Como a paixão pelo futebol ajuda idosos no tratamento do Alzheimer?


Emoção causada pelo esporte estimula memórias em pessoas com doenças neurodegenerativas e incentiva projetos no Brasil e mundo afora

Por Ingrid Gonzaga
Atualização:

A emoção causada pela conquista de um campeonato importante pelo seu time de coração é algo que somente os mais apaixonados por futebol conhecem. Assistir àquela equipe para a qual se escolheu torcer erguer mais uma vez uma taça é, de alguma maneira, uma vitória pessoal do próprio torcedor.

Mas para além dos momentos felizes que um título de expressão proporciona, a paixão pelo futebol pode criar memórias difíceis de se apagar. Sebastião Ribeiro de Paiva é exemplo disso. Apesar de ter sido diagnosticado com Alzheimer em 2014, seu Tião, como é mais conhecido, recita como ninguém a escalação do São Paulo responsável por levar o Campeonato Paulista de 1957.

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“Poy, De Sordi, Mauro. Dino, Vítor e Riberto. Maurinho, Amaury, Gino, Zizinho e Canhoteiro”, responde, quando o neto, o jornalista Daniel Ribeiro, pergunta qual era a escalação da qual o avô gostava em vídeo que se tornou viral.

Por conta da publicação, a Superbet, patrocinadora do clube, convidou Sebastião e a família para acompanhar uma partida. “A empresa disponibilizou uma cadeira de rodas para facilitar a locomoção, já que meu vô tem muita dificuldade de andar. Quando chegamos, colocamos ele na cadeira e levamos até o camarote. Foi uma das melhores experiências da minha vida. Estar com ele no Morumbi, com ele em alguns momentos tendo consciência de que estava no jogo, foi muito emocionante”, conta o neto.

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Seu Tião não é o único. Há dois anos, foi Carlos Francisco Felix Franco quem teve um vídeo publicado nas redes sociais. Tricolor fanático diagnosticado desde 2015, o idoso cantou o hino do Fluminense e foi gravado por Ítalo Nenis Rodrigues, amigo da família e cuidador que também torce para o clube. Seu Carlinhos foi repostado pela página oficial do time e emocionou até rivais.

“Às vezes, em um dia mais agitado, a gente colocava o hino do Fluminense para tocar e isso auxiliava ele a ficar mais calmo e lidar com isso. O humor dele já mudava, ficava mais leve. Se alguém chegava com a camisa do Fluminense, ele abria um sorriso”, explica Ítalo.

Tanto seu Carlinhos quanto seu Tião demonstram como o sentimento pela modalidade que os acompanhou por toda a vida é uma ferramenta importante no combate ao Alzheimer. Reconhecida por médicos e pesquisadores, essa capacidade do esporte de estimular memórias é utilizada por projetos no Brasil e mundo a fora para reintegrar socialmente pessoas que sofrem com a doença.

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Doença neurodegenerativa

“O Alzheimer é um tipo de demência, o mais famoso. A demência faz com que a pessoa vá perdendo as funções cognitivas do cérebro, como a linguagem, memória, geolocalização, memória de trabalho, tomada de decisão. Ela é progressiva, até o momento que não se consegue mais fazer atividades básicas”, explica Carlos Chechetti, membro do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador do projeto Revivendo Memórias.

O pesquisador conta que portadores do Alzheimer inicialmente tem suas memórias recentes afetadas mas, com a progressão da doença, começam a ter também suas lembranças armazenadas há mais tempo apagadas.

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Alguns tipos de memória, no entanto, são mais dificilmente esquecidas. “As memórias antigas já ficam preservadas por um bom período durante o curso do desenvolvimento do Alzheimer, e a memórias emocionais ficam ainda mais fortes. Elas têm locais em que ficam armazenadas que faz com que estejam protegidas por um tempo”, diz Chechetti.

É o que explica o fato de seu Tião e seu Carlinhos, mesmo convivendo com a doença há uma década, continuarem se lembrando dos clubes pelos quais torciam. A ligação emocional dos dois idosos com São Paulo e Fluminense, respectivamente, era forte.

“Ele sempre foi um torcedor muito ativo. Frequentou o Maracanã, o Estádio de Laranjeiras, tem foto na sede do clube, assistia a todos os jogos, tem várias camisas”, conta Ítalo, sobre Carlos. “Ele tinha uma relação muito forte com o Fluminense, um vínculo muito grande. Não perdia nada, chegava em casa e ligava a TV para assistir a todas as notícias. O Fluminense transcende tudo na vida dele”.

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A experiência era semelhante para Sebastião. “Ele é são-paulino desde sempre. Ele sempre me contou que jogou bola no terreno do Morumbi, antes do estádio ser construído. Chegou a ser sócio do clube em 1968″, diz Daniel, que relembra diversos jogos marcantes que Tião acompanhou.

“Teve uma final de Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians quando meu avô namorava com minha avó. Ele estava assistindo com a família dela, inteira corinthiana. Seu sogro e cunhado tinham comprado fogos para soltar caso o Corinthians fosse campeão. Só que isso não aconteceu, quem acabou ganhando foi o São Paulo. Meu avô foi lá, roubou os fogos deles e soltou para comemorar”, rememora.

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Mas não só o futebol tem esse poder de despertar lembranças. “O futebol é uma das paixões. Pode ser outro esporte, pode ser a música, cinema, literatura, novela”, conta o pesquisador.

Revivendo Memórias

Foi pensando nisso que Carlos Chechetti fundou o Revivendo Memórias, programa social que usa as paixões de idosos com Alzheimer como uma forma de proporcionar uma melhora na qualidade de vida deles. Em encontros realizados com grupos de portadores da doença, o projeto busca reinserir socialmente essas pessoas, que interagem entre si sobre interesses em comum.

“O programa trabalha muito em cima da reminiscência. No nosso caso, a gente chama nossa metodologia de ‘reminiscência da paixões’. A reminiscência às vezes explora fatos importantes da vida, mostra-se foto de casamento, filhos. Mas às vezes essa reminiscência pode ir por um caminho mais triste dependendo de como foi o passado da pessoa. Quando a gente foca na reminiscência das paixões, é uma coisa normalmente bastante positiva, porque a pessoa se emociona muito, é muito dela essas emoções”, diz.

O fundador do Revivendo Memórias conta que, por causa do estigma que a doença traz, muitos portadores se isolam socialmente, mesmo que ainda consigam manter interações. Como consequência, desenvolvem emoções negativas crônicas como variação de humor, depressão, agitação, apatia e perda da própria identidade.

O projeto surgiu como uma maneira de engajar novamente essas pessoas. Inicialmente realizado em parceria com o Hospital das Clínicas de São Paulo, o programa se expandiu e passou a ser feito em conjunto com museus. Além do Museu do Futebol, o Revivendo Memórias também é desenvolvido em locais como o Museu Catavento; a Casa Guilherme de Almeida, em Minas Gerais; e os ILPIs, Instituições de Longa Permanência para Idosos, em São Paulo.

