‘Você acha mesmo que vai morrer’, diz treinador brasileiro ao contar como fugiu do conflito no Sudão


Foram mais de 30 horas dentro do ônibus do time, o Al-Merrikn, sem banho e comendo sardinha e atum em lata; Heron Ferreira enviou vídeos de sua travessia com mais oito companheiros para o Egito

Por Robson Morelli
Atualização:

A República do Sudão é um país africano que faz fronteira ao norte com o Egito e a leste com o Mar Vermelho, por onde se chega à Arábia Saudita. A Líbia também está ali por perto, assim como Chade e Etiópia. A capital Cartum fica no meio do país. Quem olha no mapa diz que fica um pouquinho mais para o sul, de modo a tornar o Egito uma fronteira mais distante. Mesmo assim, foi nessa direção que o ônibus do Al-Merrikh acelerou para fugir do conflito armado do Sudão.

No veículo do clube estavam oito brasileiros do time liderados pelo técnico Heron Ferreira, e ele próprio sentado no primeiro banco. Heron é conhecido por lá como ‘coach Ricardo’, seu nome do meio. Foi de ônibus que ele atravessou o país para se salvar e também salvar as vidas de seus atletas, comissão técnica e mais algumas pessoas que ele foi pegando pelo caminho. De carona, ainda levou uma colaboradora da Embaixada do Brasil no Sudão. O ônibus foi a melhor solução para fugir das bombas e dos rasantes dos aviões que sobrevoavam o prédio onde todos eles estavam em Cartum para escapar dos ataques. O clima na cidade era tenso. Heron temeu por sua vida.

A violência no país do nordeste africano, de cerca de 45 milhões de pessoas, eclodiu em 15 de abril entre o exército do general Abdel Fatah al-Burhan, governante, de fato, do Sudão desde o golpe de 2021, e seu rival, o também general Mohamed Hamdane Dagalo, líder das Forças de Apoio Rápido (FAR), os rebeldes. Até agora, mais de 500 pessoas morreram e cerca de 4.500 ficaram feridas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) no fim do mês.

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Os confrontos acontecem essencialmente em Cartum e na região de Darfur, no oeste do país. O governo enfatizou que o número de mortos pode ser maior devido à incapacidade das equipes médicas para acessar regiões mais violentas e porque a maior parte dos hospitais dos Estados, onde os combates ocorrem, está fora de serviço.

Heron Ferreira viu tudo isso de perto, praticamente da janela de seu apartamento em um edifício internacional onde havia gente da ONU e membros de outros consulados no Sudão. “Era proibido sair de casa, com risco de morrer. Havia uma Lei Marcial em vigência. Quando percebi que a coisa estava feia, fui a uma vendinha perto do prédio com a ideia de estocar alimentos. Comprei uns 20 frangos, água, Nuggets. Os aviões bombardearam lugares a 100 metros de onde estávamos”, contou o treinador ao Estadão. A reportagem chegou a ligar para ele quando o ônibus passava por uma revista de soldados do governo.

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O técnico Heron Ferreira conseguiu escapar do conflito no Sudão ao lado de companheiros do time que treina no país. Foto: Arquivo Pessoal/ Heron Ferreira

Heron foi, no fim da década de 80, auxiliar de Vanderlei Luxemburgo no Palmeiras. No começo dos anos 2000, ele se aventurou pelo futebol do Sudão. Não sabia nada sobre aquele país. Foi para o Al-Hilal, da cidade de Omdurman. Conseguiu ser campeão nas temporadas de 2005, 2006 e 2007. E levou o time longe na Champions da África. O Sudão era uma nação coadjuvante no futebol africano, sem participação em Copas do Mundo. Não havia profissionalismo nos clubes. Tudo era feito de forma amadora.

“Mas o terceiro lugar do meu time na Champions me fez um ‘rei’ no Sudão. O país parou. O presidente falou do feito, todos comentaram sobre o nosso sucesso. Foi uma conquista gigantesca”, lembra o treinador. A partir dessa experiência, comparado às dificuldades do futebol brasileiro, ele direcionou sua carreira para essa parte do planeta. Esteve no Egito, Catar e Líbia.

