Catar ‘importa’ torcida organizada para sua seleção na Copa do Mundo; entenda


‘Som importado’ comandou as cantorias que empurraram a seleção catariana no Mundial

Por James Montague, The New York Times
Atualização:

DOHA, Catar - No meio do segundo tempo da partida do Catar contra o Senegal na Copa do Mundo, a bateria parou quando um homem de chapéu e óculos escuros se levantou e pediu silêncio.

Momentos antes, uma parte da multidão – mais de mil pessoas, quase todos homens, todos vestindo camisetas marrons idênticas com a palavra “Catar” em inglês e árabe – cantava em uníssono sob a batuta de quatro líderes de torcida. Mas agora o mar de homens entendeu o recado, seguiu a ordem e caiu num estranho silêncio enquanto o barulho do jogo girava dentro do estádio Al Thumama.

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Aí veio mais um sinal. E a multidão explodiu de volta à vida.

“Vamos, Marrons!”, eles entoaram sem parar, em árabe, uma referência ao apelido da seleção do Catar. Homens de braços dados, pulando. O chão tremendo.

Torcedores chegam ao Estádio Al Bayt antes da abertura da Copa do Mundo do Catar.  Foto: Noushad Thekkayil/EFE
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A cena lembrava mais os estádios de futebol da América do Sul e da Europa, e a torcida parecia a dos ultras, uma cultura de torcedores de futebol altamente organizada com raízes na Itália que pode ser encontrada em todo o mundo, inclusive no norte da África e Oriente Médio.

E era bem isso. O barulho da torcida enchia o estádio, como cinco dias antes, na estreia do Catar contra o Equador. Sua energia era implacável e contagiante. Mas a arte corporal de muitos deles os denunciava.

As tatuagens, que são extremamente raras e altamente reprovadas na sociedade do Golfo, pareciam sugerir que os torcedores não eram catarianos. Mas, então, quem seriam eles? E de onde tinham vindo?

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Som importado

O plano foi traçado no início de 2022, quando a Copa do Mundo finalmente se aproximava. O Catar tem sido alvo de críticas desde que conquistou o direito de sediar o evento: pela votação corrompida que garantiu esse direito, pelo tratamento dado aos trabalhadores migrantes, pela capacidade do pequeno país de receber e abrigar mais de 1 milhão de visitantes. Mas, no fundo, também havia outra crítica comum: o país não tinha cultura futebolística.

O Catar nunca havia se classificado para uma Copa do Mundo por méritos próprios. A Qatar Stars League é uma das mais ricas da região, com estádios climatizados de última geração. Mas as multidões para times como Al Sadd e Al Rayyan costumam chegar às centenas, não aos milhares. Quem, perguntavam-se os organizadores, lotaria os estádios quando o Catar jogasse? Quem forneceria a trilha sonora?

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A resposta foi aproveitar a fértil cultura ultra na região e importá-la.

A seleção catariana recebeu uma ajuda "importada" nas arquibancadas durante a Copa do Mundo. Foto: Noushad Thekkayil/EFE

Mas era improvável que essa cultura se encaixasse na realidade comercializada da Copa do Mundo do Catar. O código da cultura ultras é oposicionista e profundamente antiautoritário, em constante conflito com a polícia e a mídia. No Oriente Médio e no norte da África, os ultras também foram politicamente influentes: os ultras egípcios desempenharam um papel fundamental na Primavera Árabe de 2011, que derrubou Hosni Mubarak da presidência, e seu poder e popularidade nas ruas era tamanho que os ultras foram barrados por um de seus sucessores, Abdel-Fattah el-Sissi, depois que ele chegou ao poder em um golpe de estado.

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Os cantos das arquibancadas da Tunísia, Argélia, Marrocos e Líbano também serviram de trilha sonora para protestos antigovernamentais. Mas, dentro dos estádios, podem preencher até os espaços mais estéreis com paixão, cor e som.

Assim, em abril, foi organizado um evento-teste em Beirute, capital do Líbano. Centenas de estudantes libaneses e torcedores de um clube local, o Nejmeh, foram recrutados para fazer um vídeo de teste no estádio Camille Chamoun, recriando a atmosfera que um grupo ultras pode oferecer. O vídeo mostra centenas de torcedores cantando, exibindo faixas e fazendo pirotecnias.