Chechetti conta sobre as atividades desenvolvidas: “A gente senta com os cards (cartões com fotos de personalidades) e pensa em alguma atividade em cima deles. No Museu do Futebol, normalmente se monta a seleção de todos os tempos. em que discutir quem vai ser o melhor o goleiro, melhor lateral direito e monta aquela seleção. Muitas vezes a gente mistura as paixões, mesmo no Museu do Futebol” .

“Uma vez o goleiro era o Silvio Santos, a zaga eram os Trapalhões, o Pelé estava com o Senna no ataque, a Hebe com a Elis Regina no meio de campo e escalaram Dercy Gonçalves como técnica, porque ela falava muito palavrão, então seria uma boa técnica”, relembra.

Outras iniciativas

O Revivendo Memórias é um projeto com precedentes. Em 2009, o Museu do Futebol da Escócia teve uma iniciativa semelhante, que inspirou Chechetti a repetir o modelo no País.

Richard McBrearty, diretor do Football Memories Scotland, descreve o projeto escocês como uma ideia inesperada. “A primeira reunião ocorreu aqui no Hampden Park, em Glasgow, onde o museu está sediado, em 2008. No final da reunião, um dos historiadores do Falkirk FC se levantou e falou sobre uma reunião de reminiscência local onde os fãs idosos do clube se encontravam e relembravam jogadores e jogos do passado”, conta.

“Foi um relato poderoso que descreveu como alguns dos fãs que viviam com demência e não conseguiam se lembrar de como chegaram à reunião naquele dia, ou o que comeram no café da manhã, ‘ganhavam vida’ ao olhar para uma imagem de um jogador antigo. As imagens agiam como gatilhos de memória. Suas personalidades retornavam quando conseguiam se lembrar de quem eram”, relembra McBrearty.

Por causa disso, o presidente do museu à época percebeu a importância de se criar um projeto nessa vertente, que se tornou permanente um tempo depois. “A prioridade é dar suporte a pessoas que sofrem de solidão, isolamento social e demência por meio de sessões de reminiscência em grupo e individuais”.

Entre as atividades mais usadas, estão as que envolvem jogos em que os idosos podem comparar os méritos e estatísticas de jogadores antigos e as que simplesmente apresentam cartões com imagens de ex-atletas de futebol e fazem com que os participantes falem sobre aquelas pessoas.

Os cartões podem ser personalizados. De maneira geral, as imagens utilizadas são de jogadores mais famosos, pois podem ativar gatilhos de memória mais facilmente. Porém, se o idoso costumava torcer para um clube menos conhecido, o museu possui um banco de imagens de onde pode arranjar fotografias de membros daquela equipe e usá-las para relembrar a pessoa da relação que ela tinha com o time.

Segundo McBrearty, essas atividades podem ser intergeracionais. Ele explica que as brincadeiras “têm o potencial de reconectar uma pessoa idosa que vive com demência com seus filhos e netos. A capacidade de relembrar os antigos jogadores e desfrutar de um jogo divertido faz muito para aumentar os níveis de confiança e pode trazer de volta sua personalidade, e os netos podem desfrutar de uma atividade divertida mais uma vez com seu ente querido idoso.”

O museu realizou ainda outras ações nos últimos quinze anos. A exposição “The Game We Used to Play” (O Jogo que Costumávamos Jogar, em tradução livre) foi realizada com base nas memórias de futebol que pessoas com algum tipo de demência possuíam. “Esta foi uma exposição muito popular e ajudou com um dos nossos objetivos de desafiar o estigma que ainda existe em torno da demência”, expõe.

Assim como o projeto brasileiro, agora o Football Memories Scotland faz parte de um projeto ainda maior, o Memories Scotland. Nesse novo formato, a iniciativa é expandida para outras áreas além do esporte: “Desde 2015, houve projetos de reminiscência para golfe, rúgbi e shinty”.

“Mais recentemente, fizemos parcerias com bibliotecas em toda a Escócia para estabelecer o Memories Scotland — isso trouxe coleções fotográficas de história local e social mais amplas. Portanto, o Football Memories agora faz parte de uma parceria muito maior de grupos de reminiscência e, com um arquivo digital, temos acesso aos recursos digitais uns dos outros”.

A emoção causada pela conquista de um campeonato importante pelo seu time de coração é algo que somente os mais apaixonados por futebol conhecem. Assistir àquela equipe para a qual se escolheu torcer erguer mais uma vez uma taça é, de alguma maneira, uma vitória pessoal do próprio torcedor.

Mas para além dos momentos felizes que um título de expressão proporciona, a paixão pelo futebol pode criar memórias difíceis de se apagar. Sebastião Ribeiro de Paiva é exemplo disso. Apesar de ter sido diagnosticado com Alzheimer em 2014, seu Tião, como é mais conhecido, recita como ninguém a escalação do São Paulo responsável por levar o Campeonato Paulista de 1957.

“Poy, De Sordi, Mauro. Dino, Vítor e Riberto. Maurinho, Amaury, Gino, Zizinho e Canhoteiro”, responde, quando o neto, o jornalista Daniel Ribeiro, pergunta qual era a escalação da qual o avô gostava em vídeo que se tornou viral.

Por conta da publicação, a Superbet, patrocinadora do clube, convidou Sebastião e a família para acompanhar uma partida. “A empresa disponibilizou uma cadeira de rodas para facilitar a locomoção, já que meu vô tem muita dificuldade de andar. Quando chegamos, colocamos ele na cadeira e levamos até o camarote. Foi uma das melhores experiências da minha vida. Estar com ele no Morumbi, com ele em alguns momentos tendo consciência de que estava no jogo, foi muito emocionante”, conta o neto.

Seu Tião não é o único. Há dois anos, foi Carlos Francisco Felix Franco quem teve um vídeo publicado nas redes sociais. Tricolor fanático diagnosticado desde 2015, o idoso cantou o hino do Fluminense e foi gravado por Ítalo Nenis Rodrigues, amigo da família e cuidador que também torce para o clube. Seu Carlinhos foi repostado pela página oficial do time e emocionou até rivais.

“Às vezes, em um dia mais agitado, a gente colocava o hino do Fluminense para tocar e isso auxiliava ele a ficar mais calmo e lidar com isso. O humor dele já mudava, ficava mais leve. Se alguém chegava com a camisa do Fluminense, ele abria um sorriso”, explica Ítalo.

Tanto seu Carlinhos quanto seu Tião demonstram como o sentimento pela modalidade que os acompanhou por toda a vida é uma ferramenta importante no combate ao Alzheimer. Reconhecida por médicos e pesquisadores, essa capacidade do esporte de estimular memórias é utilizada por projetos no Brasil e mundo a fora para reintegrar socialmente pessoas que sofrem com a doença.