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Mas foi em sua volta ao Sudão que Heron viveu os momentos mais tensos de sua vida, nada comparado às suas experiências, inclusive na Líbia, onde também se viu em meio a um conflito revolucionário, que contaremos mais adiante na reportagem. Quando Cartum começou a ser bombardeada pelas forças rebeldes (que se vestem de bege) em abril, Heron achou que aquilo duraria alguns dias apenas.

“Mas o tempo foi passando, todas as atividades do time foram interrompidas e fomos ficando mais tensos e nervosos. Tratei de controlar a todos, pedindo tranquilidade. Eu também estava preocupado, mas não podia deixar isso transparecer”, conta. Ele reunia os brasileiros todos os dias e passou a ser o ‘cozinheiro’ do grupo. Suas famílias estavam no Brasil.

O último time brasileiro que Heron Ferreira comandou foi o Bonsucesso, em 2018. Foto: Arquivo pessoal/ Heron Ferreira
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O desespero bateu mesmo quando a Embaixada do Brasil informou que não havia planos imediatos para tirar os brasileiros do Sudão. Uma assistente da embaixada de nome Ana estava na mesma situação. O treinador disse que ela pegou carona no ônibus do clube para deixar o país com os jogadores. Começava ali a viagem mais longa da vida de Heron, sem saber, inclusive, se daria certo. Em nota, o Itamaraty divulgou que o governo estava “empreendendo esforços para retirar todos os brasileiros em território sudanês tão logo quanto possível”. A ONU estava ajudando nessa saída da capital.

Antes de seguirem por terra, também fizeram contato com o deputado federal Romário e a senadora Damares Alves. Mas também não conseguiram nada prático. A CBF e a Fifa foram notificadas do que ocorria no Sudão.

O grupo de brasileiros, com a ajuda do clube, decidiu então tomar o ônibus do time para atravessar o país e chegar ao Egito. Foram para o norte. Era a rota mais segura, mais longe, mas a mais segura. Eles saíram de Cartum. “Todos estavam saindo da capital. E decidimos ir embora também”, disse o treinador.

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Lotação

O ônibus estava vazio no começo. Tinha as cores do time. E isso poderia ajudar na travessia. Levaram seis horas para percorrer 20 km, de Cartum para Omdurman. Foram parados em todas as barreiras. “Todos tinham de descer. Apontavam armas para a gente. Eram os soldados do Sudão que buscavam rebeldes. Como sabíamos? Eles estavam de roupa camuflada”. Em todos os postos de parada, pediam documentação. “Depois de uma certa distância, os soldados foram colocando mais gente dentro do nosso ônibus. Subiram umas 20 pessoas, entre mulheres, homens e crianças. Eles faziam um apelo para tirar as pessoas da região. Não havia o que fazer”.

Em algumas paradas, havia café. Foram os soldados que deram a rota com menos perigo até o Egito. Foram mais de 31 horas dentro do ônibus, sem banho e sem saber ao certo o que o grupo encontraria pela frente. “Levamos dinheiro, mas isso não valia para nada. Tínhamos uma mala ou duas. Deixamos muitas coisas para trás em Cartum. Para comer, tínhamos latas de atum e sardinha, dessas de supermercado. E água. A cada barreira, ficávamos parados de 7h a 10h, esperando pela liberação. Não havia o que fazer. Os nossos passaportes sumiram em uma dessas revistas. Cara, é uma sensação horrível. Você acha mesmo que vai morrer”, disse Heron. Em alguns momentos, houve até brincadeiras e fotos para descontrair. Mas todos, diz, estavam preocupados.

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O ônibus chegou ao Cairo depois de mais de 30 horas de travessia. Mesmo no Egito, eles tiveram problemas. A placa do veículo era do Sudão e a condução não podia entrar no país fronteiriço. Precisavam de autorização. Não tinham. Outro ônibus foi arrumado com a ajuda dos que recebiam as pessoas que deixavam o Sudão por esse caminho.

Primavera Árabe

É a segunda vez que Heron Ferreira foge de um país em guerra. Na primeira delas , estava na Líbia, em Trípoli, quando a Primavera Árabe estourou nas ruas da cidade para derrubar o governo de Muamar Kadhafi. Era 2011. Rebeldes pegaram em armas para combater as tropas leais ao governo. O treinador estava lá. Era técnico do Al Ahly Tripoli. Ele não deixou o país na primeira oportunidade e depois ficou sabendo que haviam bombardeado o aeroporto. Não foi para não deixar um amigo para trás. Esperou 15 dias para sair da Líbia de navio em direção a Malta.