Um capo, termo usado para o torcedor que comanda os cânticos, foi trazido do principal grupo de ultras do clube turco Galatasaray para dar a direção. O Galatasaray era uma escolha óbvia: o time tem uma das cenas ultras mais respeitadas do mundo. Mas os libaneses disseram que não precisavam de orientação.

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“Não! Nós mostramos a eles como se faz!”, disse um torcedor ultra libanês na sexta-feira. Ele se recusou a dar seu nome completo, uma prática comum na cena ultra, e se irritou com a ideia de que alguém precisasse organizar um grupo de torcedores radicais. Os ultras turcos, disse ele, “iam vir ao Catar, mas nós os surpreendemos. Já fazemos isso há muito tempo”.

O vídeo impressionou as pessoas certas em Doha. Na base do boca a boca, ofereceu-se aos jovens torcedores libaneses um acordo extraordinário: voos gratuitos, acomodações, ingressos para jogos e alimentação, além de uma pequena diária, tudo para que eles levassem um pouco da cultura ultra aos jogos da Copa do Mundo do Catar. Os torcedores chegaram em meados de outubro para ensaiar suas coreografias e praticar seus novos cantos.

E aprender o hino nacional do Catar.

Estar na Copa do Mundo é um sonho, disse o torcedor ultra libanês. Mas não foram apenas os torcedores libaneses que se juntaram ao esforço: o grupo de cerca de 1.500 torcedores também incluía egípcios, argelinos e alguns sírios. O dinheiro, disse o torcedor ultra, não era a única motivação.

“É nosso dever apoiar um país árabe”, afirmou. “Nós compartilhamos a mesma língua. Compartilhamos a mesma cultura. Somos dedos da mesma mão. Queremos mostrar ao mundo algo especial. Vocês vão ver uma coisa especial”.

Nas arquibancadas

No pontapé inicial no estádio Al Thumama na sexta-feira, os 1.500 ultras importados para o Catar se reuniram na seção designada atrás de um dos gols, vestindo camisetas marrons idênticas: Catar no peito, “Tudo por Al Annabi” nas costas. O hino nacional tocou e os ultras o cantaram como se fosse deles. Quando terminou, os capos libaneses bateram seus tambores e os ultras soltaram um verdadeiro trovão.

“O povo do Catar realmente não apoia o time assim”, disse Abdullah Aziz al-Khalaf, gerente de recursos humanos de 27 anos, parado no saguão assistindo ao desempenho dos ultras com uma mistura de orgulho e perplexidade. “Porque, aqui no Catar, não vamos muito ao estádio”.

Os organizadores da Copa do Mundo não responderam a perguntas sobre os torcedores, nem sobre os esforços para identificá-los e trazê-los para o torneio. Um homem vestindo uma camisa polo com o logotipo da Aspire Academy, o projeto bilionário de cultivo de talentos do Catar, filmou a multidão por 90 minutos.

O Catar estreou sendo derrotado pelo Equador por 2 a 0; na sequência perdeu para Senegal por 3 a 1 e encerrou a campanha na fase de grupos sendo derrotado pela Holanda por 2 a 0.  Foto: Rodrigo Jiménez/EFE

Mas a paixão parecia verdadeira. A decepção também, já que o Senegal marcou duas vezes. Na arquibancada, a cada poucas fileiras, líderes de torcedores em camisetas brancas gritavam e exortavam os fiéis a cantar mais forte, imitando um fenômeno muitas vezes visto em multidões de ultras na Itália, Alemanha e Marrocos: você canta mais alto e faz mais barulho quando está perdendo. Os tambores batem mais alto.

Toda a multidão finalmente ganhou vida quando Mohammed Muntari marcou o primeiro gol do Catar em Copas do Mundo. Mas nem todos entenderam o momento: em meio às comemorações pulsantes, um segurança correu numa tentativa fracassada de pedir aos ultras que se sentassem. A alegria durou pouco, pois o Senegal marcou o terceiro gol. O jogo terminou, 3-1. Poucas horas depois, o Catar se tornou a primeira nação a ser eliminada desta Copa do Mundo. O encerramento da participação do país-sede se deu contra a Holanda, com mais uma derrota, desta vez por 2 a 0./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

DOHA, Catar - No meio do segundo tempo da partida do Catar contra o Senegal na Copa do Mundo, a bateria parou quando um homem de chapéu e óculos escuros se levantou e pediu silêncio.

