Um treinador de 29 anos que tem o atual técnico do Flamengo como mentor, um clube centenário que ressurge para o futebol amparado por uma SAF, e um projeto diferenciado que visa, além de desenvolver o potencial de seus atletas, formar cidadãos. É com esse cartão de visitas que o Comercial Futebol Clube, da cidade de Tietê (localizada a 140 km da capital), se apresenta na Copa São Paulo de Futebol Júnior para dar continuidade ao crescimento conquistado principalmente neste ano. O futebol como ferramenta de inclusão social é uma das principais metas da Sociedade de Gestão de Entidades Esportivas (SGEE S/A), principal acionista da equipe. Com diversos núcleos associados distribuídos para a captação de atletas, e também parcerias estratégicas na África, a gestão tem mais de mil jovens em monitoramento em seus núcleos filiados em território nacional. E a grande oportunidade de ganhar uma maior visibilidade já no início de 2024 está na disputa do principal torneio de base do Brasil.
Representante de uma das sedes da Copinha, o Comercial de Tietê integra o Grupo 15, e terá como adversários o América-MG, o Ivinhema-MS e o Capital-DF. Com dívida zero, dinheiro em caixa, alvarás e certidões regulares, e ainda a obtenção do Certificado de Clube Formador, a expectativa é de progresso ainda maior para fortalecer o projeto.
Com 103 anos de fundação, o Comercial de Tietê foi a aposta de um grupo de empresários e executivos de grandes empresas (entre eles José Ignácio Rivero, ex-vice-presidente econômico do Real Madrid), que reestruturaram a gestão local. Ex-parceiro do clube, César Sampaio hoje atua como uma espécie de embaixador e sempre que pode contribui com palestras para passar sua experiência no futebol. Essa parceria com a SGEE/SA, que detém 97% de participação, já vem rendendo frutos. De 2017 a 2023, 17 atletas foram revelados para grandes equipes. Presidente e acionista, Murilo Miura, de 31 anos, conversou com o Estadão para falar do trabalho.
“Começou como projeto social, mas a ideia ganhou corpo. Este é um ano diferente. Temos a Certificação do Clube Formador, onde fazemos um trabalho na preparação de atletas e também a aprovação da SAF. Conseguimos contribuir implementando modelos de gestão e atraindo novos investimentos e patrocinadores”, afirmou Miura.
Equipes como Red Bull Bragantino, Palmeiras, Atlético-MG e Grêmio abriram os cofres para contratar os meninos que brilharam na base do Comercial. Mas a visibilidade não ficou restrita ao território nacional. Exemplo disso é o atacante senegalês Alioune Badana Mane. Depois de chegar da África, ele se destacou e foi negociado com o Tenerife, da Espanha.
Filiado à Federação Paulista de Futebol, o clube tem um estádio próprio habilitado para jogos da base com capacidade para quatro mil torcedores e disputa as categorias do Sub-15 ao Sub-20. O estreitamento de relações com a FPF trouxe outras benesses. Além de garantir uma sede da Copinha, Miura integrou uma comitiva formada por diretores e presidentes de alguns clubes do Brasil e fez uma viagem à Espanha. Lá conheceu a estrutura de equipes como o Real Madrid, Atlético de Madrid, Valencia e Villarreal e trocou experiências com os dirigentes.
“Tivemos aulas com relação a marketing e toda a estratégia utilizada nos clubes e aprendemos sobre logística relacionada a jogos e eventos. Vimos como são analisados o perfil dos atletas tanto para o time principal como para a base. E tem também a parceria. Estou em contato com todos os diretores de lá, que acompanham nosso trabalho no Tietê, inclusive, com possibilidade de viajar para ver as nossas partidas na Copinha.”
O calendário de atividades dos meninos entre os 15 e 20 anos tem sido intenso. Entre amistosos e torneios que o Comercial participa, o número de partidas pode superar os 70 compromissos, já que o clube disputa o Campeonato Paulista de base.
De olho na visibilidade, o estafe da SGEE/SA faz um trabalho de divulgação com milhares de pessoas por meio das plataformas de marketing. Newsletter são entregues mensalmente para mais de mil pessoas e atingem um público específico formado por executivos de grandes empresas, diretores de clubes, empresários e familiares de atletas. Além disso, as redes sociais recebem constantemente postagem sobre as atividades de treinos, jogos e perfis de atletas e integrantes do departamento de futebol.
CLUBE TURBINA ECONOMIA DA CIDADE E TÉCNICO MIRA TITE COMO EXEMPLO
O ressurgimento do Comercial tem sido interessante não só para os amantes do futebol da cidade, mas também para os comerciantes. Em cima da estrutura criada para cumprir as especificações de clube formador, o estafe da SGEE S/A se apoia nos serviços oferecidos pelo município para atender às suas necessidades. “Damos assistência médica e odontológica e utilizamos as clínicas daqui. As refeições, como café, almoço e jantar são fechados com um restaurante parceiro próximo do clube”, exemplificou Miura.
Até mesmo o lado esportivo está ganhando um aquecimento com essa participação do Comercial na Copa São Paulo de juniores. Camisas do clube agora estão sendo vendidas nas lojas de material esportivo e custam R$ 119,90. A procura tem sido grande.