Heron está no Rio agora. Quando conversou novamente com o Estadão, havia acabado de dar uma volta de bicicleta na orla. Todos os brasileiros do time e alguns de outras equipes deixaram o Sudão pelo Egito e depois em voos diferentes. Ainda não se encontraram. O técnico já informou para a Fifa de tudo o que aconteceu e de como deixou o Sudão para não caracterizar abandono de emprego. Seu objetivo agora é confirmar sua licença-pro de treinador, num curso que termina em junho no Rio, e assim ter todos os documentos de que precisa para continuar sua carreira em qualquer canto do planeta. Heron já trabalhou também no Catar e na Arábia Saudita. Deve ir para o Egito em breve.

A República do Sudão é um país africano que faz fronteira ao norte com o Egito e a leste com o Mar Vermelho, por onde se chega à Arábia Saudita. A Líbia também está ali por perto, assim como Chade e Etiópia. A capital Cartum fica no meio do país. Quem olha no mapa diz que fica um pouquinho mais para o sul, de modo a tornar o Egito uma fronteira mais distante. Mesmo assim, foi nessa direção que o ônibus do Al-Merrikh acelerou para fugir do conflito armado do Sudão.

No veículo do clube estavam oito brasileiros do time liderados pelo técnico Heron Ferreira, e ele próprio sentado no primeiro banco. Heron é conhecido por lá como ‘coach Ricardo’, seu nome do meio. Foi de ônibus que ele atravessou o país para se salvar e também salvar as vidas de seus atletas, comissão técnica e mais algumas pessoas que ele foi pegando pelo caminho. De carona, ainda levou uma colaboradora da Embaixada do Brasil no Sudão. O ônibus foi a melhor solução para fugir das bombas e dos rasantes dos aviões que sobrevoavam o prédio onde todos eles estavam em Cartum para escapar dos ataques. O clima na cidade era tenso. Heron temeu por sua vida.

A violência no país do nordeste africano, de cerca de 45 milhões de pessoas, eclodiu em 15 de abril entre o exército do general Abdel Fatah al-Burhan, governante, de fato, do Sudão desde o golpe de 2021, e seu rival, o também general Mohamed Hamdane Dagalo, líder das Forças de Apoio Rápido (FAR), os rebeldes. Até agora, mais de 500 pessoas morreram e cerca de 4.500 ficaram feridas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) no fim do mês.

Os confrontos acontecem essencialmente em Cartum e na região de Darfur, no oeste do país. O governo enfatizou que o número de mortos pode ser maior devido à incapacidade das equipes médicas para acessar regiões mais violentas e porque a maior parte dos hospitais dos Estados, onde os combates ocorrem, está fora de serviço.

Heron Ferreira viu tudo isso de perto, praticamente da janela de seu apartamento em um edifício internacional onde havia gente da ONU e membros de outros consulados no Sudão. “Era proibido sair de casa, com risco de morrer. Havia uma Lei Marcial em vigência. Quando percebi que a coisa estava feia, fui a uma vendinha perto do prédio com a ideia de estocar alimentos. Comprei uns 20 frangos, água, Nuggets. Os aviões bombardearam lugares a 100 metros de onde estávamos”, contou o treinador ao Estadão. A reportagem chegou a ligar para ele quando o ônibus passava por uma revista de soldados do governo.

O técnico Heron Ferreira conseguiu escapar do conflito no Sudão ao lado de companheiros do time que treina no país. Foto: Arquivo Pessoal/ Heron Ferreira

Heron foi, no fim da década de 80, auxiliar de Vanderlei Luxemburgo no Palmeiras. No começo dos anos 2000, ele se aventurou pelo futebol do Sudão. Não sabia nada sobre aquele país. Foi para o Al-Hilal, da cidade de Omdurman. Conseguiu ser campeão nas temporadas de 2005, 2006 e 2007. E levou o time longe na Champions da África. O Sudão era uma nação coadjuvante no futebol africano, sem participação em Copas do Mundo. Não havia profissionalismo nos clubes. Tudo era feito de forma amadora.

