Território fértil para o racismo nas arquibancadas, como ficou escancarado frente aos inúmeros ataques sofridos por Vinícius Júnior nesta e na outra temporada, a Espanha tem muitos jogadores negros atuando em seus times da LaLiga. Mais de seis décadas atrás, contudo, era raro não ver uma equipe espanhola 100% formada por brancos. O Real Madrid, equipe na qual Vini é o grande astro ao mesmo tempo em que é alvo de torcedores rivais racistas, só foi ter um negro em seu elenco em 1959. E era um brasileiro. Não qualquer brasileiro, mas o meia Didi, o “Mr. Football”, “Príncipe Etíope” ou “Folha-Seca”, apelidos que ganhou ao longo de sua vitoriosa carreira, marcada pela idolatria no Botafogo e dois títulos da Copa do Mundo com a seleção, em 1958 e 1962. Pelé, o melhor de todos, dizia que antes dele, Didi era o cara.
O meio-campista não teve o protagonismo que se esperava no futebol espanhol e ficou lá por pouco tempo. Até hoje não se sabe ao certo o que deu errado com Didi no Real Madrid. Ele e sua mulher, Dona Guiomar, contavam sobre um boicote promovido por Di Stéfano, grande ídolo do clube espanhol naquela mesma época, enquanto outras versões afirmam que houve dificuldade de adaptação ao clima europeu de Madri e ao estilo de jogo do time. A hipótese do racismo, então imperante na Europa, também costuma ser levantada, embora o brasileiro nunca tenha se colocado como vítima do preconceito.
Didi foi eleito melhor jogador da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, onde foi o líder técnico de um grupo do qual fazia parte um garoto chamado Pelé, de 17 anos. Na ocasião, Didi impressionou o mundo com o chute “folha-seca”, assim batizado em razão da trajetória inesperada que provocava na bola, igual uma folha caindo da árvore. Ao fim do Mundial, com o Brasil campeão, ele foi chamado de “Mr. Football” (Senhor Futebol na tradução) pelo jornalista francês Gabriel Hanot, um dos principais nomes da crônica esportiva na época.
A elegância e a técnica apresentadas nos gramados suecos fizeram Didi ficar apenas mais um ano no Botafogo depois de voltar ao clube como campeão mundial. Ele acabou vendido ao Real Madrid em agosto de 1959, por US$ 80 mil. Chegou à capital espanhola, aos 30 anos, como grande aposta do então presidente merengue Santiago Bernabéu, que dá nome ao estádio do clube, para jogar ao lado de estrelas como o húngaro Puskas e o argentino naturalizado espanhol Di Stéfano.
Bernabéu tinha a mesma sanha do atual presidente Florentino Pérez por montar times galácticos. Contratado para ampliar a galeria de atrações, Didi foi acompanhado por uma multidão de torcedores em seu primeiro treino. “Ele causa um frenesi, é bem recebido no aeroporto por torcida e imprensa. Chegou ‘a maravilha negra’, ‘o Diamante Negro’. Foi exaltado pela crônica”, conta Péris Ribeiro, autor da biografia ‘Didi: o gênio da folha-seca’ e amigo do jogador ao Estadão.
A RELAÇÃO COM DI STÉFANO
Ao jogar o Troféu Ramón de Carranza, tradicional torneio de pré-temporada disputado até hoje, o brasileiro animou a torcida e foi eleito o melhor da disputa após boas atuações na vitória por 6 a 3 sobre o Milan, na semifinal, e no triunfo por 4 a 3 diante do rival Barcelona, na final. Depois disso, foi inconstante e não se firmou mais, até voltar ao Botafogo em outubro de 1960. Didi deixou o Real Madrid com 19 jogos oficiais e seis gols. Mas no Rio, ele reencontra o bom futebol. Há imprecisões sobre o que ocorreu entre a chegada a Madri e o retorno ao Brasil, mas Didi relata ter sido boicotado por Di Stéfano, que viu seu posto de maior estrela do clube sob ameaça com sua chegada. “A partir do momento em que Didi ganha o prêmio de melhor jogador do Carranza, começa a provocar a ira de Di Stéfano e ele não admite a concorrência. Começa uma espécie de boicote ao brasileiro. Aí vem a história de que o Didi não consegue engrenar com aquele futebol cadenciado, de toque de bola”, diz Péris Ribeiro. “Em muitas conversas que tive com o Didi, ele dizia: ‘No lugar dele, teria uma atitude parecida, mas não a atitude que ele teve’. Parte da imprensa espanhola recebia favores do Stéfano, ele tinha boa parte dos jornalistas nas mãos.”
