Condenações do Fifagate estão ameaçadas por questões de excesso na aplicação da lei nos EUA


Dirigentes pedem que seus registros sejam apagados e que seu dinheiro seja devolvido

Por Rebecca R. Ruiz e Tariq Panja

THE NEW YORK TIMES - Quase uma década depois de agentes da polícia terem arrastado dirigentes do futebol mundial para fora de um hotel de luxo em Zurique, no meio da madrugada, revelando um escândalo de corrupção que abalou o esporte mais popular do mundo e ficou conhecido como Fifagate, o caso corre o risco de desmoronar. A reviravolta surge devido a questionamentos sobre se os procuradores americanos exageraram ao aplicar a lei dos Estados Unidos a um grupo de pessoas, muitas delas cidadãos estrangeiros, que defraudaram organizações internacionais com esquemas de suborno em todo o mundo.

A Suprema Corte dos Estados Unidos limitou no ano passado uma lei que era fundamental para o caso. Em setembro, uma juíza federal, citando a decisão da Suprema Corte, rejeitou as condenações de dois réus ligados à corrupção no futebol. Agora, vários ex-dirigentes, entre eles alguns que pagaram milhões de dólares em multas e cumpriram pena na prisão, argumentam que os esquemas de suborno pelos quais foram condenados já não são considerados crime nos Estados Unidos.

Encorajados pelas condenações anuladas, eles pedem que seus registros sejam apagados e que seu dinheiro seja devolvido. Suas esperanças estão ligadas aos casos de setembro, nos quais dois réus se beneficiaram de duas decisões recentes da Suprema Corte que rejeitaram a aplicação da lei em vigor nos casos de futebol por parte dos procuradores federais e ofereceram raras orientações sobre o que é conhecido como fraude de serviços honestos. Descobriu-se que os réus se envolveram em subornos que privaram organizações de fora dos Estados Unidos dos serviços honestos de seus funcionários, o que na época constituía fraude. Mas a juíza decidiu que a nova orientação significava que essas ações não eram mais proibidas pela lei americana.

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Dirigentes da Fifa foram arrastados de um hotel na Suíça, em 2015 Foto: Pascal Mora/The New York Times

Essa reviravolta no caso, que os procuradores federais de Brooklyn, em Nova York, estão contestando, pode transformar a história da corrupção profundamente enraizada no futebol mundial - detalhada em uma acusação de 236 páginas e provada por meio de 31 confissões de culpa e quatro condenações em julgamento - em uma novela sobre os excessos da justiça americana.

“É bastante significativo”, disse Daniel Richman, ex-procurador federal e professor de direito na Universidade de Columbia, “uma vez que a juíza rejeitou a teoria básica do governo”. Ele caracterizou o parecer como “surpreendente, mas bem fundamentado”.

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Os promotores do gabinete do procurador-geral dos Estados Unidos no Distrito Leste de Nova York estão se preparando para reagir. “Este gabinete defenderá vigorosamente as condenações”, disse um porta-voz, John Marzulli, “e não ficará de braços cruzados se os malfeitores tentarem retomar os milhões de dólares de ganhos ilícitos”.

Em um processo apresentado este mês, os procuradores argumentaram que a juíza federal que presidiu aos casos da Fifa, Pamela Chen, havia se equivocado ao interpretar a decisão da Suprema Corte. Os réus estrangeiros, disseram eles, tinham “laços e atividades substanciais nos Estados Unidos” e demonstraram que sabiam que o que estavam fazendo era crime.

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O debate jurídico surge em meio à crescente preocupação de que organizações esportivas globais - como a Fifa, o órgão regulador do futebol global, com sede na Suíça - operem em um mundo particular, intocável pelas autoridades. A corrupção sistêmica entre os principais líderes do futebol mundial foi vastamente documentada, mas até o Departamento de Justiça construir seu complexo caso e apresentar acusações, em 2015, nenhum governo tinha se arriscado a enfrentá-la de forma tão ambiciosa, com acusações que abarcavam três continentes.

Uma vez pública, a investigação da Fifa se tornou um dos maiores casos de corrupção transfronteiriça na história americana. Ela exigiu a cooperação de autoridades estrangeiras, que ajudaram a fazer prisões e extraditar réus para os Estados Unidos, revelou décadas de suborno e trouxe acusações de contratos secretos, entrega de dinheiro e intimidação em tribunais, além da confirmação oficial de que milhões de dólares em dinheiro influenciaram os votos para entregar as Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Catar.

O caso foi uma dádiva para advogados de colarinho branco e um alerta para o esporte internacional. E impulsionou a carreira dos procuradores americanos, que foram elogiados por aplicarem de forma criativa a lei sobre fraude em serviços honestos, a qual proíbe as pessoas de enganarem seus empregadores com esquemas de suborno e propinas que canalizam dinheiro para seus próprios bolsos. Muitos viram a estratégia como uma nova forma de combater o suborno internacional.

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As acusações levaram a uma renovação na liderança da Fifa - até mesmo à destituição de seu presidente de longa data, Sepp Blatter - e transformaram em celebridades os principais atores do caso. A mídia alemã apelidou Loretta Lynch, procuradora-geral dos Estados Unidos na época de caçadora da Fifa.

Não foi a primeira vez em que o Departamento de Justiça apresentou acusações complicadas sob o ponto de vista internacional. Mas o foco e o alcance descomunal do caso em outras partes do mundo levantaram questões sobre por que os promotores federais do Brooklyn escolheram investir anos de recursos públicos na investigação. Como justificativa, os procuradores apontaram a utilização de bancos americanos pelos réus e, de forma mais ampla, a “afronta aos princípios internacionais” que Lynch disse que os esquemas deles representavam.

José Maria Marin, então presidente da CBF, foi um dos presos no Fifagate Foto: Wilton Junior/Estadão
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Agora, enquanto os procuradores americanos se preparam para defender seu trabalho perante uma corte de apelação federal, está em questão a ideia de que a lei dos Estados Unidos poderia ser aplicada onde outros não pudessem ou não quisessem agir. Isto abriu a porta para uma possibilidade alarmante: que dirigentes esportivos e empresários proeminentes que tenham solicitado ou aceitado subornos possam ver suas condenações anuladas e suas fortunas devolvidas.

Em uma entrevista na semana passada, o ex-dirigente de futebol paraguaio Juan Ángel Napout disse que foi condenado para dar exemplo. “Por que eu?”, disse ele. “Eles precisavam de alguém, e esse alguém era eu”.