“Mas o terceiro lugar do meu time na Champions me fez um ‘rei’ no Sudão. O país parou. O presidente falou do feito, todos comentaram sobre o nosso sucesso. Foi uma conquista gigantesca”, lembra o treinador. A partir dessa experiência, comparado às dificuldades do futebol brasileiro, ele direcionou sua carreira para essa parte do planeta. Esteve no Egito, Catar e Líbia.

Mas foi em sua volta ao Sudão que Heron viveu os momentos mais tensos de sua vida, nada comparado às suas experiências, inclusive na Líbia, onde também se viu em meio a um conflito revolucionário, que contaremos mais adiante na reportagem. Quando Cartum começou a ser bombardeada pelas forças rebeldes (que se vestem de bege) em abril, Heron achou que aquilo duraria alguns dias apenas.

“Mas o tempo foi passando, todas as atividades do time foram interrompidas e fomos ficando mais tensos e nervosos. Tratei de controlar a todos, pedindo tranquilidade. Eu também estava preocupado, mas não podia deixar isso transparecer”, conta. Ele reunia os brasileiros todos os dias e passou a ser o ‘cozinheiro’ do grupo. Suas famílias estavam no Brasil.

O último time brasileiro que Heron Ferreira comandou foi o Bonsucesso, em 2018. Foto: Arquivo pessoal/ Heron Ferreira

O desespero bateu mesmo quando a Embaixada do Brasil informou que não havia planos imediatos para tirar os brasileiros do Sudão. Uma assistente da embaixada de nome Ana estava na mesma situação. O treinador disse que ela pegou carona no ônibus do clube para deixar o país com os jogadores. Começava ali a viagem mais longa da vida de Heron, sem saber, inclusive, se daria certo. Em nota, o Itamaraty divulgou que o governo estava “empreendendo esforços para retirar todos os brasileiros em território sudanês tão logo quanto possível”. A ONU estava ajudando nessa saída da capital.

Antes de seguirem por terra, também fizeram contato com o deputado federal Romário e a senadora Damares Alves. Mas também não conseguiram nada prático. A CBF e a Fifa foram notificadas do que ocorria no Sudão.

O grupo de brasileiros, com a ajuda do clube, decidiu então tomar o ônibus do time para atravessar o país e chegar ao Egito. Foram para o norte. Era a rota mais segura, mais longe, mas a mais segura. Eles saíram de Cartum. “Todos estavam saindo da capital. E decidimos ir embora também”, disse o treinador.

Lotação

O ônibus estava vazio no começo. Tinha as cores do time. E isso poderia ajudar na travessia. Levaram seis horas para percorrer 20 km, de Cartum para Omdurman. Foram parados em todas as barreiras. “Todos tinham de descer. Apontavam armas para a gente. Eram os soldados do Sudão que buscavam rebeldes. Como sabíamos? Eles estavam de roupa camuflada”. Em todos os postos de parada, pediam documentação. “Depois de uma certa distância, os soldados foram colocando mais gente dentro do nosso ônibus. Subiram umas 20 pessoas, entre mulheres, homens e crianças. Eles faziam um apelo para tirar as pessoas da região. Não havia o que fazer”.

Em algumas paradas, havia café. Foram os soldados que deram a rota com menos perigo até o Egito. Foram mais de 31 horas dentro do ônibus, sem banho e sem saber ao certo o que o grupo encontraria pela frente. “Levamos dinheiro, mas isso não valia para nada. Tínhamos uma mala ou duas. Deixamos muitas coisas para trás em Cartum. Para comer, tínhamos latas de atum e sardinha, dessas de supermercado. E água. A cada barreira, ficávamos parados de 7h a 10h, esperando pela liberação. Não havia o que fazer. Os nossos passaportes sumiram em uma dessas revistas. Cara, é uma sensação horrível. Você acha mesmo que vai morrer”, disse Heron. Em alguns momentos, houve até brincadeiras e fotos para descontrair. Mas todos, diz, estavam preocupados.

O ônibus chegou ao Cairo depois de mais de 30 horas de travessia. Mesmo no Egito, eles tiveram problemas. A placa do veículo era do Sudão e a condução não podia entrar no país fronteiriço. Precisavam de autorização. Não tinham. Outro ônibus foi arrumado com a ajuda dos que recebiam as pessoas que deixavam o Sudão por esse caminho.