Doença neurodegenerativa

“O Alzheimer é um tipo de demência, o mais famoso. A demência faz com que a pessoa vá perdendo as funções cognitivas do cérebro, como a linguagem, memória, geolocalização, memória de trabalho, tomada de decisão. Ela é progressiva, até o momento que não se consegue mais fazer atividades básicas”, explica Carlos Chechetti, membro do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador do projeto Revivendo Memórias.

O pesquisador conta que portadores do Alzheimer inicialmente tem suas memórias recentes afetadas mas, com a progressão da doença, começam a ter também suas lembranças armazenadas há mais tempo apagadas.

Alguns tipos de memória, no entanto, são mais dificilmente esquecidas. “As memórias antigas já ficam preservadas por um bom período durante o curso do desenvolvimento do Alzheimer, e a memórias emocionais ficam ainda mais fortes. Elas têm locais em que ficam armazenadas que faz com que estejam protegidas por um tempo”, diz Chechetti.

É o que explica o fato de seu Tião e seu Carlinhos, mesmo convivendo com a doença há uma década, continuarem se lembrando dos clubes pelos quais torciam. A ligação emocional dos dois idosos com São Paulo e Fluminense, respectivamente, era forte.

“Ele sempre foi um torcedor muito ativo. Frequentou o Maracanã, o Estádio de Laranjeiras, tem foto na sede do clube, assistia a todos os jogos, tem várias camisas”, conta Ítalo, sobre Carlos. “Ele tinha uma relação muito forte com o Fluminense, um vínculo muito grande. Não perdia nada, chegava em casa e ligava a TV para assistir a todas as notícias. O Fluminense transcende tudo na vida dele”.

A experiência era semelhante para Sebastião. “Ele é são-paulino desde sempre. Ele sempre me contou que jogou bola no terreno do Morumbi, antes do estádio ser construído. Chegou a ser sócio do clube em 1968″, diz Daniel, que relembra diversos jogos marcantes que Tião acompanhou.

“Teve uma final de Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians quando meu avô namorava com minha avó. Ele estava assistindo com a família dela, inteira corinthiana. Seu sogro e cunhado tinham comprado fogos para soltar caso o Corinthians fosse campeão. Só que isso não aconteceu, quem acabou ganhando foi o São Paulo. Meu avô foi lá, roubou os fogos deles e soltou para comemorar”, rememora.

Mas não só o futebol tem esse poder de despertar lembranças. “O futebol é uma das paixões. Pode ser outro esporte, pode ser a música, cinema, literatura, novela”, conta o pesquisador.

Revivendo Memórias

Foi pensando nisso que Carlos Chechetti fundou o Revivendo Memórias, programa social que usa as paixões de idosos com Alzheimer como uma forma de proporcionar uma melhora na qualidade de vida deles. Em encontros realizados com grupos de portadores da doença, o projeto busca reinserir socialmente essas pessoas, que interagem entre si sobre interesses em comum.

“O programa trabalha muito em cima da reminiscência. No nosso caso, a gente chama nossa metodologia de ‘reminiscência da paixões’. A reminiscência às vezes explora fatos importantes da vida, mostra-se foto de casamento, filhos. Mas às vezes essa reminiscência pode ir por um caminho mais triste dependendo de como foi o passado da pessoa. Quando a gente foca na reminiscência das paixões, é uma coisa normalmente bastante positiva, porque a pessoa se emociona muito, é muito dela essas emoções”, diz.

O fundador do Revivendo Memórias conta que, por causa do estigma que a doença traz, muitos portadores se isolam socialmente, mesmo que ainda consigam manter interações. Como consequência, desenvolvem emoções negativas crônicas como variação de humor, depressão, agitação, apatia e perda da própria identidade.

O projeto surgiu como uma maneira de engajar novamente essas pessoas. Inicialmente realizado em parceria com o Hospital das Clínicas de São Paulo, o programa se expandiu e passou a ser feito em conjunto com museus. Além do Museu do Futebol, o Revivendo Memórias também é desenvolvido em locais como o Museu Catavento; a Casa Guilherme de Almeida, em Minas Gerais; e os ILPIs, Instituições de Longa Permanência para Idosos, em São Paulo.

Chechetti conta sobre as atividades desenvolvidas: “A gente senta com os cards (cartões com fotos de personalidades) e pensa em alguma atividade em cima deles. No Museu do Futebol, normalmente se monta a seleção de todos os tempos. em que discutir quem vai ser o melhor o goleiro, melhor lateral direito e monta aquela seleção. Muitas vezes a gente mistura as paixões, mesmo no Museu do Futebol” .

“Uma vez o goleiro era o Silvio Santos, a zaga eram os Trapalhões, o Pelé estava com o Senna no ataque, a Hebe com a Elis Regina no meio de campo e escalaram Dercy Gonçalves como técnica, porque ela falava muito palavrão, então seria uma boa técnica”, relembra.

Outras iniciativas

O Revivendo Memórias é um projeto com precedentes. Em 2009, o Museu do Futebol da Escócia teve uma iniciativa semelhante, que inspirou Chechetti a repetir o modelo no País.

Richard McBrearty, diretor do Football Memories Scotland, descreve o projeto escocês como uma ideia inesperada. “A primeira reunião ocorreu aqui no Hampden Park, em Glasgow, onde o museu está sediado, em 2008. No final da reunião, um dos historiadores do Falkirk FC se levantou e falou sobre uma reunião de reminiscência local onde os fãs idosos do clube se encontravam e relembravam jogadores e jogos do passado”, conta.

“Foi um relato poderoso que descreveu como alguns dos fãs que viviam com demência e não conseguiam se lembrar de como chegaram à reunião naquele dia, ou o que comeram no café da manhã, ‘ganhavam vida’ ao olhar para uma imagem de um jogador antigo. As imagens agiam como gatilhos de memória. Suas personalidades retornavam quando conseguiam se lembrar de quem eram”, relembra McBrearty.

Por causa disso, o presidente do museu à época percebeu a importância de se criar um projeto nessa vertente, que se tornou permanente um tempo depois. “A prioridade é dar suporte a pessoas que sofrem de solidão, isolamento social e demência por meio de sessões de reminiscência em grupo e individuais”.

Entre as atividades mais usadas, estão as que envolvem jogos em que os idosos podem comparar os méritos e estatísticas de jogadores antigos e as que simplesmente apresentam cartões com imagens de ex-atletas de futebol e fazem com que os participantes falem sobre aquelas pessoas.

Os cartões podem ser personalizados. De maneira geral, as imagens utilizadas são de jogadores mais famosos, pois podem ativar gatilhos de memória mais facilmente. Porém, se o idoso costumava torcer para um clube menos conhecido, o museu possui um banco de imagens de onde pode arranjar fotografias de membros daquela equipe e usá-las para relembrar a pessoa da relação que ela tinha com o time.

