Pela primeira vez em Copas do Mundo, uma seleção pôde trocar no Catar um dos seus jogadores em campo sem queimar uma das substituições a que tinha direito. Foi a estreia da troca de atletas por concussão cerebral. A preocupação com esse tipo de lesão levou ao também inédito uso de um aparelho médico para avaliação imediata de casos de concussão, ainda no gramado, se necessário.
Mas o que levou a Fifa a se preocupar com este tipo de problema de saúde agora? Quais os riscos para os jogadores de futebol a curto e longo prazo em casos de choques de cabeça? E para praticantes mais jovens, como crianças e adolescentes das categorias de base dos clubes? Há risco de danos cerebrais em caso de simples cabeçadas na bola? Para responder estas perguntas, o Estadão foi atrás de estudos e especialistas em neurociência.
O garoto de Harvard
As concussões cerebrais, que se caracterizam pela perda temporária de consciência, se tornaram preocupação para a Fifa nos últimos anos, na esteira de um movimento encabeçado por lideranças científicas dos Estados Unidos há pelo menos 30 anos.
Um dos pioneiros foi o americano Christopher Nowinski, dono de uma das histórias mais improváveis da ciência do seu país. Formado em ciências sociais pela prestigiada Universidade de Harvard, Nowinski resolveu aproveitar seus quase dois metros de altura para se aventurar nas lutas de WWE, conhecidas no Brasil por “Telecatch”. Seu apelido era “The Harvard Boy” (o garoto de Harvard).
Mesmo teatralizados, os confrontos e as eventuais pancadas na cabeça causaram no americano a chamada Síndrome Pós-Concussional, que forçou sua aposentadoria na luta livre. Os sintomas, como tontura e confusão mental, fizeram Nowinski se interessar pelo tema. Ele foi fundo na pesquisa e, em 2006, transformou seus estudos no influente livro Head Games: Football’s Concussion Crisis (“Jogos de cabeça: a crise da concussão no futebol”, em tradução livre).
De acordo com a revista científica The Lancet, uma das mais importantes do mundo, o livro do americano “causou ondas de impacto por toda a NFL”, a liga de futebol americano dos EUA. A partir dali, a concussão cerebral se tornou um dos temas esportivos mais pesquisados no país. Nowinski, por sua vez, se aprofundou no tema. Tornou-se um neurocientista, obteve o título de PhD e ajudou a fundar a Concussion Legacy Foundation, entidade focada em estudos ligados à concussão.
A fundação, por sua vez, se tornou uma das entidades científicas mais poderosas dos Estados Unidos, com orçamento de dar inveja a grandes universidades. Não por acaso começou a financiar estudos ligados ao tema até em instituições brasileiras nos últimos anos - o estudo do cérebro do ex-boxeador Éder Jofre, por exemplo, é bancado pela entidade americana.
Enquanto crescia, a fundação ganhava espaço na imprensa, apresentando às famílias dos EUA os riscos apresentados pelo futebol americano praticado pelos seus filhos nas escolas. Como consequência, outros esportes, de menor impacto, ganharam atenção e cresceram entre o público americano, como o futebol tradicional. Não demorou, portanto, para os riscos da modalidade começarem a ser observados de perto, a partir dos anos de 2010.
Riscos do futebol tradicional
Com certo atraso, estas preocupações chegaram à Europa nos últimos anos. E, em agosto de 2022, a International Football Association Board (Ifab), entidade que define as regras do futebol, recomendou que crianças de até 12 anos evitem cabeçadas na bola. Os árbitros de campeonatos de base até receberam orientação para marcar falta nos jogos nestes casos.
Em comunicado, a Ifab disse que a medida é fruto de cuidados “a curto e a longo prazo”. “Esta preocupação se torna aguda quando os jogadores são crianças porque seu corpo, seu cérebro e suas habilidades motoras estão ainda em desenvolvimento e talvez não tenham a força física e nem a experiência suficientes para minimizar possíveis riscos”, explicou a entidade.
O neurologista brasileiro Renato Anghinah explica que, no caso das crianças, a preocupação está no choque entre cabeças e também no choque entre cabeça e corpo, principalmente porque os pequenos atletas ainda estão com seus cérebros em formação. A curto prazo, elas podem sofrer um Traumatismo Cranioencefálico (TCE). Depois de muitos anos, o risco está na chamada encefalopatia traumática crônica, doença do cérebro causada por inúmeras e repetitivas pancadas ao longo do tempo.
“Quanto maior o tempo de exposição às pancadas, maior a chance de desenvolver essa doença. Se eu proíbo as cabeçadas na bola, principalmente nesta fase de formação, quando o cérebro está em desenvolvimento, eu estou ganhando duas coisas: vou evitar que eventualmente provoque algum dano numa fase ainda em formação e estou diminuindo o tempo de exposição destas crianças. Reduzo, assim, de 25 a 30% o tempo de exposição que estes indivíduos tiveram aos traumas de crânio”, disse ao Estadão Renato Anghinah, do Hospital das Clínicas e livre docente em neurologia pela USP (Universidade de São Paulo).