Santiago Bernabéu era fã de Didi e costumava convidá-lo para almoçar, mas nunca interveio nessa questão. Dentro do elenco merengue, também não havia muita oposição ao argentino. Em entrevista ao jornalista Juca Kfouri, em 2008, Di Stéfano negou o boicote e disse que o problema do brasileiro foi a adaptação ao clima. “Didi foi tratado muito bem. Vou te contar uma coisa: Didi veio a Madri num inverno do c… e não comprou um único casaco. Ponto. Não me pergunte mais”, afirmou na ocasião.
O biógrafo Péris Ribeiro, contudo, contesta a possibilidade de que o frio tenha atrapalhado um dos melhores jogadores do Brasil a se dar bem na Espanha, pois Didi estava habituado a viagens internacionais com o Flu e seleção. “Ele já era acostumado com as excursões pela Europa com o Fluminense desde 1954, já conhecia o clima europeu. Excursão de time brasileiro levava meses. Ele já tinha Copa nas costas, não teve essa coisa de frio”.
Em sua biografia, ‘Gracias, Veja’, lançada em 2000, Di Stéfano, que morreu em 2014, é mais brando ao comentar sobre Didi. “Nunca vi ninguém chutar uma bola como Didi. Tentei fazer igual, mas não consegui. Quase caí sentado. Foi um dos maiores jogadores da história. Não deu certo no Real Madrid porque gostava de jogar cadenciado. Aqui, é preciso correr muito. Sempre!”
PRIMEIRO NEGRO DO REAL MADRID
Primeiro negro do Real Madrid e um dos poucos do futebol espanhol naquela época, fim da década de 1950, Didi nunca tocou na questão racial em seus tempos de Europa. Quando chegou, o fato de ser negro foi tratado publicamente como uma curiosidade. “Eu já pensei: ‘será que o mestre não foi sacaneado também por ser negro?’ Pelo que eu conheço da história do Santiago Bernabéu, ele agregou isso em peso favorável à imagem do clube: ter um negro no time, o maior jogador do mundo, craque da Copa e nós vamos aumentar a nossa exposição’”, defende Péris Ribeiro.
Para o antropólogo José Paulo Florenzano, professor da PUC-SP e membro do Conselho Consultivo do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB) do Museu do Futebol, é muito difícil que um jogador negro que pisou em gramados europeus naquela época não tenha sofrido alguma forma de racismo. Ofensas racistas eram normalizadas nos maiores centros de futebol da Europa. Vale lembrar que o continente tinha acabado de sair de uma guerra, a Segunda Guerra Mundial (1939/1945), em que o alemão Adolf Hitler espalhava bombas, mortes, perseguição e o discurso ariano de uma “raça limpa e pura”.
“Todos os atletas negros, desde o momento que eles começaram a atuar na Europa, passaram por esta experiência, uns mais, outros menos. Há a especificidade de cada contexto histórico, obviamente pesa também o fato de que isto era considerado natural, até o momento que os próprios negros começaram a reagir mostrando que isso era fruto de uma relação de poder imposta pela supremacia branca. Começa a mudar a partir da articulação de manifestações no esporte com os movimentos na sociedade civil, descolonização na África, movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos”, explica o antropólogo.