Segundo McBrearty, essas atividades podem ser intergeracionais. Ele explica que as brincadeiras “têm o potencial de reconectar uma pessoa idosa que vive com demência com seus filhos e netos. A capacidade de relembrar os antigos jogadores e desfrutar de um jogo divertido faz muito para aumentar os níveis de confiança e pode trazer de volta sua personalidade, e os netos podem desfrutar de uma atividade divertida mais uma vez com seu ente querido idoso.”

O museu realizou ainda outras ações nos últimos quinze anos. A exposição “The Game We Used to Play” (O Jogo que Costumávamos Jogar, em tradução livre) foi realizada com base nas memórias de futebol que pessoas com algum tipo de demência possuíam. “Esta foi uma exposição muito popular e ajudou com um dos nossos objetivos de desafiar o estigma que ainda existe em torno da demência”, expõe.

Assim como o projeto brasileiro, agora o Football Memories Scotland faz parte de um projeto ainda maior, o Memories Scotland. Nesse novo formato, a iniciativa é expandida para outras áreas além do esporte: “Desde 2015, houve projetos de reminiscência para golfe, rúgbi e shinty”.

“Mais recentemente, fizemos parcerias com bibliotecas em toda a Escócia para estabelecer o Memories Scotland — isso trouxe coleções fotográficas de história local e social mais amplas. Portanto, o Football Memories agora faz parte de uma parceria muito maior de grupos de reminiscência e, com um arquivo digital, temos acesso aos recursos digitais uns dos outros”.

A emoção causada pela conquista de um campeonato importante pelo seu time de coração é algo que somente os mais apaixonados por futebol conhecem. Assistir àquela equipe para a qual se escolheu torcer erguer mais uma vez uma taça é, de alguma maneira, uma vitória pessoal do próprio torcedor.

Mas para além dos momentos felizes que um título de expressão proporciona, a paixão pelo futebol pode criar memórias difíceis de se apagar. Sebastião Ribeiro de Paiva é exemplo disso. Apesar de ter sido diagnosticado com Alzheimer em 2014, seu Tião, como é mais conhecido, recita como ninguém a escalação do São Paulo responsável por levar o Campeonato Paulista de 1957.

“Poy, De Sordi, Mauro. Dino, Vítor e Riberto. Maurinho, Amaury, Gino, Zizinho e Canhoteiro”, responde, quando o neto, o jornalista Daniel Ribeiro, pergunta qual era a escalação da qual o avô gostava em vídeo que se tornou viral.

Por conta da publicação, a Superbet, patrocinadora do clube, convidou Sebastião e a família para acompanhar uma partida. “A empresa disponibilizou uma cadeira de rodas para facilitar a locomoção, já que meu vô tem muita dificuldade de andar. Quando chegamos, colocamos ele na cadeira e levamos até o camarote. Foi uma das melhores experiências da minha vida. Estar com ele no Morumbi, com ele em alguns momentos tendo consciência de que estava no jogo, foi muito emocionante”, conta o neto.

Seu Tião não é o único. Há dois anos, foi Carlos Francisco Felix Franco quem teve um vídeo publicado nas redes sociais. Tricolor fanático diagnosticado desde 2015, o idoso cantou o hino do Fluminense e foi gravado por Ítalo Nenis Rodrigues, amigo da família e cuidador que também torce para o clube. Seu Carlinhos foi repostado pela página oficial do time e emocionou até rivais.

“Às vezes, em um dia mais agitado, a gente colocava o hino do Fluminense para tocar e isso auxiliava ele a ficar mais calmo e lidar com isso. O humor dele já mudava, ficava mais leve. Se alguém chegava com a camisa do Fluminense, ele abria um sorriso”, explica Ítalo.

Tanto seu Carlinhos quanto seu Tião demonstram como o sentimento pela modalidade que os acompanhou por toda a vida é uma ferramenta importante no combate ao Alzheimer. Reconhecida por médicos e pesquisadores, essa capacidade do esporte de estimular memórias é utilizada por projetos no Brasil e mundo a fora para reintegrar socialmente pessoas que sofrem com a doença.

Doença neurodegenerativa

“O Alzheimer é um tipo de demência, o mais famoso. A demência faz com que a pessoa vá perdendo as funções cognitivas do cérebro, como a linguagem, memória, geolocalização, memória de trabalho, tomada de decisão. Ela é progressiva, até o momento que não se consegue mais fazer atividades básicas”, explica Carlos Chechetti, membro do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador do projeto Revivendo Memórias.

O pesquisador conta que portadores do Alzheimer inicialmente tem suas memórias recentes afetadas mas, com a progressão da doença, começam a ter também suas lembranças armazenadas há mais tempo apagadas.

Alguns tipos de memória, no entanto, são mais dificilmente esquecidas. “As memórias antigas já ficam preservadas por um bom período durante o curso do desenvolvimento do Alzheimer, e a memórias emocionais ficam ainda mais fortes. Elas têm locais em que ficam armazenadas que faz com que estejam protegidas por um tempo”, diz Chechetti.

É o que explica o fato de seu Tião e seu Carlinhos, mesmo convivendo com a doença há uma década, continuarem se lembrando dos clubes pelos quais torciam. A ligação emocional dos dois idosos com São Paulo e Fluminense, respectivamente, era forte.

“Ele sempre foi um torcedor muito ativo. Frequentou o Maracanã, o Estádio de Laranjeiras, tem foto na sede do clube, assistia a todos os jogos, tem várias camisas”, conta Ítalo, sobre Carlos. “Ele tinha uma relação muito forte com o Fluminense, um vínculo muito grande. Não perdia nada, chegava em casa e ligava a TV para assistir a todas as notícias. O Fluminense transcende tudo na vida dele”.

A experiência era semelhante para Sebastião. “Ele é são-paulino desde sempre. Ele sempre me contou que jogou bola no terreno do Morumbi, antes do estádio ser construído. Chegou a ser sócio do clube em 1968″, diz Daniel, que relembra diversos jogos marcantes que Tião acompanhou.

“Teve uma final de Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians quando meu avô namorava com minha avó. Ele estava assistindo com a família dela, inteira corinthiana. Seu sogro e cunhado tinham comprado fogos para soltar caso o Corinthians fosse campeão. Só que isso não aconteceu, quem acabou ganhando foi o São Paulo. Meu avô foi lá, roubou os fogos deles e soltou para comemorar”, rememora.

Mas não só o futebol tem esse poder de despertar lembranças. “O futebol é uma das paixões. Pode ser outro esporte, pode ser a música, cinema, literatura, novela”, conta o pesquisador.

Revivendo Memórias

Foi pensando nisso que Carlos Chechetti fundou o Revivendo Memórias, programa social que usa as paixões de idosos com Alzheimer como uma forma de proporcionar uma melhora na qualidade de vida deles. Em encontros realizados com grupos de portadores da doença, o projeto busca reinserir socialmente essas pessoas, que interagem entre si sobre interesses em comum.