No mundo dos adultos, os choques de cabeça também preocupam. O especialista dá uma sugestão para reduzir essas cenas que se tornaram corriqueiras nas partidas de futebol. “Assim como o carrinho por trás, cabeçada na cabeça do outro por trás poderia gerar falta e cartão amarelo. Simples! É só uma questão de a Fifa querer mudar isso. Vai evitar a cabeçada? Não, mas o jogador, com certeza, vai ter mais cuidado nestes lances.”
Cabeçadas na bola são perigosas para o cérebro?
Não há estudos provando qualquer dano ao cérebro de um jogador por conta de cabeçadas na bola. As pesquisas sobre o tema ainda são raras, mas uma delas analisou os possíveis danos cognitivos que o movimento poderia causar em cérebros de jogadores do Atlético-MG e do América-MG. Numa comparação com pessoas que não são atletas, o estudo publicado em 2019 na revista Frontiers in Neurology “não mostrou diferenças significativas em testes de performance”, apontou.
A pesquisa teve entre seus autores o médico Paulo Caramelli, doutor em neurologia e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e o ortopedista Rodrigo Lasmar, que divide sua atenção entre o departamento médico do Atlético e o da seleção brasileira - esteve em cinco das últimas seis Copas do Mundo com a equipe nacional e operou Neymar em 2018.
Os autores são cautelosos e afirmam que o estudo não é definitivo e o tema exige mais pesquisas, principalmente a longo prazo. “Mais estudos, principalmente com um desenho longitudinal (maior alcance), são necessários para esclarecer o significado clínico da cabeçada como possível causa de dano cerebral, o que segue como um tema controverso e inexplorado, e para identificar os fatores de risco.”
A preocupação dos especialistas, no momento, é quanto aos efeitos das cabeçadas (mesmo aquelas somente na bola), a longo prazo. No estudo, Lasmar, Caramelli e outros cientistas estimam que um jogador profissional alcance o número de 300 jogos numa carreira bem-sucedida, o que poderia gerar cerca de 2 mil cabeçadas na bola ao longo de uma trajetória profissional nos gramados.
Em breve artigo na revista Nature, os neurocientistas britânicos William Stewart e Alan Carson afirmam que ex-jogadores de futebol da Escócia analisados em pesquisa apresentaram maiores chances de doenças neurodegenerativas, como demência, Mal de Parkinson e de Alzheimer após a aposentadoria.
“Apesar de fazer parte do futebol desde a sua criação, poucos estudos avaliaram os efeitos a curto e longo prazo da cabeçada. Mesmo assim, em estudos de imagem do cérebro, declarações sobre cabeçadas no futebol são relacionadas a mudanças verificáveis na estrutura do cérebro”, apontam os pesquisadores no artigo intitulado “Heading in the right direction”, um trocadilho com a palavra “heading”, que significa “cabeçada” e também “ir”.
Também cauteloso, o estudo destaca que problemas cognitivos verificados em ex-atletas de 50 e 60 anos podem ter outras causas. Mas não descartam eventuais mudanças radicais no esporte, caso novas pesquisas apontem maior relação entre as cabeçadas e problemas de saúde a longo prazo.
Futebol de capacete?
Especialistas do mundo científico não descartam mudanças radicais na prática do futebol no futuro em caso de eventuais estudos a confirmarem danos cerebrais. Um jogo sem a permissão de cabeçadas na bola ou a utilização de capacetes estariam entre os cenários hipotéticos.
Os capacetes poderiam ser uma solução parcial para o problema. “Não resolveria completamente, mas amenizaria com certeza. Seria como aconteceu com a exigência de usar capacete para pilotos de moto. Os números caíram muito. O índice de traumatismo foi lá embaixo. O impacto, em termos de sociedade, foi fantástico”, afirmou ao Estadão o neurocirurgião Feres Chaddad, professor da Unifesp e chefe da Neurocirurgia da Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Os médicos brasileiros, contudo, lembram que capacetes e outros equipamentos de proteção não servem para reduzir o impacto no cérebro em caso de uma forte desaceleração. Isso é algo comum no futebol americano, nos lances de “tackle” (impedir a passagem do rival), ou de falta, no futebol tradicional.
“Mais ou menos 50% das lesões cerebrais em jogos de contato são causadas pela desaceleração e aceleração do cérebro. Não precisa encostar na cabeça do indivíduo para ter lesão no cérebro”, explicou Anghinah.
“Num momento, um jogador e seu cérebro estão a 30 km/h. Aí ele sofre o tackle. E, milissegundos, a velocidade vai a zero. O cérebro está solto e chacoalha dentro da caixa craniana. Um atleta pode sofrer um tackle, sem choque de cabeça, e cair desacordado no gramado. E nem bateu a cabeça. Por quê? Porque a desaceleração brusca pode lesar o cérebro.”
Profissionalização da gestão
Anghinah e Chaddad pedem mais pesquisas na área, principalmente com atletas já aposentados. Eles lembram que os problemas no cérebro só aparecem quando os jogadores já deixaram os gramados. E acreditam que, pela onda de profissionalização da gestão dos clubes de futebol, haverá maior abertura para pesquisas no futuro.
“Com as SAFs, os clubes passam a ter um dono. E o dono é o responsável pelo que acontece com o elenco do time. Hoje, se um clube sem SAF sofre algum problema, não acontece nada com o presidente. Já com a SAF os donos vão sofrer um processo ou perder dinheiro”, afirmou Chaddad.