GOIÂNIA - Com um salário de R$ 25 mil no Sampaio Corrêa, do Maranhão, o zagueiro Allan Godói era um adepto das apostas online. Com cadastros em sites feitos em nome da mulher, o atleta burlava a vedação das empresas à participação de jogadores profissionais e depois ia a campo defender a equipe. Allan é um dos denunciados no esquema desvendado pela Operação Penalidade Máxima.
Em depoimento, o jogador disse que as apostas nos próprios jogos eram feitas “raramente” e confirmou que também fazia apostas em partidas das séries A e B do Campeonato Brasileiro e do futebol europeu. “Uma coisa normal”, frisou o atleta, sem entender sua participação nos dois lados do balcão e desconhecimento qualquer conflito de interesses.
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A Operação Penalidade Máxima expôs também outra realidade, a do conflito de interesses de jogadores que fazem apostas e depois entram em campo por seus clubes
O caso traz à tona uma realidade que a investigação do Ministério Público de Goiás (MP-GO) revelou comum nos vestiários de equipes brasileiras que aparecem em casas de apostas: jogadores atuando nos dois lados do mercado que movimenta bilhões de reais e que se tornou o maior financiador do futebol brasileiro.
Em geral, os temos de uso das casas de apostas e os regulamentos das principais competições vedam atletas profissionais de participar das movimentações nos sites. A Medida Provisória elaborada pelo governo Federal para regulamentar as casas de apostas reforça essa proibição, ao impedir que atletas, técnicos, árbitros e dirigentes de clubes participem da jogatina.
Colega de elenco de Allan Godói até o ano passado e outro denunciado à Justiça por manipulação de um jogo da Série B, o volante André Queixo também costumava fazer apostas em partidas de futebol nas casas especializadas. Em depoimento, porém, ele disse que “já apostou em jogos”, mas não apostava em “partidas de times que defende”. Atualmente, é jogador do Ituano e foi afastado pela diretoria do clube paulista.
Allan Godói encaminhou a reportagem para seu advogado, que não comentou o caso. E o advogado de André Queixo, Levy Leonardo, disse que só se manifestaria no processo.
Mesmo entre jogadores que recusaram pagamentos para realizar ações predeterminadas em campo, o esquema de manipulação revelado pela investigação não motivava imediata reprovação. Um atleta ouvido na investigação e que não foi denunciado mostrou conversas em que negou tentativas de aliciamento na Série B, mas não quis denunciar internamente a cooptação.
Quando questionado se outro jogador toparia receber dinheiro para trabalhar em favor da quadrilha, respondeu: “veja com ele lá”. E diante do apelo para que não falasse sobre a abordagem ilegal, tranquilizou o aliciador: “relaxa”.
Os jogadores da elite do futebol brasileiro passaram a receber orientações dos clubes. Alguns deles promoveram palestras para conscientizar os atletas. O Vasco foi mais além e optou por entregar uma cartilha com a ideia de evitar o envolvimento de seus jogadores em esquemas de apostas.
Entre os grandes de São Paulo, o Corinthians reuniu o elenco para assistir a uma palestra sobre apostas esportivas pelo delegado César Saad, da Delegacia de Repressão aos Delitos do Esporte (Drade), e pelo advogado Luiz Felipe Santoro, sobre apostas esportivas e profissionais do esporte. O clube diz ter orientação interna e regulamento que proíbe funcionários de apostar.
O mesmo também ocorre no Palmeiras, que afirma que, por força de contrato, os jogadores “são proibidos de se envolver ou participar, direta ou indiretamente, de apostas esportivas e devem informar o clube caso sejam eventualmente procurados por aliciadores”.
A discussão chegou também nos atletas das categorias de base e nos times femininos. Nas três últimas semanas, os clubes estão se blindando como podem para evitar que seus atletas, profissionais ou não, se envolvem nas falcatruas e no esquema de manipulação de resultados nas casas de apostas.
Os atletas dizem que têm falado sobre o assunto internamente também. O lateral-esquerdo Marçal, do Botafogo, revelou ter sido abordado pelas redes sociais para participar de um esquema fraudulento. O jogador afirmou que foi procurado na temporada passada para um caso de manipulação de resultados e que rejeitou prontamente a proposta.
“No meu caso, foi ano passado contra o Flamengo, que eu tomei um cartão por reclamação. Depois, recebi uma mensagem no Instagram dizendo: ‘pô, Marçal, tomando cartão por reclamação? Mais vale ganhar dinheiro com isso. O que você acha?’ Eu dei uma resposta que não pode passar na televisão. E nunca mais tive contato”, revelou.
Ao Estadão, investigadores do caso se disseram impressionados com a “normalização” das abordagens para ações ilegais e com a penetração do mercado de apostas dentro dos vestiários. O possível alcance do esquema deixou clubes e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) apavorados.
Como mostrou a reportagem, empresas de apostas injetam cerca de R$ 3,5 bilhões no futebol, com patrocínios a clubes, jogadores, competições, transmissões e até torcidas organizadas. Hoje, dos 40 clubes das duas principais divisões nacionais, apenas o Cuiabá não é patrocinado por alguma plataforma de aposta.