“O programa trabalha muito em cima da reminiscência. No nosso caso, a gente chama nossa metodologia de ‘reminiscência da paixões’. A reminiscência às vezes explora fatos importantes da vida, mostra-se foto de casamento, filhos. Mas às vezes essa reminiscência pode ir por um caminho mais triste dependendo de como foi o passado da pessoa. Quando a gente foca na reminiscência das paixões, é uma coisa normalmente bastante positiva, porque a pessoa se emociona muito, é muito dela essas emoções”, diz.

O fundador do Revivendo Memórias conta que, por causa do estigma que a doença traz, muitos portadores se isolam socialmente, mesmo que ainda consigam manter interações. Como consequência, desenvolvem emoções negativas crônicas como variação de humor, depressão, agitação, apatia e perda da própria identidade.

O projeto surgiu como uma maneira de engajar novamente essas pessoas. Inicialmente realizado em parceria com o Hospital das Clínicas de São Paulo, o programa se expandiu e passou a ser feito em conjunto com museus. Além do Museu do Futebol, o Revivendo Memórias também é desenvolvido em locais como o Museu Catavento; a Casa Guilherme de Almeida, em Minas Gerais; e os ILPIs, Instituições de Longa Permanência para Idosos, em São Paulo.

Chechetti conta sobre as atividades desenvolvidas: “A gente senta com os cards (cartões com fotos de personalidades) e pensa em alguma atividade em cima deles. No Museu do Futebol, normalmente se monta a seleção de todos os tempos. em que discutir quem vai ser o melhor o goleiro, melhor lateral direito e monta aquela seleção. Muitas vezes a gente mistura as paixões, mesmo no Museu do Futebol” .

“Uma vez o goleiro era o Silvio Santos, a zaga eram os Trapalhões, o Pelé estava com o Senna no ataque, a Hebe com a Elis Regina no meio de campo e escalaram Dercy Gonçalves como técnica, porque ela falava muito palavrão, então seria uma boa técnica”, relembra.

Outras iniciativas

O Revivendo Memórias é um projeto com precedentes. Em 2009, o Museu do Futebol da Escócia teve uma iniciativa semelhante, que inspirou Chechetti a repetir o modelo no País.

Richard McBrearty, diretor do Football Memories Scotland, descreve o projeto escocês como uma ideia inesperada. “A primeira reunião ocorreu aqui no Hampden Park, em Glasgow, onde o museu está sediado, em 2008. No final da reunião, um dos historiadores do Falkirk FC se levantou e falou sobre uma reunião de reminiscência local onde os fãs idosos do clube se encontravam e relembravam jogadores e jogos do passado”, conta.

“Foi um relato poderoso que descreveu como alguns dos fãs que viviam com demência e não conseguiam se lembrar de como chegaram à reunião naquele dia, ou o que comeram no café da manhã, ‘ganhavam vida’ ao olhar para uma imagem de um jogador antigo. As imagens agiam como gatilhos de memória. Suas personalidades retornavam quando conseguiam se lembrar de quem eram”, relembra McBrearty.

Por causa disso, o presidente do museu à época percebeu a importância de se criar um projeto nessa vertente, que se tornou permanente um tempo depois. “A prioridade é dar suporte a pessoas que sofrem de solidão, isolamento social e demência por meio de sessões de reminiscência em grupo e individuais”.

Entre as atividades mais usadas, estão as que envolvem jogos em que os idosos podem comparar os méritos e estatísticas de jogadores antigos e as que simplesmente apresentam cartões com imagens de ex-atletas de futebol e fazem com que os participantes falem sobre aquelas pessoas.

Os cartões podem ser personalizados. De maneira geral, as imagens utilizadas são de jogadores mais famosos, pois podem ativar gatilhos de memória mais facilmente. Porém, se o idoso costumava torcer para um clube menos conhecido, o museu possui um banco de imagens de onde pode arranjar fotografias de membros daquela equipe e usá-las para relembrar a pessoa da relação que ela tinha com o time.

Segundo McBrearty, essas atividades podem ser intergeracionais. Ele explica que as brincadeiras “têm o potencial de reconectar uma pessoa idosa que vive com demência com seus filhos e netos. A capacidade de relembrar os antigos jogadores e desfrutar de um jogo divertido faz muito para aumentar os níveis de confiança e pode trazer de volta sua personalidade, e os netos podem desfrutar de uma atividade divertida mais uma vez com seu ente querido idoso.”

O museu realizou ainda outras ações nos últimos quinze anos. A exposição “The Game We Used to Play” (O Jogo que Costumávamos Jogar, em tradução livre) foi realizada com base nas memórias de futebol que pessoas com algum tipo de demência possuíam. “Esta foi uma exposição muito popular e ajudou com um dos nossos objetivos de desafiar o estigma que ainda existe em torno da demência”, expõe.

Assim como o projeto brasileiro, agora o Football Memories Scotland faz parte de um projeto ainda maior, o Memories Scotland. Nesse novo formato, a iniciativa é expandida para outras áreas além do esporte: “Desde 2015, houve projetos de reminiscência para golfe, rúgbi e shinty”.

“Mais recentemente, fizemos parcerias com bibliotecas em toda a Escócia para estabelecer o Memories Scotland — isso trouxe coleções fotográficas de história local e social mais amplas. Portanto, o Football Memories agora faz parte de uma parceria muito maior de grupos de reminiscência e, com um arquivo digital, temos acesso aos recursos digitais uns dos outros”.

A emoção causada pela conquista de um campeonato importante pelo seu time de coração é algo que somente os mais apaixonados por futebol conhecem. Assistir àquela equipe para a qual se escolheu torcer erguer mais uma vez uma taça é, de alguma maneira, uma vitória pessoal do próprio torcedor.

Mas para além dos momentos felizes que um título de expressão proporciona, a paixão pelo futebol pode criar memórias difíceis de se apagar. Sebastião Ribeiro de Paiva é exemplo disso. Apesar de ter sido diagnosticado com Alzheimer em 2014, seu Tião, como é mais conhecido, recita como ninguém a escalação do São Paulo responsável por levar o Campeonato Paulista de 1957.

“Poy, De Sordi, Mauro. Dino, Vítor e Riberto. Maurinho, Amaury, Gino, Zizinho e Canhoteiro”, responde, quando o neto, o jornalista Daniel Ribeiro, pergunta qual era a escalação da qual o avô gostava em vídeo que se tornou viral.

Por conta da publicação, a Superbet, patrocinadora do clube, convidou Sebastião e a família para acompanhar uma partida. “A empresa disponibilizou uma cadeira de rodas para facilitar a locomoção, já que meu vô tem muita dificuldade de andar. Quando chegamos, colocamos ele na cadeira e levamos até o camarote. Foi uma das melhores experiências da minha vida. Estar com ele no Morumbi, com ele em alguns momentos tendo consciência de que estava no jogo, foi muito emocionante”, conta o neto.

