Quantos segundos são necessários para conhecer a história de Romário? Com apenas 1,67m de altura, o ex-atacante da seleção brasileira e de clubes como Flamengo, Vasco da Gama e Barcelona marcou o mundo do futebol com títulos — coletivos e individuais —, mais de mil gols, confusões e muita, mas muita marra. A história, que é digna de um documentário, vem sendo contada de forma mais dinâmica e sucinta no TikTok para uma nova geração.
Na plataforma chinesa, vídeos que resumem a trajetória do Baixinho contam com milhões de visualizações e apresentam um dos maiores ícones da história do futebol brasileiro a geração Z. O grupo etário, que compõem o público majoritário da rede social, conta com jovens que nasceram entre 1997 e 2010. Graças ao aplicativo de vídeos curtos, eles vem descobrindo uma série de jogadores que antes pertenciam aos relatos de avôs, pais, tios e irmãos mais velhos.
Engana-se, no entanto, quem acredita que somente os lances futebolísticos do ex-jogador são compartilhados na rede social. A trajetória fora de campo, com brigas, polêmicas, provocações e lesões, é vista com o mesmo entusiamo que os golaços de Romário são assistidos.
Nos vídeos publicados no aplicativo, essas são cenas comuns: o ex-atacante aparece em meio a uma multidão de repórteres. Irritado, ele não poupa palavras e xinga todos em volta. Na próxima, o ex-atleta joga futevôlei e dirige um belo conversível vermelho.
Em outra, ele dança enquanto exibe notas de dinheiro para seus amigos e, na sequência, briga com um jogador adversário. Um dos vídeos que compila as cenas tem um minuto de duração e é embalado pelo funk “Saquarema” de Mc Rogê. Ao todo, são mais de 800 mil visualizações.
E não é só o eterno camisa 11 da seleção brasileira que é objeto desses edits, termo utilizado pelos usuários do TikTok para os vídeos da plataforma. Craques brasileiros como Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Adriano, Renato Gaúcho, entre outros, contam com centenas de compilados postados na rede social.
Ao todo, os vídeos somam milhões de visualizações e constituíram um nicho próprio dentro da plataforma. Há um ecossistema de contas dedicadas ao que os usuários do TikTok conhecem como “futebol retrô”. Os responsáveis pelas edições, entretanto, sequer viram os craques de seus vídeos jogarem.
O que é que os craques de antigamente têm?
Para Ariel Nobre, 17, criar edits de TikTok sobre futebol foi unir o útil ao agradável. Ele, que é apaixonado pelo esporte desde criança, é um ávido consumidor de edits de outros nichos como séries de TV, filmes e músicas. Atualmente, Nobre controla o perfil @Nobre_Edits, que conta com quase 300 mil seguidores. ”Acabei juntando as duas coisas: o futebol, que é o que eu mais gosto na vida, com os edits, algo que estou sempre assistindo.”
A predileção por antigamente surgiu com Diego Maradona. O jovem se apaixonou pelo jeito e habilidade do atleta e não demorou muito para começar um perfil de vídeos dedicados a jogadores que já se aposentaram. “O futebol do passado sempre me transmitiu maior emoção”, relatou. “Queria entender tudo o que já aconteceu na história do esporte e como elas marcaram a modalidade.”
Já o usuário @magoedits_, perfil controlado por Marcos Vinicius da Silva, 20, começou a criar vídeos para a plataforma chinesa em 2021, após conhecer craques como Romário via o TikTok. “Os vídeos não mostravam tanto ele no jogo, mas sim antes ou depois da partida”, comentou.
“Comecei a fazer esses edits, sempre focando em jogadores antigos. Fazia vídeos sobre o estilo de vida deles, como eles se comportavam fora de campo. O público gostou bastante.” Atualmente, o perfil conta com quase 600 mil seguidores.
O interesse por craques de antigamente pode ser resumido por um único fator: a personalidade. “Os jogadores de antigamente viviam mais, isso chama atenção. Hoje em dia, são poucos os que tem a personalidade de um Romário ou de um Renato Gaúcho”, diz o TikToker.
Para Renê Salviano, CEO da Heatmap Sports and Entertainment, agência que conecta marcas ao mercado esportivo e de entretenimento, a mudança do perfil dos atletas profissionais ao longo das últimas décadas explica o motivo pelo qual parte da Geração Z parece mais interessada em craques do passado.
“A difusão da internet trouxe um cuidado muito grande com o que se fala e com como você se porta”, diz Salviano. “Antes não havia muito filtro. Não só no esporte, mas na sociedade em geral”. O CEO entende que os atletas da atualidade tem de calcular cada palavra que falam ou escrevem, limitando o espaço para a autenticidade. “Provocações contra rivais, marra, declarações fortes… isso é tudo o que o povo quer ver, mas essa época passou. A gestão de carreira profissionalizou esse lado do futebol”, diz Salviano.
