio realmente fora de proporções, um lugar numa dessas competições sul-americanas que andam por aí.
Cilinho, sonhador dos grandes sonhos, morreu esta semana na cidade em que nasceu, finalmente cumprindo provavelmente um desejo que o acompanhou durante toda sua vida: ficar em Campinas para sempre.