Napout pagou mais de 4 milhões de dólares ao governo americano, que até agora encaminhou mais de 120 milhões de dólares em dinheiro confiscado à Fifa e prometeu liberar mais dezenas de milhões. De volta a Assunção, desde que foi libertado da cadeia no ano passado, Napout, 65 anos, está pedindo aos Estados Unidos que anulem sua condenação e devolvam seu dinheiro.

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Napout ficou encarcerado por mais tempo do que qualquer outra pessoa implicada no caso, e seu estilo de vida até então luxuoso mudou quando ele se tornou cozinheiro de uma prisão na Flórida. Ele disse que não havia pensado em entrar com recurso até ouvir as absolvições de setembro e está procedendo apenas a pedido de sua família, “para que minha ficha fique limpa”.

Mesmo que a apelação do governo diante das recentes absolvições esteja pendente - uma questão em aberto, que precisa ser resolvida antes da análise do pedido de Napout - ele não é o único a aproveitar a chance de limpar a ficha.

Nas últimas semanas, José Maria Marin, ex-dirigente de futebol brasileiro que também cumpriu pena de prisão e pagou milhões em multas, e Alfredo Hawit, ex-dirigente de futebol de Honduras que se declarou culpado e cooperou com o governo, fizeram pedidos semelhantes.

Nos processos judiciais, eles repetem alguns dos argumentos apresentados durante a primeira acusação, quando os advogados se opuseram ao que chamaram de uso excessivamente zeloso de uma lei vaga por parte dos procuradores americanos. Na época, alguns sublinharam que, em países como o Brasil, pagar subornos em uma transação comercial privada para garantir um negócio ou contrato não é incomum - nem ilegal.

Enquanto a disputa jurídica continua, partes adversárias no caso seguiram a vida. As organizações de futebol envolvidas têm novos líderes. Em 2019, quatro anos depois de Lynch ter emitido um alerta severo a figuras ainda não indiciadas no caso - “Vocês não vão nos vencer pelo cansaço” - ela passou a integrar o escritório de advocacia americano Paul, Weiss, Rifkind, Wharton & Garrison e se tornou uma defensora da nova Fifa. Pelo menos duas vezes nos últimos anos, ela se referiu diretamente à Fifa, elogiando o “compromisso renovado da organização com a transparência e o comportamento ético”. Lynch não respondeu a um pedido de comentário.

Mas, recentemente, a Fifa está sob novo escrutínio por contornar os processos padrão, como quando efetivamente concedeu à Arábia Saudita os valiosos direitos de sediar a Copa do Mundo de 2034, sem candidaturas nem eleição. O presidente da Fifa, Gianni Infantino, que ascendeu após a saída de Blatter, explorou a extensão dos limites de seu tempo na presidência.

O resultado dos novos recursos, a serem discutidos perante o 2º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, em Nova York, poderá ter implicações não apenas para réus condenados como Napout, mas também para aqueles que foram acusados, mas continuam foragidos, longe do alcance das autoridades americanas. Entre eles se encontram o ex-articulador da Fifa, Jack Warner, de Trinidad e Tobago; os executivos de televisão argentinos Hugo e Mariano Jinkis; e os ex-dirigentes de futebol brasileiros Marco Polo del Nero e Ricardo Teixeira.

Pelo menos 200 milhões de dólares pagos pelos condenados também estão em jogo; uma parte desse valor foi prometida à Fifa, que foi considerada vítima da corrupção em sua própria casa, e destinada a causas como programas de futebol para mulheres, jovens e pessoas com deficiência. A Fifa disse que 50 milhões de dólares já foram alocados para projetos.

Paul Tuchmann, ex-promotor do caso, agora no escritório de advocacia Wiggin and Dana, caracterizou a decisão de absolver dois réus como “um soluço”, mas disse que, independentemente do que o tribunal de apelações decida, “não dá para voltar no tempo e apagar o impacto”.

Ainda assim, acrescentou Tuchmann, desfazer o trabalho do governo teria amplas consequências - dentro e fora do esporte global. “As pessoas com uma certa astúcia vão concluir que o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos não as afeta”, disse ele. “E eu acho que isso é lamentável”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Quase uma década depois de agentes da polícia terem arrastado dirigentes do futebol mundial para fora de um hotel de luxo em Zurique, no meio da madrugada, revelando um escândalo de corrupção que abalou o esporte mais popular do mundo e ficou conhecido como Fifagate, o caso corre o risco de desmoronar. A reviravolta surge devido a questionamentos sobre se os procuradores americanos exageraram ao aplicar a lei dos Estados Unidos a um grupo de pessoas, muitas delas cidadãos estrangeiros, que defraudaram organizações internacionais com esquemas de suborno em todo o mundo.

A Suprema Corte dos Estados Unidos limitou no ano passado uma lei que era fundamental para o caso. Em setembro, uma juíza federal, citando a decisão da Suprema Corte, rejeitou as condenações de dois réus ligados à corrupção no futebol. Agora, vários ex-dirigentes, entre eles alguns que pagaram milhões de dólares em multas e cumpriram pena na prisão, argumentam que os esquemas de suborno pelos quais foram condenados já não são considerados crime nos Estados Unidos.

Encorajados pelas condenações anuladas, eles pedem que seus registros sejam apagados e que seu dinheiro seja devolvido. Suas esperanças estão ligadas aos casos de setembro, nos quais dois réus se beneficiaram de duas decisões recentes da Suprema Corte que rejeitaram a aplicação da lei em vigor nos casos de futebol por parte dos procuradores federais e ofereceram raras orientações sobre o que é conhecido como fraude de serviços honestos. Descobriu-se que os réus se envolveram em subornos que privaram organizações de fora dos Estados Unidos dos serviços honestos de seus funcionários, o que na época constituía fraude. Mas a juíza decidiu que a nova orientação significava que essas ações não eram mais proibidas pela lei americana.

Dirigentes da Fifa foram arrastados de um hotel na Suíça, em 2015 Foto: Pascal Mora/The New York Times

Essa reviravolta no caso, que os procuradores federais de Brooklyn, em Nova York, estão contestando, pode transformar a história da corrupção profundamente enraizada no futebol mundial - detalhada em uma acusação de 236 páginas e provada por meio de 31 confissões de culpa e quatro condenações em julgamento - em uma novela sobre os excessos da justiça americana.

“É bastante significativo”, disse Daniel Richman, ex-procurador federal e professor de direito na Universidade de Columbia, “uma vez que a juíza rejeitou a teoria básica do governo”. Ele caracterizou o parecer como “surpreendente, mas bem fundamentado”.