Momentos antes, uma parte da multidão – mais de mil pessoas, quase todos homens, todos vestindo camisetas marrons idênticas com a palavra “Catar” em inglês e árabe – cantava em uníssono sob a batuta de quatro líderes de torcida. Mas agora o mar de homens entendeu o recado, seguiu a ordem e caiu num estranho silêncio enquanto o barulho do jogo girava dentro do estádio Al Thumama.

Aí veio mais um sinal. E a multidão explodiu de volta à vida.

“Vamos, Marrons!”, eles entoaram sem parar, em árabe, uma referência ao apelido da seleção do Catar. Homens de braços dados, pulando. O chão tremendo.

Torcedores chegam ao Estádio Al Bayt antes da abertura da Copa do Mundo do Catar.  Foto: Noushad Thekkayil/EFE

A cena lembrava mais os estádios de futebol da América do Sul e da Europa, e a torcida parecia a dos ultras, uma cultura de torcedores de futebol altamente organizada com raízes na Itália que pode ser encontrada em todo o mundo, inclusive no norte da África e Oriente Médio.

E era bem isso. O barulho da torcida enchia o estádio, como cinco dias antes, na estreia do Catar contra o Equador. Sua energia era implacável e contagiante. Mas a arte corporal de muitos deles os denunciava.

As tatuagens, que são extremamente raras e altamente reprovadas na sociedade do Golfo, pareciam sugerir que os torcedores não eram catarianos. Mas, então, quem seriam eles? E de onde tinham vindo?

Som importado

O plano foi traçado no início de 2022, quando a Copa do Mundo finalmente se aproximava. O Catar tem sido alvo de críticas desde que conquistou o direito de sediar o evento: pela votação corrompida que garantiu esse direito, pelo tratamento dado aos trabalhadores migrantes, pela capacidade do pequeno país de receber e abrigar mais de 1 milhão de visitantes. Mas, no fundo, também havia outra crítica comum: o país não tinha cultura futebolística.

O Catar nunca havia se classificado para uma Copa do Mundo por méritos próprios. A Qatar Stars League é uma das mais ricas da região, com estádios climatizados de última geração. Mas as multidões para times como Al Sadd e Al Rayyan costumam chegar às centenas, não aos milhares. Quem, perguntavam-se os organizadores, lotaria os estádios quando o Catar jogasse? Quem forneceria a trilha sonora?

A resposta foi aproveitar a fértil cultura ultra na região e importá-la.

A seleção catariana recebeu uma ajuda "importada" nas arquibancadas durante a Copa do Mundo. Foto: Noushad Thekkayil/EFE

Mas era improvável que essa cultura se encaixasse na realidade comercializada da Copa do Mundo do Catar. O código da cultura ultras é oposicionista e profundamente antiautoritário, em constante conflito com a polícia e a mídia. No Oriente Médio e no norte da África, os ultras também foram politicamente influentes: os ultras egípcios desempenharam um papel fundamental na Primavera Árabe de 2011, que derrubou Hosni Mubarak da presidência, e seu poder e popularidade nas ruas era tamanho que os ultras foram barrados por um de seus sucessores, Abdel-Fattah el-Sissi, depois que ele chegou ao poder em um golpe de estado.

Os cantos das arquibancadas da Tunísia, Argélia, Marrocos e Líbano também serviram de trilha sonora para protestos antigovernamentais. Mas, dentro dos estádios, podem preencher até os espaços mais estéreis com paixão, cor e som.

Assim, em abril, foi organizado um evento-teste em Beirute, capital do Líbano. Centenas de estudantes libaneses e torcedores de um clube local, o Nejmeh, foram recrutados para fazer um vídeo de teste no estádio Camille Chamoun, recriando a atmosfera que um grupo ultras pode oferecer. O vídeo mostra centenas de torcedores cantando, exibindo faixas e fazendo pirotecnias.