Seu Tião não é o único. Há dois anos, foi Carlos Francisco Felix Franco quem teve um vídeo publicado nas redes sociais. Tricolor fanático diagnosticado desde 2015, o idoso cantou o hino do Fluminense e foi gravado por Ítalo Nenis Rodrigues, amigo da família e cuidador que também torce para o clube. Seu Carlinhos foi repostado pela página oficial do time e emocionou até rivais.

“Às vezes, em um dia mais agitado, a gente colocava o hino do Fluminense para tocar e isso auxiliava ele a ficar mais calmo e lidar com isso. O humor dele já mudava, ficava mais leve. Se alguém chegava com a camisa do Fluminense, ele abria um sorriso”, explica Ítalo.

Tanto seu Carlinhos quanto seu Tião demonstram como o sentimento pela modalidade que os acompanhou por toda a vida é uma ferramenta importante no combate ao Alzheimer. Reconhecida por médicos e pesquisadores, essa capacidade do esporte de estimular memórias é utilizada por projetos no Brasil e mundo a fora para reintegrar socialmente pessoas que sofrem com a doença.

Doença neurodegenerativa

“O Alzheimer é um tipo de demência, o mais famoso. A demência faz com que a pessoa vá perdendo as funções cognitivas do cérebro, como a linguagem, memória, geolocalização, memória de trabalho, tomada de decisão. Ela é progressiva, até o momento que não se consegue mais fazer atividades básicas”, explica Carlos Chechetti, membro do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador do projeto Revivendo Memórias.

O pesquisador conta que portadores do Alzheimer inicialmente tem suas memórias recentes afetadas mas, com a progressão da doença, começam a ter também suas lembranças armazenadas há mais tempo apagadas.

Alguns tipos de memória, no entanto, são mais dificilmente esquecidas. “As memórias antigas já ficam preservadas por um bom período durante o curso do desenvolvimento do Alzheimer, e a memórias emocionais ficam ainda mais fortes. Elas têm locais em que ficam armazenadas que faz com que estejam protegidas por um tempo”, diz Chechetti.

É o que explica o fato de seu Tião e seu Carlinhos, mesmo convivendo com a doença há uma década, continuarem se lembrando dos clubes pelos quais torciam. A ligação emocional dos dois idosos com São Paulo e Fluminense, respectivamente, era forte.

“Ele sempre foi um torcedor muito ativo. Frequentou o Maracanã, o Estádio de Laranjeiras, tem foto na sede do clube, assistia a todos os jogos, tem várias camisas”, conta Ítalo, sobre Carlos. “Ele tinha uma relação muito forte com o Fluminense, um vínculo muito grande. Não perdia nada, chegava em casa e ligava a TV para assistir a todas as notícias. O Fluminense transcende tudo na vida dele”.

A experiência era semelhante para Sebastião. “Ele é são-paulino desde sempre. Ele sempre me contou que jogou bola no terreno do Morumbi, antes do estádio ser construído. Chegou a ser sócio do clube em 1968″, diz Daniel, que relembra diversos jogos marcantes que Tião acompanhou.

“Teve uma final de Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians quando meu avô namorava com minha avó. Ele estava assistindo com a família dela, inteira corinthiana. Seu sogro e cunhado tinham comprado fogos para soltar caso o Corinthians fosse campeão. Só que isso não aconteceu, quem acabou ganhando foi o São Paulo. Meu avô foi lá, roubou os fogos deles e soltou para comemorar”, rememora.

Mas não só o futebol tem esse poder de despertar lembranças. “O futebol é uma das paixões. Pode ser outro esporte, pode ser a música, cinema, literatura, novela”, conta o pesquisador.

Revivendo Memórias

Foi pensando nisso que Carlos Chechetti fundou o Revivendo Memórias, programa social que usa as paixões de idosos com Alzheimer como uma forma de proporcionar uma melhora na qualidade de vida deles. Em encontros realizados com grupos de portadores da doença, o projeto busca reinserir socialmente essas pessoas, que interagem entre si sobre interesses em comum.

“O programa trabalha muito em cima da reminiscência. No nosso caso, a gente chama nossa metodologia de ‘reminiscência da paixões’. A reminiscência às vezes explora fatos importantes da vida, mostra-se foto de casamento, filhos. Mas às vezes essa reminiscência pode ir por um caminho mais triste dependendo de como foi o passado da pessoa. Quando a gente foca na reminiscência das paixões, é uma coisa normalmente bastante positiva, porque a pessoa se emociona muito, é muito dela essas emoções”, diz.

O fundador do Revivendo Memórias conta que, por causa do estigma que a doença traz, muitos portadores se isolam socialmente, mesmo que ainda consigam manter interações. Como consequência, desenvolvem emoções negativas crônicas como variação de humor, depressão, agitação, apatia e perda da própria identidade.

O projeto surgiu como uma maneira de engajar novamente essas pessoas. Inicialmente realizado em parceria com o Hospital das Clínicas de São Paulo, o programa se expandiu e passou a ser feito em conjunto com museus. Além do Museu do Futebol, o Revivendo Memórias também é desenvolvido em locais como o Museu Catavento; a Casa Guilherme de Almeida, em Minas Gerais; e os ILPIs, Instituições de Longa Permanência para Idosos, em São Paulo.

Chechetti conta sobre as atividades desenvolvidas: “A gente senta com os cards (cartões com fotos de personalidades) e pensa em alguma atividade em cima deles. No Museu do Futebol, normalmente se monta a seleção de todos os tempos. em que discutir quem vai ser o melhor o goleiro, melhor lateral direito e monta aquela seleção. Muitas vezes a gente mistura as paixões, mesmo no Museu do Futebol” .

“Uma vez o goleiro era o Silvio Santos, a zaga eram os Trapalhões, o Pelé estava com o Senna no ataque, a Hebe com a Elis Regina no meio de campo e escalaram Dercy Gonçalves como técnica, porque ela falava muito palavrão, então seria uma boa técnica”, relembra.

Outras iniciativas

O Revivendo Memórias é um projeto com precedentes. Em 2009, o Museu do Futebol da Escócia teve uma iniciativa semelhante, que inspirou Chechetti a repetir o modelo no País.

Richard McBrearty, diretor do Football Memories Scotland, descreve o projeto escocês como uma ideia inesperada. “A primeira reunião ocorreu aqui no Hampden Park, em Glasgow, onde o museu está sediado, em 2008. No final da reunião, um dos historiadores do Falkirk FC se levantou e falou sobre uma reunião de reminiscência local onde os fãs idosos do clube se encontravam e relembravam jogadores e jogos do passado”, conta.