Os promotores do gabinete do procurador-geral dos Estados Unidos no Distrito Leste de Nova York estão se preparando para reagir. “Este gabinete defenderá vigorosamente as condenações”, disse um porta-voz, John Marzulli, “e não ficará de braços cruzados se os malfeitores tentarem retomar os milhões de dólares de ganhos ilícitos”.

Em um processo apresentado este mês, os procuradores argumentaram que a juíza federal que presidiu aos casos da Fifa, Pamela Chen, havia se equivocado ao interpretar a decisão da Suprema Corte. Os réus estrangeiros, disseram eles, tinham “laços e atividades substanciais nos Estados Unidos” e demonstraram que sabiam que o que estavam fazendo era crime.

O debate jurídico surge em meio à crescente preocupação de que organizações esportivas globais - como a Fifa, o órgão regulador do futebol global, com sede na Suíça - operem em um mundo particular, intocável pelas autoridades. A corrupção sistêmica entre os principais líderes do futebol mundial foi vastamente documentada, mas até o Departamento de Justiça construir seu complexo caso e apresentar acusações, em 2015, nenhum governo tinha se arriscado a enfrentá-la de forma tão ambiciosa, com acusações que abarcavam três continentes.

Uma vez pública, a investigação da Fifa se tornou um dos maiores casos de corrupção transfronteiriça na história americana. Ela exigiu a cooperação de autoridades estrangeiras, que ajudaram a fazer prisões e extraditar réus para os Estados Unidos, revelou décadas de suborno e trouxe acusações de contratos secretos, entrega de dinheiro e intimidação em tribunais, além da confirmação oficial de que milhões de dólares em dinheiro influenciaram os votos para entregar as Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Catar.

O caso foi uma dádiva para advogados de colarinho branco e um alerta para o esporte internacional. E impulsionou a carreira dos procuradores americanos, que foram elogiados por aplicarem de forma criativa a lei sobre fraude em serviços honestos, a qual proíbe as pessoas de enganarem seus empregadores com esquemas de suborno e propinas que canalizam dinheiro para seus próprios bolsos. Muitos viram a estratégia como uma nova forma de combater o suborno internacional.

As acusações levaram a uma renovação na liderança da Fifa - até mesmo à destituição de seu presidente de longa data, Sepp Blatter - e transformaram em celebridades os principais atores do caso. A mídia alemã apelidou Loretta Lynch, procuradora-geral dos Estados Unidos na época de caçadora da Fifa.

Não foi a primeira vez em que o Departamento de Justiça apresentou acusações complicadas sob o ponto de vista internacional. Mas o foco e o alcance descomunal do caso em outras partes do mundo levantaram questões sobre por que os promotores federais do Brooklyn escolheram investir anos de recursos públicos na investigação. Como justificativa, os procuradores apontaram a utilização de bancos americanos pelos réus e, de forma mais ampla, a “afronta aos princípios internacionais” que Lynch disse que os esquemas deles representavam.

José Maria Marin, então presidente da CBF, foi um dos presos no Fifagate Foto: Wilton Junior/Estadão

Agora, enquanto os procuradores americanos se preparam para defender seu trabalho perante uma corte de apelação federal, está em questão a ideia de que a lei dos Estados Unidos poderia ser aplicada onde outros não pudessem ou não quisessem agir. Isto abriu a porta para uma possibilidade alarmante: que dirigentes esportivos e empresários proeminentes que tenham solicitado ou aceitado subornos possam ver suas condenações anuladas e suas fortunas devolvidas.

Em uma entrevista na semana passada, o ex-dirigente de futebol paraguaio Juan Ángel Napout disse que foi condenado para dar exemplo. “Por que eu?”, disse ele. “Eles precisavam de alguém, e esse alguém era eu”.

Napout pagou mais de 4 milhões de dólares ao governo americano, que até agora encaminhou mais de 120 milhões de dólares em dinheiro confiscado à Fifa e prometeu liberar mais dezenas de milhões. De volta a Assunção, desde que foi libertado da cadeia no ano passado, Napout, 65 anos, está pedindo aos Estados Unidos que anulem sua condenação e devolvam seu dinheiro.

Napout ficou encarcerado por mais tempo do que qualquer outra pessoa implicada no caso, e seu estilo de vida até então luxuoso mudou quando ele se tornou cozinheiro de uma prisão na Flórida. Ele disse que não havia pensado em entrar com recurso até ouvir as absolvições de setembro e está procedendo apenas a pedido de sua família, “para que minha ficha fique limpa”.

Mesmo que a apelação do governo diante das recentes absolvições esteja pendente - uma questão em aberto, que precisa ser resolvida antes da análise do pedido de Napout - ele não é o único a aproveitar a chance de limpar a ficha.

Nas últimas semanas, José Maria Marin, ex-dirigente de futebol brasileiro que também cumpriu pena de prisão e pagou milhões em multas, e Alfredo Hawit, ex-dirigente de futebol de Honduras que se declarou culpado e cooperou com o governo, fizeram pedidos semelhantes.

Nos processos judiciais, eles repetem alguns dos argumentos apresentados durante a primeira acusação, quando os advogados se opuseram ao que chamaram de uso excessivamente zeloso de uma lei vaga por parte dos procuradores americanos. Na época, alguns sublinharam que, em países como o Brasil, pagar subornos em uma transação comercial privada para garantir um negócio ou contrato não é incomum - nem ilegal.

Enquanto a disputa jurídica continua, partes adversárias no caso seguiram a vida. As organizações de futebol envolvidas têm novos líderes. Em 2019, quatro anos depois de Lynch ter emitido um alerta severo a figuras ainda não indiciadas no caso - “Vocês não vão nos vencer pelo cansaço” - ela passou a integrar o escritório de advocacia americano Paul, Weiss, Rifkind, Wharton & Garrison e se tornou uma defensora da nova Fifa. Pelo menos duas vezes nos últimos anos, ela se referiu diretamente à Fifa, elogiando o “compromisso renovado da organização com a transparência e o comportamento ético”. Lynch não respondeu a um pedido de comentário.

Mas, recentemente, a Fifa está sob novo escrutínio por contornar os processos padrão, como quando efetivamente concedeu à Arábia Saudita os valiosos direitos de sediar a Copa do Mundo de 2034, sem candidaturas nem eleição. O presidente da Fifa, Gianni Infantino, que ascendeu após a saída de Blatter, explorou a extensão dos limites de seu tempo na presidência.