Um capo, termo usado para o torcedor que comanda os cânticos, foi trazido do principal grupo de ultras do clube turco Galatasaray para dar a direção. O Galatasaray era uma escolha óbvia: o time tem uma das cenas ultras mais respeitadas do mundo. Mas os libaneses disseram que não precisavam de orientação.

“Não! Nós mostramos a eles como se faz!”, disse um torcedor ultra libanês na sexta-feira. Ele se recusou a dar seu nome completo, uma prática comum na cena ultra, e se irritou com a ideia de que alguém precisasse organizar um grupo de torcedores radicais. Os ultras turcos, disse ele, “iam vir ao Catar, mas nós os surpreendemos. Já fazemos isso há muito tempo”.

O vídeo impressionou as pessoas certas em Doha. Na base do boca a boca, ofereceu-se aos jovens torcedores libaneses um acordo extraordinário: voos gratuitos, acomodações, ingressos para jogos e alimentação, além de uma pequena diária, tudo para que eles levassem um pouco da cultura ultra aos jogos da Copa do Mundo do Catar. Os torcedores chegaram em meados de outubro para ensaiar suas coreografias e praticar seus novos cantos.

E aprender o hino nacional do Catar.

Estar na Copa do Mundo é um sonho, disse o torcedor ultra libanês. Mas não foram apenas os torcedores libaneses que se juntaram ao esforço: o grupo de cerca de 1.500 torcedores também incluía egípcios, argelinos e alguns sírios. O dinheiro, disse o torcedor ultra, não era a única motivação.

“É nosso dever apoiar um país árabe”, afirmou. “Nós compartilhamos a mesma língua. Compartilhamos a mesma cultura. Somos dedos da mesma mão. Queremos mostrar ao mundo algo especial. Vocês vão ver uma coisa especial”.

Nas arquibancadas

No pontapé inicial no estádio Al Thumama na sexta-feira, os 1.500 ultras importados para o Catar se reuniram na seção designada atrás de um dos gols, vestindo camisetas marrons idênticas: Catar no peito, “Tudo por Al Annabi” nas costas. O hino nacional tocou e os ultras o cantaram como se fosse deles. Quando terminou, os capos libaneses bateram seus tambores e os ultras soltaram um verdadeiro trovão.

“O povo do Catar realmente não apoia o time assim”, disse Abdullah Aziz al-Khalaf, gerente de recursos humanos de 27 anos, parado no saguão assistindo ao desempenho dos ultras com uma mistura de orgulho e perplexidade. “Porque, aqui no Catar, não vamos muito ao estádio”.

Os organizadores da Copa do Mundo não responderam a perguntas sobre os torcedores, nem sobre os esforços para identificá-los e trazê-los para o torneio. Um homem vestindo uma camisa polo com o logotipo da Aspire Academy, o projeto bilionário de cultivo de talentos do Catar, filmou a multidão por 90 minutos.

O Catar estreou sendo derrotado pelo Equador por 2 a 0; na sequência perdeu para Senegal por 3 a 1 e encerrou a campanha na fase de grupos sendo derrotado pela Holanda por 2 a 0.  Foto: Rodrigo Jiménez/EFE

Mas a paixão parecia verdadeira. A decepção também, já que o Senegal marcou duas vezes. Na arquibancada, a cada poucas fileiras, líderes de torcedores em camisetas brancas gritavam e exortavam os fiéis a cantar mais forte, imitando um fenômeno muitas vezes visto em multidões de ultras na Itália, Alemanha e Marrocos: você canta mais alto e faz mais barulho quando está perdendo. Os tambores batem mais alto.

Toda a multidão finalmente ganhou vida quando Mohammed Muntari marcou o primeiro gol do Catar em Copas do Mundo. Mas nem todos entenderam o momento: em meio às comemorações pulsantes, um segurança correu numa tentativa fracassada de pedir aos ultras que se sentassem. A alegria durou pouco, pois o Senegal marcou o terceiro gol. O jogo terminou, 3-1. Poucas horas depois, o Catar se tornou a primeira nação a ser eliminada desta Copa do Mundo. O encerramento da participação do país-sede se deu contra a Holanda, com mais uma derrota, desta vez por 2 a 0./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

DOHA, Catar - No meio do segundo tempo da partida do Catar contra o Senegal na Copa do Mundo, a bateria parou quando um homem de chapéu e óculos escuros se levantou e pediu silêncio.