O responsável por comandar a equipe sub-20 na Copinha tem apenas 29 anos e se mira no atual técnico do Flamengo. “O Tite para mim é o mais preparado. Sou muito fã dele, já li a sua biografia e acompanho de perto o seu trabalho”, disse o técnico Rafael Vinícius, que definiu o seu estilo de jogo. “Estamos aqui para superar desafios e dificuldades. Nada cai do céu. Comprometimento e competitividade são as marcas da equipe”, disse o comandante que orienta garotos de regiões distantes como Maranhão, Rondônia, Fortaleza, Piauí, Rio Grande do Sul, além de meninos do interior do estado de São Paulo e Minas Gerais.
Na entrevista, ele falou um pouco sobre a preparação psicológica de seus atletas para a disputa da Copinha. “O time tem que sentir o frio na barriga. O desafio é ter controle emocional para colocar em prática tudo que treinamos”, disse o discípulo de Tite que admira também José Mourinho e o palmeirense Abel Ferreira.
CLUBE ACOLHE ATLETAS E MUDA RÓTULO DE CONCENTRAÇÃO
Tornar o clube a extensão da sua casa. Mas com ordem e disciplina. Muito do diferencial que o Comercial do Tietê oferece para os adolescentes que trocam a companhia da família pelo sonho de vingar no futebol passa pelo acolhimento recebido no clube.
Neste trabalho, 75 garotos são classificados como atletas de alto rendimento. Desses, 35 moram na “Casa do Atleta”. Ali, além dos dormitórios, os meninos dispõem de academia, salão de jogos, piscina, sala de televisão e refeitório. A parte educacional também é obrigação do clube. Os que estão no fundamental, são matriculados na rede municipal. Já os que cursam o ensino médio estudam em escolas estaduais. Todos ficam sob a responsabilidade da gestora Adriana Guberovich, que aposta na humanização do tratamento e criou até uma metodologia de vocabulário para facilitar essa adaptação.
“Ao invés de alojamento, aqui usamos a Casa do Atleta. A palavra sub passa a ideia de inferioridade, então, falamos equipe -15, equipe-17, equipe-20. Para avaliação física e técnica, o termo que utilizamos é o OTG, que significa “observação técnica global”. Ao invés de erro, adotamos a palavra imprecisão”, disse Adriana ao Estadão.
Até a forma com que é tratada entra nesse caso de “nomenclatura particular”. Chamada de tia pelos meninos, ela destrincha as iniciais para reforçar a sua filosofia de trabalho. “O significado de T.I.A. é transformação, inclusão e aprendizado.”
O que pode parecer um preciosismo é justificado pela gestora como uma forma de amenizar a ansiedade de jovens que, muitas vezes, já chegam ao clube pressionados pela responsabilidade de “mudar a realidade da família”.
“Faço um trabalho de elo entre os meninos e os familiares. A saudade e o sentimento de mudar a vida dos familiares é muito peso para um jovem de 15 anos que decide ser atleta e tem de conviver com pessoas desconhecidas. Então, conversamos sobre seus medos e desejos para conhecê-los melhor”, disse.
Há quatro anos no clube, Adriana também faz as vezes de psicóloga para entender algumas histórias mal resolvidas que os jovens trazem do seio familiar. “Já teve um menino que chegou aqui e a mãe tinha abandonado o lar. Em outro caso, o pai estava preso”, disse. No entanto, apesar de ser adepta ao diálogo, a coordenadora não abre mão da disciplina.
“Aqui eles têm uma liberdade vigiada. A última refeição é às 21h. Depois disso, não podem sair, até porque, a cidade não oferece muita coisa. Bom tratamento é a ideia, mas isso não significa que não vou corrigir. Faço isso sempre com muito respeito.”
Além de uma terminologia específica para tratar os meninos, a Casa do Atleta impõe regras aos seus ocupantes. “Eu lavo a roupa, mas eles estendem. São responsáveis pela ordem nos quartos, arrumam a cama e organizam seu material esportivo. Tudo é feito em conjunto e também compartilhado. Eles aprendem, entre outras atividades coletivas, a fazer pães e bolos, por exemplo. Nas férias, levam esses quitutes para presentear os familiares”, relatou.
A dedicação de Adriana não se limita ao cumprimento de tarefas. Atenta a todo tipo de comportamento, ela detectou, certa vez, um atleta com sintomas de depressão por causa de um problema crônico de contusão. “O menino sofria de canelite (inflamação que recobre a tíbia gerando dor) e veio com esse problema de outro lugar. Sempre se machucava nos treinos. Quando falamos sobre o assunto, ele disse que não era merecedor do perdão de Deus e que já tinha tentado tirar a própria vida. Depois da nossa conversa, nunca mais se machucou”, comentou.
De olho na disputa da Copinha, o Comercial coloca à prova a sua preparação já no dia 4 de janeiro contra o Ivinhema-MS. O segundo compromisso acontece três dias depois, diante do Capital-DF. Já o encerramento da fase de classificação acontece dia 10. O rival é o favorito América-MG. Para Adriana, mais importante do que desempenho e resultado é a transformação que eles sofrem tão jovens. “São todos meninos de muito valor e que, com respeito ao próximo, aprendem a viver num ambiente tão competitivo”, disse.