O resultado dos novos recursos, a serem discutidos perante o 2º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, em Nova York, poderá ter implicações não apenas para réus condenados como Napout, mas também para aqueles que foram acusados, mas continuam foragidos, longe do alcance das autoridades americanas. Entre eles se encontram o ex-articulador da Fifa, Jack Warner, de Trinidad e Tobago; os executivos de televisão argentinos Hugo e Mariano Jinkis; e os ex-dirigentes de futebol brasileiros Marco Polo del Nero e Ricardo Teixeira.

Pelo menos 200 milhões de dólares pagos pelos condenados também estão em jogo; uma parte desse valor foi prometida à Fifa, que foi considerada vítima da corrupção em sua própria casa, e destinada a causas como programas de futebol para mulheres, jovens e pessoas com deficiência. A Fifa disse que 50 milhões de dólares já foram alocados para projetos.

Paul Tuchmann, ex-promotor do caso, agora no escritório de advocacia Wiggin and Dana, caracterizou a decisão de absolver dois réus como “um soluço”, mas disse que, independentemente do que o tribunal de apelações decida, “não dá para voltar no tempo e apagar o impacto”.

Ainda assim, acrescentou Tuchmann, desfazer o trabalho do governo teria amplas consequências - dentro e fora do esporte global. “As pessoas com uma certa astúcia vão concluir que o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos não as afeta”, disse ele. “E eu acho que isso é lamentável”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Quase uma década depois de agentes da polícia terem arrastado dirigentes do futebol mundial para fora de um hotel de luxo em Zurique, no meio da madrugada, revelando um escândalo de corrupção que abalou o esporte mais popular do mundo e ficou conhecido como Fifagate, o caso corre o risco de desmoronar. A reviravolta surge devido a questionamentos sobre se os procuradores americanos exageraram ao aplicar a lei dos Estados Unidos a um grupo de pessoas, muitas delas cidadãos estrangeiros, que defraudaram organizações internacionais com esquemas de suborno em todo o mundo.

A Suprema Corte dos Estados Unidos limitou no ano passado uma lei que era fundamental para o caso. Em setembro, uma juíza federal, citando a decisão da Suprema Corte, rejeitou as condenações de dois réus ligados à corrupção no futebol. Agora, vários ex-dirigentes, entre eles alguns que pagaram milhões de dólares em multas e cumpriram pena na prisão, argumentam que os esquemas de suborno pelos quais foram condenados já não são considerados crime nos Estados Unidos.

Encorajados pelas condenações anuladas, eles pedem que seus registros sejam apagados e que seu dinheiro seja devolvido. Suas esperanças estão ligadas aos casos de setembro, nos quais dois réus se beneficiaram de duas decisões recentes da Suprema Corte que rejeitaram a aplicação da lei em vigor nos casos de futebol por parte dos procuradores federais e ofereceram raras orientações sobre o que é conhecido como fraude de serviços honestos. Descobriu-se que os réus se envolveram em subornos que privaram organizações de fora dos Estados Unidos dos serviços honestos de seus funcionários, o que na época constituía fraude. Mas a juíza decidiu que a nova orientação significava que essas ações não eram mais proibidas pela lei americana.

Dirigentes da Fifa foram arrastados de um hotel na Suíça, em 2015 Foto: Pascal Mora/The New York Times

Essa reviravolta no caso, que os procuradores federais de Brooklyn, em Nova York, estão contestando, pode transformar a história da corrupção profundamente enraizada no futebol mundial - detalhada em uma acusação de 236 páginas e provada por meio de 31 confissões de culpa e quatro condenações em julgamento - em uma novela sobre os excessos da justiça americana.

“É bastante significativo”, disse Daniel Richman, ex-procurador federal e professor de direito na Universidade de Columbia, “uma vez que a juíza rejeitou a teoria básica do governo”. Ele caracterizou o parecer como “surpreendente, mas bem fundamentado”.

Os promotores do gabinete do procurador-geral dos Estados Unidos no Distrito Leste de Nova York estão se preparando para reagir. “Este gabinete defenderá vigorosamente as condenações”, disse um porta-voz, John Marzulli, “e não ficará de braços cruzados se os malfeitores tentarem retomar os milhões de dólares de ganhos ilícitos”.

Em um processo apresentado este mês, os procuradores argumentaram que a juíza federal que presidiu aos casos da Fifa, Pamela Chen, havia se equivocado ao interpretar a decisão da Suprema Corte. Os réus estrangeiros, disseram eles, tinham “laços e atividades substanciais nos Estados Unidos” e demonstraram que sabiam que o que estavam fazendo era crime.

O debate jurídico surge em meio à crescente preocupação de que organizações esportivas globais - como a Fifa, o órgão regulador do futebol global, com sede na Suíça - operem em um mundo particular, intocável pelas autoridades. A corrupção sistêmica entre os principais líderes do futebol mundial foi vastamente documentada, mas até o Departamento de Justiça construir seu complexo caso e apresentar acusações, em 2015, nenhum governo tinha se arriscado a enfrentá-la de forma tão ambiciosa, com acusações que abarcavam três continentes.

Uma vez pública, a investigação da Fifa se tornou um dos maiores casos de corrupção transfronteiriça na história americana. Ela exigiu a cooperação de autoridades estrangeiras, que ajudaram a fazer prisões e extraditar réus para os Estados Unidos, revelou décadas de suborno e trouxe acusações de contratos secretos, entrega de dinheiro e intimidação em tribunais, além da confirmação oficial de que milhões de dólares em dinheiro influenciaram os votos para entregar as Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Catar.

O caso foi uma dádiva para advogados de colarinho branco e um alerta para o esporte internacional. E impulsionou a carreira dos procuradores americanos, que foram elogiados por aplicarem de forma criativa a lei sobre fraude em serviços honestos, a qual proíbe as pessoas de enganarem seus empregadores com esquemas de suborno e propinas que canalizam dinheiro para seus próprios bolsos. Muitos viram a estratégia como uma nova forma de combater o suborno internacional.

As acusações levaram a uma renovação na liderança da Fifa - até mesmo à destituição de seu presidente de longa data, Sepp Blatter - e transformaram em celebridades os principais atores do caso. A mídia alemã apelidou Loretta Lynch, procuradora-geral dos Estados Unidos na época de caçadora da Fifa.