Momentos antes, uma parte da multidão – mais de mil pessoas, quase todos homens, todos vestindo camisetas marrons idênticas com a palavra “Catar” em inglês e árabe – cantava em uníssono sob a batuta de quatro líderes de torcida. Mas agora o mar de homens entendeu o recado, seguiu a ordem e caiu num estranho silêncio enquanto o barulho do jogo girava dentro do estádio Al Thumama.

Aí veio mais um sinal. E a multidão explodiu de volta à vida.

“Vamos, Marrons!”, eles entoaram sem parar, em árabe, uma referência ao apelido da seleção do Catar. Homens de braços dados, pulando. O chão tremendo.

Torcedores chegam ao Estádio Al Bayt antes da abertura da Copa do Mundo do Catar.  Foto: Noushad Thekkayil/EFE

A cena lembrava mais os estádios de futebol da América do Sul e da Europa, e a torcida parecia a dos ultras, uma cultura de torcedores de futebol altamente organizada com raízes na Itália que pode ser encontrada em todo o mundo, inclusive no norte da África e Oriente Médio.

E era bem isso. O barulho da torcida enchia o estádio, como cinco dias antes, na estreia do Catar contra o Equador. Sua energia era implacável e contagiante. Mas a arte corporal de muitos deles os denunciava.

As tatuagens, que são extremamente raras e altamente reprovadas na sociedade do Golfo, pareciam sugerir que os torcedores não eram catarianos. Mas, então, quem seriam eles? E de onde tinham vindo?

Som importado

O plano foi traçado no início de 2022, quando a Copa do Mundo finalmente se aproximava. O Catar tem sido alvo de críticas desde que conquistou o direito de sediar o evento: pela votação corrompida que garantiu esse direito, pelo tratamento dado aos trabalhadores migrantes, pela capacidade do pequeno país de receber e abrigar mais de 1 milhão de visitantes. Mas, no fundo, também havia outra crítica comum: o país não tinha cultura futebolística.

O Catar nunca havia se classificado para uma Copa do Mundo por méritos próprios. A Qatar Stars League é uma das mais ricas da região, com estádios climatizados de última geração. Mas as multidões para times como Al Sadd e Al Rayyan costumam chegar às centenas, não aos milhares. Quem, perguntavam-se os organizadores, lotaria os estádios quando o Catar jogasse? Quem forneceria a trilha sonora?

A resposta foi aproveitar a fértil cultura ultra na região e importá-la.

A seleção catariana recebeu uma ajuda "importada" nas arquibancadas durante a Copa do Mundo. Foto: Noushad Thekkayil/EFE

Mas era improvável que essa cultura se encaixasse na realidade comercializada da Copa do Mundo do Catar. O código da cultura ultras é oposicionista e profundamente antiautoritário, em constante conflito com a polícia e a mídia. No Oriente Médio e no norte da África, os ultras também foram politicamente influentes: os ultras egípcios desempenharam um papel fundamental na Primavera Árabe de 2011, que derrubou Hosni Mubarak da presidência, e seu poder e popularidade nas ruas era tamanho que os ultras foram barrados por um de seus sucessores, Abdel-Fattah el-Sissi, depois que ele chegou ao poder em um golpe de estado.

Os cantos das arquibancadas da Tunísia, Argélia, Marrocos e Líbano também serviram de trilha sonora para protestos antigovernamentais. Mas, dentro dos estádios, podem preencher até os espaços mais estéreis com paixão, cor e som.

Assim, em abril, foi organizado um evento-teste em Beirute, capital do Líbano. Centenas de estudantes libaneses e torcedores de um clube local, o Nejmeh, foram recrutados para fazer um vídeo de teste no estádio Camille Chamoun, recriando a atmosfera que um grupo ultras pode oferecer. O vídeo mostra centenas de torcedores cantando, exibindo faixas e fazendo pirotecnias.