Mais informação, menos tempos
Vídeos que compilam lances de jogadores não são exatamente novos na internet. É o que indica Wagner Leitzke, Diretor de Digital da End to End, agência esportiva com especialização em engajamento de fãs.
Em meados dos anos 2000, era comum encontrar produções que juntavam os melhores gols e assistências de inúmeros atletas. Os títulos costumavam adotar a expressão “Goals, Skills & Assists”, ou “Gols, Dribles & Assistências” em português, e se tornaram febre entre fãs do esporte que navegavam pela internet.
Os edits do TikTok, no entanto, se diferenciam de algumas formas. A primeira é relativa ao acesso. “O jovem que entrar no universo do esporte encontra com muita facilidade material de antigamente”, afirma Leitzke. “Antes, você sofria para encontrar partidas antigas. Hoje, é só procurar na internet e você acha.”
Ariel Nobre e Marcos Vinícius concordam com a afirmação e compartilham com o Estadão que os vídeos selecionados para as edits são pegos na internet, em sites da imprensa ou até mesmo em acervos digitais de órgãos como a Fifa. “Há muito conteúdo sobre jogadores na internet, especialmente atletas do passado. Não só sobre os lances, mas sobre a vida deles também”, diz Marcos Vinícius. A facilidade permite com que diferentes tipos de edições sejam realizadas.
O segundo fator que diferencia os vídeos das décadas de 2000 e 2010 para as produções atuais é a duração. Nos últimos anos, o TikTok se posicionou como uma rede de vídeos curtos. Ao circular pelo feed do aplicativo, a maioria das produções terá, no máximo, um minuto de duração. E isso é proposital.
A tendência segue a forma com que a Geração Z consome conteúdo, incluindo esportes. É comum que os jovens não assistam partidas de futebol inteiras, optando por recortes de melhores momentos ou apenas os gols. “A geração atual não tem mais paciência para sentar e assistir ao jogo inteiro, ele tem outras opções de entretenimento no celular, no streaming, no videogame”, diz Leitzke.
Os cortes e recortes da narrativa
Por fim, a diferença mais significativa é encontrada nos recortes narrativos feitos pela Geração Z. “Toda partida é uma narrativa, toda carreira de jogador é uma história”, afirma Lucas Carvalho, o “Don”. Ele é Diretor de Criação especializado em esportes. “Há uma história a ser contada por todo atleta, com começo, meio e fim. Arcos, heróis e vilões. Quando a Geração Z cria esses vídeos mais curtos, eles têm que sintetizar essa história em uma janela de tempo menor”.
“Quando estou produzindo os edits, costumo analisar a carreira do jogador”, afirma o TikToker Ariel Nobre. “O Ronaldo, por exemplo, foi alguém que teve inúmeras dificuldades na carreira: perdeu a final de 98 e teve inúmeras lesões, mas não desistiu. Continuou, se recuperou e foi vitorioso em 2002″. Para o Nobre, o segredo de um bom vídeo é entender as glórias e as derrotas na carreira de um jogador e escolher imagens e a música que contemplem essa narrativa.
“O Ronaldo foi um dos maiores jogadores, talvez o maior da posição dele”, completa Renê Salviano. “Mas como foi a dor dele?”, questiona. “Essas histórias podem ser recortadas de várias formas. Até mesmo a dor e os erros são interessantes.” É explorando os diversos recortes narrativos possíveis nas trajetórias de cada atleta que os responsáveis pelos edits conseguem angariar seu público. Assim, vão-se os vídeos de melhores momentos e entram os vídeos que se dedicam a momentos específicos.
Na plataforma chinesa, é possível encontrar produções curtas que falam sobre as lesões de Ronaldo, sua recuperação e seu eventual retorno à glória. Também existem aqueles edits que versam sobre as brigas de Romário, sua predileção por mulheres e suas frases mais polêmicas.
Cada um desses temas é abordado em um único vídeo curto e, assim, é possível compartimentalizar as narrativas de cada atleta. Você só quer saber sobre as comemorações polêmicas e divertidas de Paulo Nunes? Existem edições dedicadas somente a isso. Quer ver o Adriano falando sobre sua batalha contra depressão? É possível achar uma leva de vídeos sobre o tema.
“Nem sempre a história de um jogador acontece dentro de campo”, afirma o Diretor de Criação Don. “Os feitos extracampo, muitas vezes, são mais interessantes. Especialmente quando você não viu aquele jogador atuar.” Para ele, é comum que um torcedor idolatre um atleta por sua história de vida, por sua filosofia ou por sua postura. “Mais do que feitos, nós nos identificamos com pessoas e com histórias reais”.
Don também vê como positivo o fato de que tais narrativas se mantém vivas. “A garotada está falando sobre esses caras, estão apresentando esses craques para uma geração que não conheceria eles de outra forma”. “Hoje, jovens de 19 anos conhecem muito mais a história de Johan Cruyff do que a minha geração”, afirma Don. “Essas histórias estão sendo preservadas.”