Primavera Árabe

É a segunda vez que Heron Ferreira foge de um país em guerra. Na primeira delas , estava na Líbia, em Trípoli, quando a Primavera Árabe estourou nas ruas da cidade para derrubar o governo de Muamar Kadhafi. Era 2011. Rebeldes pegaram em armas para combater as tropas leais ao governo. O treinador estava lá. Era técnico do Al Ahly Tripoli. Ele não deixou o país na primeira oportunidade e depois ficou sabendo que haviam bombardeado o aeroporto. Não foi para não deixar um amigo para trás. Esperou 15 dias para sair da Líbia de navio em direção a Malta.

Heron está no Rio agora. Quando conversou novamente com o Estadão, havia acabado de dar uma volta de bicicleta na orla. Todos os brasileiros do time e alguns de outras equipes deixaram o Sudão pelo Egito e depois em voos diferentes. Ainda não se encontraram. O técnico já informou para a Fifa de tudo o que aconteceu e de como deixou o Sudão para não caracterizar abandono de emprego. Seu objetivo agora é confirmar sua licença-pro de treinador, num curso que termina em junho no Rio, e assim ter todos os documentos de que precisa para continuar sua carreira em qualquer canto do planeta. Heron já trabalhou também no Catar e na Arábia Saudita. Deve ir para o Egito em breve.

A República do Sudão é um país africano que faz fronteira ao norte com o Egito e a leste com o Mar Vermelho, por onde se chega à Arábia Saudita. A Líbia também está ali por perto, assim como Chade e Etiópia. A capital Cartum fica no meio do país. Quem olha no mapa diz que fica um pouquinho mais para o sul, de modo a tornar o Egito uma fronteira mais distante. Mesmo assim, foi nessa direção que o ônibus do Al-Merrikh acelerou para fugir do conflito armado do Sudão.

No veículo do clube estavam oito brasileiros do time liderados pelo técnico Heron Ferreira, e ele próprio sentado no primeiro banco. Heron é conhecido por lá como ‘coach Ricardo’, seu nome do meio. Foi de ônibus que ele atravessou o país para se salvar e também salvar as vidas de seus atletas, comissão técnica e mais algumas pessoas que ele foi pegando pelo caminho. De carona, ainda levou uma colaboradora da Embaixada do Brasil no Sudão. O ônibus foi a melhor solução para fugir das bombas e dos rasantes dos aviões que sobrevoavam o prédio onde todos eles estavam em Cartum para escapar dos ataques. O clima na cidade era tenso. Heron temeu por sua vida.

A violência no país do nordeste africano, de cerca de 45 milhões de pessoas, eclodiu em 15 de abril entre o exército do general Abdel Fatah al-Burhan, governante, de fato, do Sudão desde o golpe de 2021, e seu rival, o também general Mohamed Hamdane Dagalo, líder das Forças de Apoio Rápido (FAR), os rebeldes. Até agora, mais de 500 pessoas morreram e cerca de 4.500 ficaram feridas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) no fim do mês.

Os confrontos acontecem essencialmente em Cartum e na região de Darfur, no oeste do país. O governo enfatizou que o número de mortos pode ser maior devido à incapacidade das equipes médicas para acessar regiões mais violentas e porque a maior parte dos hospitais dos Estados, onde os combates ocorrem, está fora de serviço.

Heron Ferreira viu tudo isso de perto, praticamente da janela de seu apartamento em um edifício internacional onde havia gente da ONU e membros de outros consulados no Sudão. “Era proibido sair de casa, com risco de morrer. Havia uma Lei Marcial em vigência. Quando percebi que a coisa estava feia, fui a uma vendinha perto do prédio com a ideia de estocar alimentos. Comprei uns 20 frangos, água, Nuggets. Os aviões bombardearam lugares a 100 metros de onde estávamos”, contou o treinador ao Estadão. A reportagem chegou a ligar para ele quando o ônibus passava por uma revista de soldados do governo.