Não foi a primeira vez em que o Departamento de Justiça apresentou acusações complicadas sob o ponto de vista internacional. Mas o foco e o alcance descomunal do caso em outras partes do mundo levantaram questões sobre por que os promotores federais do Brooklyn escolheram investir anos de recursos públicos na investigação. Como justificativa, os procuradores apontaram a utilização de bancos americanos pelos réus e, de forma mais ampla, a “afronta aos princípios internacionais” que Lynch disse que os esquemas deles representavam.

José Maria Marin, então presidente da CBF, foi um dos presos no Fifagate Foto: Wilton Junior/Estadão

Agora, enquanto os procuradores americanos se preparam para defender seu trabalho perante uma corte de apelação federal, está em questão a ideia de que a lei dos Estados Unidos poderia ser aplicada onde outros não pudessem ou não quisessem agir. Isto abriu a porta para uma possibilidade alarmante: que dirigentes esportivos e empresários proeminentes que tenham solicitado ou aceitado subornos possam ver suas condenações anuladas e suas fortunas devolvidas.

Em uma entrevista na semana passada, o ex-dirigente de futebol paraguaio Juan Ángel Napout disse que foi condenado para dar exemplo. “Por que eu?”, disse ele. “Eles precisavam de alguém, e esse alguém era eu”.

Napout pagou mais de 4 milhões de dólares ao governo americano, que até agora encaminhou mais de 120 milhões de dólares em dinheiro confiscado à Fifa e prometeu liberar mais dezenas de milhões. De volta a Assunção, desde que foi libertado da cadeia no ano passado, Napout, 65 anos, está pedindo aos Estados Unidos que anulem sua condenação e devolvam seu dinheiro.

Napout ficou encarcerado por mais tempo do que qualquer outra pessoa implicada no caso, e seu estilo de vida até então luxuoso mudou quando ele se tornou cozinheiro de uma prisão na Flórida. Ele disse que não havia pensado em entrar com recurso até ouvir as absolvições de setembro e está procedendo apenas a pedido de sua família, “para que minha ficha fique limpa”.

Mesmo que a apelação do governo diante das recentes absolvições esteja pendente - uma questão em aberto, que precisa ser resolvida antes da análise do pedido de Napout - ele não é o único a aproveitar a chance de limpar a ficha.

Nas últimas semanas, José Maria Marin, ex-dirigente de futebol brasileiro que também cumpriu pena de prisão e pagou milhões em multas, e Alfredo Hawit, ex-dirigente de futebol de Honduras que se declarou culpado e cooperou com o governo, fizeram pedidos semelhantes.

Nos processos judiciais, eles repetem alguns dos argumentos apresentados durante a primeira acusação, quando os advogados se opuseram ao que chamaram de uso excessivamente zeloso de uma lei vaga por parte dos procuradores americanos. Na época, alguns sublinharam que, em países como o Brasil, pagar subornos em uma transação comercial privada para garantir um negócio ou contrato não é incomum - nem ilegal.

Enquanto a disputa jurídica continua, partes adversárias no caso seguiram a vida. As organizações de futebol envolvidas têm novos líderes. Em 2019, quatro anos depois de Lynch ter emitido um alerta severo a figuras ainda não indiciadas no caso - “Vocês não vão nos vencer pelo cansaço” - ela passou a integrar o escritório de advocacia americano Paul, Weiss, Rifkind, Wharton & Garrison e se tornou uma defensora da nova Fifa. Pelo menos duas vezes nos últimos anos, ela se referiu diretamente à Fifa, elogiando o “compromisso renovado da organização com a transparência e o comportamento ético”. Lynch não respondeu a um pedido de comentário.

Mas, recentemente, a Fifa está sob novo escrutínio por contornar os processos padrão, como quando efetivamente concedeu à Arábia Saudita os valiosos direitos de sediar a Copa do Mundo de 2034, sem candidaturas nem eleição. O presidente da Fifa, Gianni Infantino, que ascendeu após a saída de Blatter, explorou a extensão dos limites de seu tempo na presidência.

O resultado dos novos recursos, a serem discutidos perante o 2º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, em Nova York, poderá ter implicações não apenas para réus condenados como Napout, mas também para aqueles que foram acusados, mas continuam foragidos, longe do alcance das autoridades americanas. Entre eles se encontram o ex-articulador da Fifa, Jack Warner, de Trinidad e Tobago; os executivos de televisão argentinos Hugo e Mariano Jinkis; e os ex-dirigentes de futebol brasileiros Marco Polo del Nero e Ricardo Teixeira.

Pelo menos 200 milhões de dólares pagos pelos condenados também estão em jogo; uma parte desse valor foi prometida à Fifa, que foi considerada vítima da corrupção em sua própria casa, e destinada a causas como programas de futebol para mulheres, jovens e pessoas com deficiência. A Fifa disse que 50 milhões de dólares já foram alocados para projetos.

Paul Tuchmann, ex-promotor do caso, agora no escritório de advocacia Wiggin and Dana, caracterizou a decisão de absolver dois réus como “um soluço”, mas disse que, independentemente do que o tribunal de apelações decida, “não dá para voltar no tempo e apagar o impacto”.

Ainda assim, acrescentou Tuchmann, desfazer o trabalho do governo teria amplas consequências - dentro e fora do esporte global. “As pessoas com uma certa astúcia vão concluir que o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos não as afeta”, disse ele. “E eu acho que isso é lamentável”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Quase uma década depois de agentes da polícia terem arrastado dirigentes do futebol mundial para fora de um hotel de luxo em Zurique, no meio da madrugada, revelando um escândalo de corrupção que abalou o esporte mais popular do mundo e ficou conhecido como Fifagate, o caso corre o risco de desmoronar. A reviravolta surge devido a questionamentos sobre se os procuradores americanos exageraram ao aplicar a lei dos Estados Unidos a um grupo de pessoas, muitas delas cidadãos estrangeiros, que defraudaram organizações internacionais com esquemas de suborno em todo o mundo.

A Suprema Corte dos Estados Unidos limitou no ano passado uma lei que era fundamental para o caso. Em setembro, uma juíza federal, citando a decisão da Suprema Corte, rejeitou as condenações de dois réus ligados à corrupção no futebol. Agora, vários ex-dirigentes, entre eles alguns que pagaram milhões de dólares em multas e cumpriram pena na prisão, argumentam que os esquemas de suborno pelos quais foram condenados já não são considerados crime nos Estados Unidos.