“Foi um relato poderoso que descreveu como alguns dos fãs que viviam com demência e não conseguiam se lembrar de como chegaram à reunião naquele dia, ou o que comeram no café da manhã, ‘ganhavam vida’ ao olhar para uma imagem de um jogador antigo. As imagens agiam como gatilhos de memória. Suas personalidades retornavam quando conseguiam se lembrar de quem eram”, relembra McBrearty.

Por causa disso, o presidente do museu à época percebeu a importância de se criar um projeto nessa vertente, que se tornou permanente um tempo depois. “A prioridade é dar suporte a pessoas que sofrem de solidão, isolamento social e demência por meio de sessões de reminiscência em grupo e individuais”.

Entre as atividades mais usadas, estão as que envolvem jogos em que os idosos podem comparar os méritos e estatísticas de jogadores antigos e as que simplesmente apresentam cartões com imagens de ex-atletas de futebol e fazem com que os participantes falem sobre aquelas pessoas.

Os cartões podem ser personalizados. De maneira geral, as imagens utilizadas são de jogadores mais famosos, pois podem ativar gatilhos de memória mais facilmente. Porém, se o idoso costumava torcer para um clube menos conhecido, o museu possui um banco de imagens de onde pode arranjar fotografias de membros daquela equipe e usá-las para relembrar a pessoa da relação que ela tinha com o time.

Segundo McBrearty, essas atividades podem ser intergeracionais. Ele explica que as brincadeiras “têm o potencial de reconectar uma pessoa idosa que vive com demência com seus filhos e netos. A capacidade de relembrar os antigos jogadores e desfrutar de um jogo divertido faz muito para aumentar os níveis de confiança e pode trazer de volta sua personalidade, e os netos podem desfrutar de uma atividade divertida mais uma vez com seu ente querido idoso.”

O museu realizou ainda outras ações nos últimos quinze anos. A exposição “The Game We Used to Play” (O Jogo que Costumávamos Jogar, em tradução livre) foi realizada com base nas memórias de futebol que pessoas com algum tipo de demência possuíam. “Esta foi uma exposição muito popular e ajudou com um dos nossos objetivos de desafiar o estigma que ainda existe em torno da demência”, expõe.

Assim como o projeto brasileiro, agora o Football Memories Scotland faz parte de um projeto ainda maior, o Memories Scotland. Nesse novo formato, a iniciativa é expandida para outras áreas além do esporte: “Desde 2015, houve projetos de reminiscência para golfe, rúgbi e shinty”.

“Mais recentemente, fizemos parcerias com bibliotecas em toda a Escócia para estabelecer o Memories Scotland — isso trouxe coleções fotográficas de história local e social mais amplas. Portanto, o Football Memories agora faz parte de uma parceria muito maior de grupos de reminiscência e, com um arquivo digital, temos acesso aos recursos digitais uns dos outros”.

A emoção causada pela conquista de um campeonato importante pelo seu time de coração é algo que somente os mais apaixonados por futebol conhecem. Assistir àquela equipe para a qual se escolheu torcer erguer mais uma vez uma taça é, de alguma maneira, uma vitória pessoal do próprio torcedor.

Mas para além dos momentos felizes que um título de expressão proporciona, a paixão pelo futebol pode criar memórias difíceis de se apagar. Sebastião Ribeiro de Paiva é exemplo disso. Apesar de ter sido diagnosticado com Alzheimer em 2014, seu Tião, como é mais conhecido, recita como ninguém a escalação do São Paulo responsável por levar o Campeonato Paulista de 1957.

“Poy, De Sordi, Mauro. Dino, Vítor e Riberto. Maurinho, Amaury, Gino, Zizinho e Canhoteiro”, responde, quando o neto, o jornalista Daniel Ribeiro, pergunta qual era a escalação da qual o avô gostava em vídeo que se tornou viral.

Por conta da publicação, a Superbet, patrocinadora do clube, convidou Sebastião e a família para acompanhar uma partida. “A empresa disponibilizou uma cadeira de rodas para facilitar a locomoção, já que meu vô tem muita dificuldade de andar. Quando chegamos, colocamos ele na cadeira e levamos até o camarote. Foi uma das melhores experiências da minha vida. Estar com ele no Morumbi, com ele em alguns momentos tendo consciência de que estava no jogo, foi muito emocionante”, conta o neto.

Seu Tião não é o único. Há dois anos, foi Carlos Francisco Felix Franco quem teve um vídeo publicado nas redes sociais. Tricolor fanático diagnosticado desde 2015, o idoso cantou o hino do Fluminense e foi gravado por Ítalo Nenis Rodrigues, amigo da família e cuidador que também torce para o clube. Seu Carlinhos foi repostado pela página oficial do time e emocionou até rivais.

“Às vezes, em um dia mais agitado, a gente colocava o hino do Fluminense para tocar e isso auxiliava ele a ficar mais calmo e lidar com isso. O humor dele já mudava, ficava mais leve. Se alguém chegava com a camisa do Fluminense, ele abria um sorriso”, explica Ítalo.

Tanto seu Carlinhos quanto seu Tião demonstram como o sentimento pela modalidade que os acompanhou por toda a vida é uma ferramenta importante no combate ao Alzheimer. Reconhecida por médicos e pesquisadores, essa capacidade do esporte de estimular memórias é utilizada por projetos no Brasil e mundo a fora para reintegrar socialmente pessoas que sofrem com a doença.

Doença neurodegenerativa

“O Alzheimer é um tipo de demência, o mais famoso. A demência faz com que a pessoa vá perdendo as funções cognitivas do cérebro, como a linguagem, memória, geolocalização, memória de trabalho, tomada de decisão. Ela é progressiva, até o momento que não se consegue mais fazer atividades básicas”, explica Carlos Chechetti, membro do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenador do projeto Revivendo Memórias.

O pesquisador conta que portadores do Alzheimer inicialmente tem suas memórias recentes afetadas mas, com a progressão da doença, começam a ter também suas lembranças armazenadas há mais tempo apagadas.

Alguns tipos de memória, no entanto, são mais dificilmente esquecidas. “As memórias antigas já ficam preservadas por um bom período durante o curso do desenvolvimento do Alzheimer, e a memórias emocionais ficam ainda mais fortes. Elas têm locais em que ficam armazenadas que faz com que estejam protegidas por um tempo”, diz Chechetti.

É o que explica o fato de seu Tião e seu Carlinhos, mesmo convivendo com a doença há uma década, continuarem se lembrando dos clubes pelos quais torciam. A ligação emocional dos dois idosos com São Paulo e Fluminense, respectivamente, era forte.

“Ele sempre foi um torcedor muito ativo. Frequentou o Maracanã, o Estádio de Laranjeiras, tem foto na sede do clube, assistia a todos os jogos, tem várias camisas”, conta Ítalo, sobre Carlos. “Ele tinha uma relação muito forte com o Fluminense, um vínculo muito grande. Não perdia nada, chegava em casa e ligava a TV para assistir a todas as notícias. O Fluminense transcende tudo na vida dele”.