Um capo, termo usado para o torcedor que comanda os cânticos, foi trazido do principal grupo de ultras do clube turco Galatasaray para dar a direção. O Galatasaray era uma escolha óbvia: o time tem uma das cenas ultras mais respeitadas do mundo. Mas os libaneses disseram que não precisavam de orientação.

“Não! Nós mostramos a eles como se faz!”, disse um torcedor ultra libanês na sexta-feira. Ele se recusou a dar seu nome completo, uma prática comum na cena ultra, e se irritou com a ideia de que alguém precisasse organizar um grupo de torcedores radicais. Os ultras turcos, disse ele, “iam vir ao Catar, mas nós os surpreendemos. Já fazemos isso há muito tempo”.

O vídeo impressionou as pessoas certas em Doha. Na base do boca a boca, ofereceu-se aos jovens torcedores libaneses um acordo extraordinário: voos gratuitos, acomodações, ingressos para jogos e alimentação, além de uma pequena diária, tudo para que eles levassem um pouco da cultura ultra aos jogos da Copa do Mundo do Catar. Os torcedores chegaram em meados de outubro para ensaiar suas coreografias e praticar seus novos cantos.

E aprender o hino nacional do Catar.

Estar na Copa do Mundo é um sonho, disse o torcedor ultra libanês. Mas não foram apenas os torcedores libaneses que se juntaram ao esforço: o grupo de cerca de 1.500 torcedores também incluía egípcios, argelinos e alguns sírios. O dinheiro, disse o torcedor ultra, não era a única motivação.

“É nosso dever apoiar um país árabe”, afirmou. “Nós compartilhamos a mesma língua. Compartilhamos a mesma cultura. Somos dedos da mesma mão. Queremos mostrar ao mundo algo especial. Vocês vão ver uma coisa especial”.

Nas arquibancadas

No pontapé inicial no estádio Al Thumama na sexta-feira, os 1.500 ultras importados para o Catar se reuniram na seção designada atrás de um dos gols, vestindo camisetas marrons idênticas: Catar no peito, “Tudo por Al Annabi” nas costas. O hino nacional tocou e os ultras o cantaram como se fosse deles. Quando terminou, os capos libaneses bateram seus tambores e os ultras soltaram um verdadeiro trovão.

“O povo do Catar realmente não apoia o time assim”, disse Abdullah Aziz al-Khalaf, gerente de recursos humanos de 27 anos, parado no saguão assistindo ao desempenho dos ultras com uma mistura de orgulho e perplexidade. “Porque, aqui no Catar, não vamos muito ao estádio”.

Os organizadores da Copa do Mundo não responderam a perguntas sobre os torcedores, nem sobre os esforços para identificá-los e trazê-los para o torneio. Um homem vestindo uma camisa polo com o logotipo da Aspire Academy, o projeto bilionário de cultivo de talentos do Catar, filmou a multidão por 90 minutos.

O Catar estreou sendo derrotado pelo Equador por 2 a 0; na sequência perdeu para Senegal por 3 a 1 e encerrou a campanha na fase de grupos sendo derrotado pela Holanda por 2 a 0.  Foto: Rodrigo Jiménez/EFE

Mas a paixão parecia verdadeira. A decepção também, já que o Senegal marcou duas vezes. Na arquibancada, a cada poucas fileiras, líderes de torcedores em camisetas brancas gritavam e exortavam os fiéis a cantar mais forte, imitando um fenômeno muitas vezes visto em multidões de ultras na Itália, Alemanha e Marrocos: você canta mais alto e faz mais barulho quando está perdendo. Os tambores batem mais alto.

Toda a multidão finalmente ganhou vida quando Mohammed Muntari marcou o primeiro gol do Catar em Copas do Mundo. Mas nem todos entenderam o momento: em meio às comemorações pulsantes, um segurança correu numa tentativa fracassada de pedir aos ultras que se sentassem. A alegria durou pouco, pois o Senegal marcou o terceiro gol. O jogo terminou, 3-1. Poucas horas depois, o Catar se tornou a primeira nação a ser eliminada desta Copa do Mundo. O encerramento da participação do país-sede se deu contra a Holanda, com mais uma derrota, desta vez por 2 a 0./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

DOHA, Catar - No meio do segundo tempo da partida do Catar contra o Senegal na Copa do Mundo, a bateria parou quando um homem de chapéu e óculos escuros se levantou e pediu silêncio.