Companheiro de Didi na seleção e no Botafogo, o atacante Amarildo, por exemplo, era frequentemente ofendido quando defendia Milan e Fiorentina, na Itália, mas entendia aquilo como parte do jogo. “Minhas pernas são cartas geográficas. Me encheram de pancadas e insultos. Me diziam ‘sporco negro’ (negro sujo) e tudo bem, porque o futebol também é feito de palavrões”, disse em 1999, à Gazetta Dello Sport.
Didi faz parte do combate ao racismo por ter sido o rosto da Copa de 1958, e o Brasil não estava tão distante da Europa em termos de preconceito. Jornalistas da época relatam que, pouco antes da convocação para o Mundial, um dossiê sigiloso chegou às mãos de João Havelange, presidente da CBD, antigo nome da CBF. Tal relatório defendia que jogadores negros não fossem convocados sob o argumento de que eram incapazes de agir em momentos decisivos e de atuar fora do Brasil, longe da família, do sol e da comida local.
“A projeção de um time hegemônico no futebol com negros, que é o caso da seleção brasileira, ajudou no processo de mudança. E aí você pode dizer que o papel do Didi e do Pelé dentro desse time foi importante nessa luta contra a naturalização do racismo no esporte, sim”, diz Florenzano.
O SONHO NUNCA ALCANÇADO DE TREINAR A SELEÇÃO
Mesmo com o status de lenda e o bi mundial no currículo, Didi não teve o prestígio que gostaria em sua relação com a CBF. Após se aposentar, virou treinador e teve trabalhos marcantes em times como Fluminense e River Plate e no futebol peruano, onde treinou a seleção nacional e o Sporting Cristal. Seu grande sonho, contudo, era treinar a seleção brasileira. Em 1984, foi cotado para substituir Carlos Alberto Parreira, mas acabou frustrado.
“Atletas com um histórico muito inferior ao dele foram técnicos da seleção. Não resta a menor dúvida de que o Didi não foi técnico do Brasil por causa do racismo. Era um cargo que não estava acessível ao negro ontem, como não está hoje ainda. Isso precisa ser dito com toda a clareza possível. Ele apresentou a candidatura, se preparou para ser técnico da seleção e nunca lhe foi dada essa oportunidade”, afirma Florenzano.
Mais de meio século depois, com toda a evolução do mundo após guerras e tragédias, Vino Jr. teve de conviver com o mesmo racismo no futebol da Espanha por duas temporadas. Ele foi convidado nesta semana a ser o rosto da campanha da Fifa contra o preconceito. “Você tem técnicos negros passando por grandes clubes. Então, por que você não tem afirmação do técnico negro no futebol brasileiro? Aí que aparece a maneira como opera o racismo no futebol. É como se o negro fosse canalizado para desempenhar determinadas funções. Eu consegui mapear quatro que me parecem evidentes. Ele é o técnico para as categorias de base, para equipes pequenas ou para promover da Série B. Ele é bem recebido em escolinhas, ex-grandes atletas negros acabaram aí, ou então ele é o eterno técnico interino do grande clube. Ele é canalizado para desempenhar esses papéis, mas não o papel principal do clube e da seleção”, diz.
Didi entendia a presença do racismo na sociedade brasileira, mas se considerava poupado do preconceito em razão da sua posição como figura pública do futebol. “O Brasil é um país onde existe racismo, velado, mas que não atinge personalidades populares. Eu e Pelé, por exemplo, estamos livres de discriminações. Se a CBF me convidar para técnico, sei que seria o primeiro treinador negro da seleção. Isto não me intimida”, disse em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em 1984, ao comentar sobre o sonho de treinar o Brasil.
O “Mr. Football” continuou trabalhando como treinador até 1990 e morreu em 12 de junho de 2001, vítima de um câncer no fígado, aos 72 anos. Em seu velório, realizado no salão nobre do Botafogo, os únicos companheiros de seleção que marcaram presença foram Vavá, de cadeira de rodas após um derrame, e Orlando Peçanha. Outras personalidades do futebol, contudo, estiveram presentes. Caso de Afonsinho, ex-meio-campista conhecido pelo forte posicionamento político, que disse: “Neste momento em que o Brasil está sem rumo, perdemos o mais lúcido dos brasileiros.”