Encorajados pelas condenações anuladas, eles pedem que seus registros sejam apagados e que seu dinheiro seja devolvido. Suas esperanças estão ligadas aos casos de setembro, nos quais dois réus se beneficiaram de duas decisões recentes da Suprema Corte que rejeitaram a aplicação da lei em vigor nos casos de futebol por parte dos procuradores federais e ofereceram raras orientações sobre o que é conhecido como fraude de serviços honestos. Descobriu-se que os réus se envolveram em subornos que privaram organizações de fora dos Estados Unidos dos serviços honestos de seus funcionários, o que na época constituía fraude. Mas a juíza decidiu que a nova orientação significava que essas ações não eram mais proibidas pela lei americana.

Dirigentes da Fifa foram arrastados de um hotel na Suíça, em 2015 Foto: Pascal Mora/The New York Times

Essa reviravolta no caso, que os procuradores federais de Brooklyn, em Nova York, estão contestando, pode transformar a história da corrupção profundamente enraizada no futebol mundial - detalhada em uma acusação de 236 páginas e provada por meio de 31 confissões de culpa e quatro condenações em julgamento - em uma novela sobre os excessos da justiça americana.

“É bastante significativo”, disse Daniel Richman, ex-procurador federal e professor de direito na Universidade de Columbia, “uma vez que a juíza rejeitou a teoria básica do governo”. Ele caracterizou o parecer como “surpreendente, mas bem fundamentado”.

Os promotores do gabinete do procurador-geral dos Estados Unidos no Distrito Leste de Nova York estão se preparando para reagir. “Este gabinete defenderá vigorosamente as condenações”, disse um porta-voz, John Marzulli, “e não ficará de braços cruzados se os malfeitores tentarem retomar os milhões de dólares de ganhos ilícitos”.

Em um processo apresentado este mês, os procuradores argumentaram que a juíza federal que presidiu aos casos da Fifa, Pamela Chen, havia se equivocado ao interpretar a decisão da Suprema Corte. Os réus estrangeiros, disseram eles, tinham “laços e atividades substanciais nos Estados Unidos” e demonstraram que sabiam que o que estavam fazendo era crime.

O debate jurídico surge em meio à crescente preocupação de que organizações esportivas globais - como a Fifa, o órgão regulador do futebol global, com sede na Suíça - operem em um mundo particular, intocável pelas autoridades. A corrupção sistêmica entre os principais líderes do futebol mundial foi vastamente documentada, mas até o Departamento de Justiça construir seu complexo caso e apresentar acusações, em 2015, nenhum governo tinha se arriscado a enfrentá-la de forma tão ambiciosa, com acusações que abarcavam três continentes.

Uma vez pública, a investigação da Fifa se tornou um dos maiores casos de corrupção transfronteiriça na história americana. Ela exigiu a cooperação de autoridades estrangeiras, que ajudaram a fazer prisões e extraditar réus para os Estados Unidos, revelou décadas de suborno e trouxe acusações de contratos secretos, entrega de dinheiro e intimidação em tribunais, além da confirmação oficial de que milhões de dólares em dinheiro influenciaram os votos para entregar as Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Catar.

O caso foi uma dádiva para advogados de colarinho branco e um alerta para o esporte internacional. E impulsionou a carreira dos procuradores americanos, que foram elogiados por aplicarem de forma criativa a lei sobre fraude em serviços honestos, a qual proíbe as pessoas de enganarem seus empregadores com esquemas de suborno e propinas que canalizam dinheiro para seus próprios bolsos. Muitos viram a estratégia como uma nova forma de combater o suborno internacional.

As acusações levaram a uma renovação na liderança da Fifa - até mesmo à destituição de seu presidente de longa data, Sepp Blatter - e transformaram em celebridades os principais atores do caso. A mídia alemã apelidou Loretta Lynch, procuradora-geral dos Estados Unidos na época de caçadora da Fifa.

Não foi a primeira vez em que o Departamento de Justiça apresentou acusações complicadas sob o ponto de vista internacional. Mas o foco e o alcance descomunal do caso em outras partes do mundo levantaram questões sobre por que os promotores federais do Brooklyn escolheram investir anos de recursos públicos na investigação. Como justificativa, os procuradores apontaram a utilização de bancos americanos pelos réus e, de forma mais ampla, a “afronta aos princípios internacionais” que Lynch disse que os esquemas deles representavam.

José Maria Marin, então presidente da CBF, foi um dos presos no Fifagate Foto: Wilton Junior/Estadão

Agora, enquanto os procuradores americanos se preparam para defender seu trabalho perante uma corte de apelação federal, está em questão a ideia de que a lei dos Estados Unidos poderia ser aplicada onde outros não pudessem ou não quisessem agir. Isto abriu a porta para uma possibilidade alarmante: que dirigentes esportivos e empresários proeminentes que tenham solicitado ou aceitado subornos possam ver suas condenações anuladas e suas fortunas devolvidas.

Em uma entrevista na semana passada, o ex-dirigente de futebol paraguaio Juan Ángel Napout disse que foi condenado para dar exemplo. “Por que eu?”, disse ele. “Eles precisavam de alguém, e esse alguém era eu”.

Napout pagou mais de 4 milhões de dólares ao governo americano, que até agora encaminhou mais de 120 milhões de dólares em dinheiro confiscado à Fifa e prometeu liberar mais dezenas de milhões. De volta a Assunção, desde que foi libertado da cadeia no ano passado, Napout, 65 anos, está pedindo aos Estados Unidos que anulem sua condenação e devolvam seu dinheiro.

Napout ficou encarcerado por mais tempo do que qualquer outra pessoa implicada no caso, e seu estilo de vida até então luxuoso mudou quando ele se tornou cozinheiro de uma prisão na Flórida. Ele disse que não havia pensado em entrar com recurso até ouvir as absolvições de setembro e está procedendo apenas a pedido de sua família, “para que minha ficha fique limpa”.

Mesmo que a apelação do governo diante das recentes absolvições esteja pendente - uma questão em aberto, que precisa ser resolvida antes da análise do pedido de Napout - ele não é o único a aproveitar a chance de limpar a ficha.

Nas últimas semanas, José Maria Marin, ex-dirigente de futebol brasileiro que também cumpriu pena de prisão e pagou milhões em multas, e Alfredo Hawit, ex-dirigente de futebol de Honduras que se declarou culpado e cooperou com o governo, fizeram pedidos semelhantes.

Nos processos judiciais, eles repetem alguns dos argumentos apresentados durante a primeira acusação, quando os advogados se opuseram ao que chamaram de uso excessivamente zeloso de uma lei vaga por parte dos procuradores americanos. Na época, alguns sublinharam que, em países como o Brasil, pagar subornos em uma transação comercial privada para garantir um negócio ou contrato não é incomum - nem ilegal.