O técnico Heron Ferreira conseguiu escapar do conflito no Sudão ao lado de companheiros do time que treina no país. Foto: Arquivo Pessoal/ Heron Ferreira

Heron foi, no fim da década de 80, auxiliar de Vanderlei Luxemburgo no Palmeiras. No começo dos anos 2000, ele se aventurou pelo futebol do Sudão. Não sabia nada sobre aquele país. Foi para o Al-Hilal, da cidade de Omdurman. Conseguiu ser campeão nas temporadas de 2005, 2006 e 2007. E levou o time longe na Champions da África. O Sudão era uma nação coadjuvante no futebol africano, sem participação em Copas do Mundo. Não havia profissionalismo nos clubes. Tudo era feito de forma amadora.

“Mas o terceiro lugar do meu time na Champions me fez um ‘rei’ no Sudão. O país parou. O presidente falou do feito, todos comentaram sobre o nosso sucesso. Foi uma conquista gigantesca”, lembra o treinador. A partir dessa experiência, comparado às dificuldades do futebol brasileiro, ele direcionou sua carreira para essa parte do planeta. Esteve no Egito, Catar e Líbia.

Mas foi em sua volta ao Sudão que Heron viveu os momentos mais tensos de sua vida, nada comparado às suas experiências, inclusive na Líbia, onde também se viu em meio a um conflito revolucionário, que contaremos mais adiante na reportagem. Quando Cartum começou a ser bombardeada pelas forças rebeldes (que se vestem de bege) em abril, Heron achou que aquilo duraria alguns dias apenas.

“Mas o tempo foi passando, todas as atividades do time foram interrompidas e fomos ficando mais tensos e nervosos. Tratei de controlar a todos, pedindo tranquilidade. Eu também estava preocupado, mas não podia deixar isso transparecer”, conta. Ele reunia os brasileiros todos os dias e passou a ser o ‘cozinheiro’ do grupo. Suas famílias estavam no Brasil.

O último time brasileiro que Heron Ferreira comandou foi o Bonsucesso, em 2018. Foto: Arquivo pessoal/ Heron Ferreira

O desespero bateu mesmo quando a Embaixada do Brasil informou que não havia planos imediatos para tirar os brasileiros do Sudão. Uma assistente da embaixada de nome Ana estava na mesma situação. O treinador disse que ela pegou carona no ônibus do clube para deixar o país com os jogadores. Começava ali a viagem mais longa da vida de Heron, sem saber, inclusive, se daria certo. Em nota, o Itamaraty divulgou que o governo estava “empreendendo esforços para retirar todos os brasileiros em território sudanês tão logo quanto possível”. A ONU estava ajudando nessa saída da capital.

Antes de seguirem por terra, também fizeram contato com o deputado federal Romário e a senadora Damares Alves. Mas também não conseguiram nada prático. A CBF e a Fifa foram notificadas do que ocorria no Sudão.

O grupo de brasileiros, com a ajuda do clube, decidiu então tomar o ônibus do time para atravessar o país e chegar ao Egito. Foram para o norte. Era a rota mais segura, mais longe, mas a mais segura. Eles saíram de Cartum. “Todos estavam saindo da capital. E decidimos ir embora também”, disse o treinador.

Lotação

O ônibus estava vazio no começo. Tinha as cores do time. E isso poderia ajudar na travessia. Levaram seis horas para percorrer 20 km, de Cartum para Omdurman. Foram parados em todas as barreiras. “Todos tinham de descer. Apontavam armas para a gente. Eram os soldados do Sudão que buscavam rebeldes. Como sabíamos? Eles estavam de roupa camuflada”. Em todos os postos de parada, pediam documentação. “Depois de uma certa distância, os soldados foram colocando mais gente dentro do nosso ônibus. Subiram umas 20 pessoas, entre mulheres, homens e crianças. Eles faziam um apelo para tirar as pessoas da região. Não havia o que fazer”.

Em algumas paradas, havia café. Foram os soldados que deram a rota com menos perigo até o Egito. Foram mais de 31 horas dentro do ônibus, sem banho e sem saber ao certo o que o grupo encontraria pela frente. “Levamos dinheiro, mas isso não valia para nada. Tínhamos uma mala ou duas. Deixamos muitas coisas para trás em Cartum. Para comer, tínhamos latas de atum e sardinha, dessas de supermercado. E água. A cada barreira, ficávamos parados de 7h a 10h, esperando pela liberação. Não havia o que fazer. Os nossos passaportes sumiram em uma dessas revistas. Cara, é uma sensação horrível. Você acha mesmo que vai morrer”, disse Heron. Em alguns momentos, houve até brincadeiras e fotos para descontrair. Mas todos, diz, estavam preocupados.