Momentos antes, uma parte da multidão – mais de mil pessoas, quase todos homens, todos vestindo camisetas marrons idênticas com a palavra “Catar” em inglês e árabe – cantava em uníssono sob a batuta de quatro líderes de torcida. Mas agora o mar de homens entendeu o recado, seguiu a ordem e caiu num estranho silêncio enquanto o barulho do jogo girava dentro do estádio Al Thumama.

Aí veio mais um sinal. E a multidão explodiu de volta à vida.

“Vamos, Marrons!”, eles entoaram sem parar, em árabe, uma referência ao apelido da seleção do Catar. Homens de braços dados, pulando. O chão tremendo.

Torcedores chegam ao Estádio Al Bayt antes da abertura da Copa do Mundo do Catar.  Foto: Noushad Thekkayil/EFE

A cena lembrava mais os estádios de futebol da América do Sul e da Europa, e a torcida parecia a dos ultras, uma cultura de torcedores de futebol altamente organizada com raízes na Itália que pode ser encontrada em todo o mundo, inclusive no norte da África e Oriente Médio.

E era bem isso. O barulho da torcida enchia o estádio, como cinco dias antes, na estreia do Catar contra o Equador. Sua energia era implacável e contagiante. Mas a arte corporal de muitos deles os denunciava.

As tatuagens, que são extremamente raras e altamente reprovadas na sociedade do Golfo, pareciam sugerir que os torcedores não eram catarianos. Mas, então, quem seriam eles? E de onde tinham vindo?

Som importado

O plano foi traçado no início de 2022, quando a Copa do Mundo finalmente se aproximava. O Catar tem sido alvo de críticas desde que conquistou o direito de sediar o evento: pela votação corrompida que garantiu esse direito, pelo tratamento dado aos trabalhadores migrantes, pela capacidade do pequeno país de receber e abrigar mais de 1 milhão de visitantes. Mas, no fundo, também havia outra crítica comum: o país não tinha cultura futebolística.

O Catar nunca havia se classificado para uma Copa do Mundo por méritos próprios. A Qatar Stars League é uma das mais ricas da região, com estádios climatizados de última geração. Mas as multidões para times como Al Sadd e Al Rayyan costumam chegar às centenas, não aos milhares. Quem, perguntavam-se os organizadores, lotaria os estádios quando o Catar jogasse? Quem forneceria a trilha sonora?

A resposta foi aproveitar a fértil cultura ultra na região e importá-la.

A seleção catariana recebeu uma ajuda "importada" nas arquibancadas durante a Copa do Mundo. Foto: Noushad Thekkayil/EFE

Mas era improvável que essa cultura se encaixasse na realidade comercializada da Copa do Mundo do Catar. O código da cultura ultras é oposicionista e profundamente antiautoritário, em constante conflito com a polícia e a mídia. No Oriente Médio e no norte da África, os ultras também foram politicamente influentes: os ultras egípcios desempenharam um papel fundamental na Primavera Árabe de 2011, que derrubou Hosni Mubarak da presidência, e seu poder e popularidade nas ruas era tamanho que os ultras foram barrados por um de seus sucessores, Abdel-Fattah el-Sissi, depois que ele chegou ao poder em um golpe de estado.

Os cantos das arquibancadas da Tunísia, Argélia, Marrocos e Líbano também serviram de trilha sonora para protestos antigovernamentais. Mas, dentro dos estádios, podem preencher até os espaços mais estéreis com paixão, cor e som.

Assim, em abril, foi organizado um evento-teste em Beirute, capital do Líbano. Centenas de estudantes libaneses e torcedores de um clube local, o Nejmeh, foram recrutados para fazer um vídeo de teste no estádio Camille Chamoun, recriando a atmosfera que um grupo ultras pode oferecer. O vídeo mostra centenas de torcedores cantando, exibindo faixas e fazendo pirotecnias.