Enquanto a disputa jurídica continua, partes adversárias no caso seguiram a vida. As organizações de futebol envolvidas têm novos líderes. Em 2019, quatro anos depois de Lynch ter emitido um alerta severo a figuras ainda não indiciadas no caso - “Vocês não vão nos vencer pelo cansaço” - ela passou a integrar o escritório de advocacia americano Paul, Weiss, Rifkind, Wharton & Garrison e se tornou uma defensora da nova Fifa. Pelo menos duas vezes nos últimos anos, ela se referiu diretamente à Fifa, elogiando o “compromisso renovado da organização com a transparência e o comportamento ético”. Lynch não respondeu a um pedido de comentário.

Mas, recentemente, a Fifa está sob novo escrutínio por contornar os processos padrão, como quando efetivamente concedeu à Arábia Saudita os valiosos direitos de sediar a Copa do Mundo de 2034, sem candidaturas nem eleição. O presidente da Fifa, Gianni Infantino, que ascendeu após a saída de Blatter, explorou a extensão dos limites de seu tempo na presidência.

O resultado dos novos recursos, a serem discutidos perante o 2º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, em Nova York, poderá ter implicações não apenas para réus condenados como Napout, mas também para aqueles que foram acusados, mas continuam foragidos, longe do alcance das autoridades americanas. Entre eles se encontram o ex-articulador da Fifa, Jack Warner, de Trinidad e Tobago; os executivos de televisão argentinos Hugo e Mariano Jinkis; e os ex-dirigentes de futebol brasileiros Marco Polo del Nero e Ricardo Teixeira.

Pelo menos 200 milhões de dólares pagos pelos condenados também estão em jogo; uma parte desse valor foi prometida à Fifa, que foi considerada vítima da corrupção em sua própria casa, e destinada a causas como programas de futebol para mulheres, jovens e pessoas com deficiência. A Fifa disse que 50 milhões de dólares já foram alocados para projetos.

Paul Tuchmann, ex-promotor do caso, agora no escritório de advocacia Wiggin and Dana, caracterizou a decisão de absolver dois réus como “um soluço”, mas disse que, independentemente do que o tribunal de apelações decida, “não dá para voltar no tempo e apagar o impacto”.

Ainda assim, acrescentou Tuchmann, desfazer o trabalho do governo teria amplas consequências - dentro e fora do esporte global. “As pessoas com uma certa astúcia vão concluir que o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos não as afeta”, disse ele. “E eu acho que isso é lamentável”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES - Quase uma década depois de agentes da polícia terem arrastado dirigentes do futebol mundial para fora de um hotel de luxo em Zurique, no meio da madrugada, revelando um escândalo de corrupção que abalou o esporte mais popular do mundo e ficou conhecido como Fifagate, o caso corre o risco de desmoronar. A reviravolta surge devido a questionamentos sobre se os procuradores americanos exageraram ao aplicar a lei dos Estados Unidos a um grupo de pessoas, muitas delas cidadãos estrangeiros, que defraudaram organizações internacionais com esquemas de suborno em todo o mundo.

A Suprema Corte dos Estados Unidos limitou no ano passado uma lei que era fundamental para o caso. Em setembro, uma juíza federal, citando a decisão da Suprema Corte, rejeitou as condenações de dois réus ligados à corrupção no futebol. Agora, vários ex-dirigentes, entre eles alguns que pagaram milhões de dólares em multas e cumpriram pena na prisão, argumentam que os esquemas de suborno pelos quais foram condenados já não são considerados crime nos Estados Unidos.

Encorajados pelas condenações anuladas, eles pedem que seus registros sejam apagados e que seu dinheiro seja devolvido. Suas esperanças estão ligadas aos casos de setembro, nos quais dois réus se beneficiaram de duas decisões recentes da Suprema Corte que rejeitaram a aplicação da lei em vigor nos casos de futebol por parte dos procuradores federais e ofereceram raras orientações sobre o que é conhecido como fraude de serviços honestos. Descobriu-se que os réus se envolveram em subornos que privaram organizações de fora dos Estados Unidos dos serviços honestos de seus funcionários, o que na época constituía fraude. Mas a juíza decidiu que a nova orientação significava que essas ações não eram mais proibidas pela lei americana.

Dirigentes da Fifa foram arrastados de um hotel na Suíça, em 2015 Foto: Pascal Mora/The New York Times

Essa reviravolta no caso, que os procuradores federais de Brooklyn, em Nova York, estão contestando, pode transformar a história da corrupção profundamente enraizada no futebol mundial - detalhada em uma acusação de 236 páginas e provada por meio de 31 confissões de culpa e quatro condenações em julgamento - em uma novela sobre os excessos da justiça americana.

“É bastante significativo”, disse Daniel Richman, ex-procurador federal e professor de direito na Universidade de Columbia, “uma vez que a juíza rejeitou a teoria básica do governo”. Ele caracterizou o parecer como “surpreendente, mas bem fundamentado”.

Os promotores do gabinete do procurador-geral dos Estados Unidos no Distrito Leste de Nova York estão se preparando para reagir. “Este gabinete defenderá vigorosamente as condenações”, disse um porta-voz, John Marzulli, “e não ficará de braços cruzados se os malfeitores tentarem retomar os milhões de dólares de ganhos ilícitos”.

Em um processo apresentado este mês, os procuradores argumentaram que a juíza federal que presidiu aos casos da Fifa, Pamela Chen, havia se equivocado ao interpretar a decisão da Suprema Corte. Os réus estrangeiros, disseram eles, tinham “laços e atividades substanciais nos Estados Unidos” e demonstraram que sabiam que o que estavam fazendo era crime.

O debate jurídico surge em meio à crescente preocupação de que organizações esportivas globais - como a Fifa, o órgão regulador do futebol global, com sede na Suíça - operem em um mundo particular, intocável pelas autoridades. A corrupção sistêmica entre os principais líderes do futebol mundial foi vastamente documentada, mas até o Departamento de Justiça construir seu complexo caso e apresentar acusações, em 2015, nenhum governo tinha se arriscado a enfrentá-la de forma tão ambiciosa, com acusações que abarcavam três continentes.