A experiência era semelhante para Sebastião. “Ele é são-paulino desde sempre. Ele sempre me contou que jogou bola no terreno do Morumbi, antes do estádio ser construído. Chegou a ser sócio do clube em 1968″, diz Daniel, que relembra diversos jogos marcantes que Tião acompanhou.

“Teve uma final de Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians quando meu avô namorava com minha avó. Ele estava assistindo com a família dela, inteira corinthiana. Seu sogro e cunhado tinham comprado fogos para soltar caso o Corinthians fosse campeão. Só que isso não aconteceu, quem acabou ganhando foi o São Paulo. Meu avô foi lá, roubou os fogos deles e soltou para comemorar”, rememora.

Mas não só o futebol tem esse poder de despertar lembranças. “O futebol é uma das paixões. Pode ser outro esporte, pode ser a música, cinema, literatura, novela”, conta o pesquisador.

Revivendo Memórias

Foi pensando nisso que Carlos Chechetti fundou o Revivendo Memórias, programa social que usa as paixões de idosos com Alzheimer como uma forma de proporcionar uma melhora na qualidade de vida deles. Em encontros realizados com grupos de portadores da doença, o projeto busca reinserir socialmente essas pessoas, que interagem entre si sobre interesses em comum.

“O programa trabalha muito em cima da reminiscência. No nosso caso, a gente chama nossa metodologia de ‘reminiscência da paixões’. A reminiscência às vezes explora fatos importantes da vida, mostra-se foto de casamento, filhos. Mas às vezes essa reminiscência pode ir por um caminho mais triste dependendo de como foi o passado da pessoa. Quando a gente foca na reminiscência das paixões, é uma coisa normalmente bastante positiva, porque a pessoa se emociona muito, é muito dela essas emoções”, diz.

O fundador do Revivendo Memórias conta que, por causa do estigma que a doença traz, muitos portadores se isolam socialmente, mesmo que ainda consigam manter interações. Como consequência, desenvolvem emoções negativas crônicas como variação de humor, depressão, agitação, apatia e perda da própria identidade.

O projeto surgiu como uma maneira de engajar novamente essas pessoas. Inicialmente realizado em parceria com o Hospital das Clínicas de São Paulo, o programa se expandiu e passou a ser feito em conjunto com museus. Além do Museu do Futebol, o Revivendo Memórias também é desenvolvido em locais como o Museu Catavento; a Casa Guilherme de Almeida, em Minas Gerais; e os ILPIs, Instituições de Longa Permanência para Idosos, em São Paulo.

Chechetti conta sobre as atividades desenvolvidas: “A gente senta com os cards (cartões com fotos de personalidades) e pensa em alguma atividade em cima deles. No Museu do Futebol, normalmente se monta a seleção de todos os tempos. em que discutir quem vai ser o melhor o goleiro, melhor lateral direito e monta aquela seleção. Muitas vezes a gente mistura as paixões, mesmo no Museu do Futebol” .

“Uma vez o goleiro era o Silvio Santos, a zaga eram os Trapalhões, o Pelé estava com o Senna no ataque, a Hebe com a Elis Regina no meio de campo e escalaram Dercy Gonçalves como técnica, porque ela falava muito palavrão, então seria uma boa técnica”, relembra.

Outras iniciativas

O Revivendo Memórias é um projeto com precedentes. Em 2009, o Museu do Futebol da Escócia teve uma iniciativa semelhante, que inspirou Chechetti a repetir o modelo no País.

Richard McBrearty, diretor do Football Memories Scotland, descreve o projeto escocês como uma ideia inesperada. “A primeira reunião ocorreu aqui no Hampden Park, em Glasgow, onde o museu está sediado, em 2008. No final da reunião, um dos historiadores do Falkirk FC se levantou e falou sobre uma reunião de reminiscência local onde os fãs idosos do clube se encontravam e relembravam jogadores e jogos do passado”, conta.

“Foi um relato poderoso que descreveu como alguns dos fãs que viviam com demência e não conseguiam se lembrar de como chegaram à reunião naquele dia, ou o que comeram no café da manhã, ‘ganhavam vida’ ao olhar para uma imagem de um jogador antigo. As imagens agiam como gatilhos de memória. Suas personalidades retornavam quando conseguiam se lembrar de quem eram”, relembra McBrearty.

Por causa disso, o presidente do museu à época percebeu a importância de se criar um projeto nessa vertente, que se tornou permanente um tempo depois. “A prioridade é dar suporte a pessoas que sofrem de solidão, isolamento social e demência por meio de sessões de reminiscência em grupo e individuais”.

Entre as atividades mais usadas, estão as que envolvem jogos em que os idosos podem comparar os méritos e estatísticas de jogadores antigos e as que simplesmente apresentam cartões com imagens de ex-atletas de futebol e fazem com que os participantes falem sobre aquelas pessoas.

Os cartões podem ser personalizados. De maneira geral, as imagens utilizadas são de jogadores mais famosos, pois podem ativar gatilhos de memória mais facilmente. Porém, se o idoso costumava torcer para um clube menos conhecido, o museu possui um banco de imagens de onde pode arranjar fotografias de membros daquela equipe e usá-las para relembrar a pessoa da relação que ela tinha com o time.

Segundo McBrearty, essas atividades podem ser intergeracionais. Ele explica que as brincadeiras “têm o potencial de reconectar uma pessoa idosa que vive com demência com seus filhos e netos. A capacidade de relembrar os antigos jogadores e desfrutar de um jogo divertido faz muito para aumentar os níveis de confiança e pode trazer de volta sua personalidade, e os netos podem desfrutar de uma atividade divertida mais uma vez com seu ente querido idoso.”

O museu realizou ainda outras ações nos últimos quinze anos. A exposição “The Game We Used to Play” (O Jogo que Costumávamos Jogar, em tradução livre) foi realizada com base nas memórias de futebol que pessoas com algum tipo de demência possuíam. “Esta foi uma exposição muito popular e ajudou com um dos nossos objetivos de desafiar o estigma que ainda existe em torno da demência”, expõe.

Assim como o projeto brasileiro, agora o Football Memories Scotland faz parte de um projeto ainda maior, o Memories Scotland. Nesse novo formato, a iniciativa é expandida para outras áreas além do esporte: “Desde 2015, houve projetos de reminiscência para golfe, rúgbi e shinty”.

“Mais recentemente, fizemos parcerias com bibliotecas em toda a Escócia para estabelecer o Memories Scotland — isso trouxe coleções fotográficas de história local e social mais amplas. Portanto, o Football Memories agora faz parte de uma parceria muito maior de grupos de reminiscência e, com um arquivo digital, temos acesso aos recursos digitais uns dos outros”.

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