Um capo, termo usado para o torcedor que comanda os cânticos, foi trazido do principal grupo de ultras do clube turco Galatasaray para dar a direção. O Galatasaray era uma escolha óbvia: o time tem uma das cenas ultras mais respeitadas do mundo. Mas os libaneses disseram que não precisavam de orientação.

“Não! Nós mostramos a eles como se faz!”, disse um torcedor ultra libanês na sexta-feira. Ele se recusou a dar seu nome completo, uma prática comum na cena ultra, e se irritou com a ideia de que alguém precisasse organizar um grupo de torcedores radicais. Os ultras turcos, disse ele, “iam vir ao Catar, mas nós os surpreendemos. Já fazemos isso há muito tempo”.

O vídeo impressionou as pessoas certas em Doha. Na base do boca a boca, ofereceu-se aos jovens torcedores libaneses um acordo extraordinário: voos gratuitos, acomodações, ingressos para jogos e alimentação, além de uma pequena diária, tudo para que eles levassem um pouco da cultura ultra aos jogos da Copa do Mundo do Catar. Os torcedores chegaram em meados de outubro para ensaiar suas coreografias e praticar seus novos cantos.

E aprender o hino nacional do Catar.

Estar na Copa do Mundo é um sonho, disse o torcedor ultra libanês. Mas não foram apenas os torcedores libaneses que se juntaram ao esforço: o grupo de cerca de 1.500 torcedores também incluía egípcios, argelinos e alguns sírios. O dinheiro, disse o torcedor ultra, não era a única motivação.

“É nosso dever apoiar um país árabe”, afirmou. “Nós compartilhamos a mesma língua. Compartilhamos a mesma cultura. Somos dedos da mesma mão. Queremos mostrar ao mundo algo especial. Vocês vão ver uma coisa especial”.

Nas arquibancadas

No pontapé inicial no estádio Al Thumama na sexta-feira, os 1.500 ultras importados para o Catar se reuniram na seção designada atrás de um dos gols, vestindo camisetas marrons idênticas: Catar no peito, “Tudo por Al Annabi” nas costas. O hino nacional tocou e os ultras o cantaram como se fosse deles. Quando terminou, os capos libaneses bateram seus tambores e os ultras soltaram um verdadeiro trovão.

“O povo do Catar realmente não apoia o time assim”, disse Abdullah Aziz al-Khalaf, gerente de recursos humanos de 27 anos, parado no saguão assistindo ao desempenho dos ultras com uma mistura de orgulho e perplexidade. “Porque, aqui no Catar, não vamos muito ao estádio”.

Os organizadores da Copa do Mundo não responderam a perguntas sobre os torcedores, nem sobre os esforços para identificá-los e trazê-los para o torneio. Um homem vestindo uma camisa polo com o logotipo da Aspire Academy, o projeto bilionário de cultivo de talentos do Catar, filmou a multidão por 90 minutos.

O Catar estreou sendo derrotado pelo Equador por 2 a 0; na sequência perdeu para Senegal por 3 a 1 e encerrou a campanha na fase de grupos sendo derrotado pela Holanda por 2 a 0.  Foto: Rodrigo Jiménez/EFE

Mas a paixão parecia verdadeira. A decepção também, já que o Senegal marcou duas vezes. Na arquibancada, a cada poucas fileiras, líderes de torcedores em camisetas brancas gritavam e exortavam os fiéis a cantar mais forte, imitando um fenômeno muitas vezes visto em multidões de ultras na Itália, Alemanha e Marrocos: você canta mais alto e faz mais barulho quando está perdendo. Os tambores batem mais alto.

Toda a multidão finalmente ganhou vida quando Mohammed Muntari marcou o primeiro gol do Catar em Copas do Mundo. Mas nem todos entenderam o momento: em meio às comemorações pulsantes, um segurança correu numa tentativa fracassada de pedir aos ultras que se sentassem. A alegria durou pouco, pois o Senegal marcou o terceiro gol. O jogo terminou, 3-1. Poucas horas depois, o Catar se tornou a primeira nação a ser eliminada desta Copa do Mundo. O encerramento da participação do país-sede se deu contra a Holanda, com mais uma derrota, desta vez por 2 a 0./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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