Uma vez pública, a investigação da Fifa se tornou um dos maiores casos de corrupção transfronteiriça na história americana. Ela exigiu a cooperação de autoridades estrangeiras, que ajudaram a fazer prisões e extraditar réus para os Estados Unidos, revelou décadas de suborno e trouxe acusações de contratos secretos, entrega de dinheiro e intimidação em tribunais, além da confirmação oficial de que milhões de dólares em dinheiro influenciaram os votos para entregar as Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Catar.

O caso foi uma dádiva para advogados de colarinho branco e um alerta para o esporte internacional. E impulsionou a carreira dos procuradores americanos, que foram elogiados por aplicarem de forma criativa a lei sobre fraude em serviços honestos, a qual proíbe as pessoas de enganarem seus empregadores com esquemas de suborno e propinas que canalizam dinheiro para seus próprios bolsos. Muitos viram a estratégia como uma nova forma de combater o suborno internacional.

As acusações levaram a uma renovação na liderança da Fifa - até mesmo à destituição de seu presidente de longa data, Sepp Blatter - e transformaram em celebridades os principais atores do caso. A mídia alemã apelidou Loretta Lynch, procuradora-geral dos Estados Unidos na época de caçadora da Fifa.

Não foi a primeira vez em que o Departamento de Justiça apresentou acusações complicadas sob o ponto de vista internacional. Mas o foco e o alcance descomunal do caso em outras partes do mundo levantaram questões sobre por que os promotores federais do Brooklyn escolheram investir anos de recursos públicos na investigação. Como justificativa, os procuradores apontaram a utilização de bancos americanos pelos réus e, de forma mais ampla, a “afronta aos princípios internacionais” que Lynch disse que os esquemas deles representavam.

José Maria Marin, então presidente da CBF, foi um dos presos no Fifagate Foto: Wilton Junior/Estadão

Agora, enquanto os procuradores americanos se preparam para defender seu trabalho perante uma corte de apelação federal, está em questão a ideia de que a lei dos Estados Unidos poderia ser aplicada onde outros não pudessem ou não quisessem agir. Isto abriu a porta para uma possibilidade alarmante: que dirigentes esportivos e empresários proeminentes que tenham solicitado ou aceitado subornos possam ver suas condenações anuladas e suas fortunas devolvidas.

Em uma entrevista na semana passada, o ex-dirigente de futebol paraguaio Juan Ángel Napout disse que foi condenado para dar exemplo. “Por que eu?”, disse ele. “Eles precisavam de alguém, e esse alguém era eu”.

Napout pagou mais de 4 milhões de dólares ao governo americano, que até agora encaminhou mais de 120 milhões de dólares em dinheiro confiscado à Fifa e prometeu liberar mais dezenas de milhões. De volta a Assunção, desde que foi libertado da cadeia no ano passado, Napout, 65 anos, está pedindo aos Estados Unidos que anulem sua condenação e devolvam seu dinheiro.

Napout ficou encarcerado por mais tempo do que qualquer outra pessoa implicada no caso, e seu estilo de vida até então luxuoso mudou quando ele se tornou cozinheiro de uma prisão na Flórida. Ele disse que não havia pensado em entrar com recurso até ouvir as absolvições de setembro e está procedendo apenas a pedido de sua família, “para que minha ficha fique limpa”.

Mesmo que a apelação do governo diante das recentes absolvições esteja pendente - uma questão em aberto, que precisa ser resolvida antes da análise do pedido de Napout - ele não é o único a aproveitar a chance de limpar a ficha.

Nas últimas semanas, José Maria Marin, ex-dirigente de futebol brasileiro que também cumpriu pena de prisão e pagou milhões em multas, e Alfredo Hawit, ex-dirigente de futebol de Honduras que se declarou culpado e cooperou com o governo, fizeram pedidos semelhantes.

Nos processos judiciais, eles repetem alguns dos argumentos apresentados durante a primeira acusação, quando os advogados se opuseram ao que chamaram de uso excessivamente zeloso de uma lei vaga por parte dos procuradores americanos. Na época, alguns sublinharam que, em países como o Brasil, pagar subornos em uma transação comercial privada para garantir um negócio ou contrato não é incomum - nem ilegal.

Enquanto a disputa jurídica continua, partes adversárias no caso seguiram a vida. As organizações de futebol envolvidas têm novos líderes. Em 2019, quatro anos depois de Lynch ter emitido um alerta severo a figuras ainda não indiciadas no caso - “Vocês não vão nos vencer pelo cansaço” - ela passou a integrar o escritório de advocacia americano Paul, Weiss, Rifkind, Wharton & Garrison e se tornou uma defensora da nova Fifa. Pelo menos duas vezes nos últimos anos, ela se referiu diretamente à Fifa, elogiando o “compromisso renovado da organização com a transparência e o comportamento ético”. Lynch não respondeu a um pedido de comentário.

Mas, recentemente, a Fifa está sob novo escrutínio por contornar os processos padrão, como quando efetivamente concedeu à Arábia Saudita os valiosos direitos de sediar a Copa do Mundo de 2034, sem candidaturas nem eleição. O presidente da Fifa, Gianni Infantino, que ascendeu após a saída de Blatter, explorou a extensão dos limites de seu tempo na presidência.

O resultado dos novos recursos, a serem discutidos perante o 2º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, em Nova York, poderá ter implicações não apenas para réus condenados como Napout, mas também para aqueles que foram acusados, mas continuam foragidos, longe do alcance das autoridades americanas. Entre eles se encontram o ex-articulador da Fifa, Jack Warner, de Trinidad e Tobago; os executivos de televisão argentinos Hugo e Mariano Jinkis; e os ex-dirigentes de futebol brasileiros Marco Polo del Nero e Ricardo Teixeira.

Pelo menos 200 milhões de dólares pagos pelos condenados também estão em jogo; uma parte desse valor foi prometida à Fifa, que foi considerada vítima da corrupção em sua própria casa, e destinada a causas como programas de futebol para mulheres, jovens e pessoas com deficiência. A Fifa disse que 50 milhões de dólares já foram alocados para projetos.

Paul Tuchmann, ex-promotor do caso, agora no escritório de advocacia Wiggin and Dana, caracterizou a decisão de absolver dois réus como “um soluço”, mas disse que, independentemente do que o tribunal de apelações decida, “não dá para voltar no tempo e apagar o impacto”.

Ainda assim, acrescentou Tuchmann, desfazer o trabalho do governo teria amplas consequências - dentro e fora do esporte global. “As pessoas com uma certa astúcia vão concluir que o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos não as afeta”, disse ele. “E eu acho que isso é lamentável”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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