O ônibus chegou ao Cairo depois de mais de 30 horas de travessia. Mesmo no Egito, eles tiveram problemas. A placa do veículo era do Sudão e a condução não podia entrar no país fronteiriço. Precisavam de autorização. Não tinham. Outro ônibus foi arrumado com a ajuda dos que recebiam as pessoas que deixavam o Sudão por esse caminho.

Primavera Árabe

É a segunda vez que Heron Ferreira foge de um país em guerra. Na primeira delas , estava na Líbia, em Trípoli, quando a Primavera Árabe estourou nas ruas da cidade para derrubar o governo de Muamar Kadhafi. Era 2011. Rebeldes pegaram em armas para combater as tropas leais ao governo. O treinador estava lá. Era técnico do Al Ahly Tripoli. Ele não deixou o país na primeira oportunidade e depois ficou sabendo que haviam bombardeado o aeroporto. Não foi para não deixar um amigo para trás. Esperou 15 dias para sair da Líbia de navio em direção a Malta.

Heron está no Rio agora. Quando conversou novamente com o Estadão, havia acabado de dar uma volta de bicicleta na orla. Todos os brasileiros do time e alguns de outras equipes deixaram o Sudão pelo Egito e depois em voos diferentes. Ainda não se encontraram. O técnico já informou para a Fifa de tudo o que aconteceu e de como deixou o Sudão para não caracterizar abandono de emprego. Seu objetivo agora é confirmar sua licença-pro de treinador, num curso que termina em junho no Rio, e assim ter todos os documentos de que precisa para continuar sua carreira em qualquer canto do planeta. Heron já trabalhou também no Catar e na Arábia Saudita. Deve ir para o Egito em breve.

A República do Sudão é um país africano que faz fronteira ao norte com o Egito e a leste com o Mar Vermelho, por onde se chega à Arábia Saudita. A Líbia também está ali por perto, assim como Chade e Etiópia. A capital Cartum fica no meio do país. Quem olha no mapa diz que fica um pouquinho mais para o sul, de modo a tornar o Egito uma fronteira mais distante. Mesmo assim, foi nessa direção que o ônibus do Al-Merrikh acelerou para fugir do conflito armado do Sudão.

No veículo do clube estavam oito brasileiros do time liderados pelo técnico Heron Ferreira, e ele próprio sentado no primeiro banco. Heron é conhecido por lá como ‘coach Ricardo’, seu nome do meio. Foi de ônibus que ele atravessou o país para se salvar e também salvar as vidas de seus atletas, comissão técnica e mais algumas pessoas que ele foi pegando pelo caminho. De carona, ainda levou uma colaboradora da Embaixada do Brasil no Sudão. O ônibus foi a melhor solução para fugir das bombas e dos rasantes dos aviões que sobrevoavam o prédio onde todos eles estavam em Cartum para escapar dos ataques. O clima na cidade era tenso. Heron temeu por sua vida.

A violência no país do nordeste africano, de cerca de 45 milhões de pessoas, eclodiu em 15 de abril entre o exército do general Abdel Fatah al-Burhan, governante, de fato, do Sudão desde o golpe de 2021, e seu rival, o também general Mohamed Hamdane Dagalo, líder das Forças de Apoio Rápido (FAR), os rebeldes. Até agora, mais de 500 pessoas morreram e cerca de 4.500 ficaram feridas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) no fim do mês.

Os confrontos acontecem essencialmente em Cartum e na região de Darfur, no oeste do país. O governo enfatizou que o número de mortos pode ser maior devido à incapacidade das equipes médicas para acessar regiões mais violentas e porque a maior parte dos hospitais dos Estados, onde os combates ocorrem, está fora de serviço.

Heron Ferreira viu tudo isso de perto, praticamente da janela de seu apartamento em um edifício internacional onde havia gente da ONU e membros de outros consulados no Sudão. “Era proibido sair de casa, com risco de morrer. Havia uma Lei Marcial em vigência. Quando percebi que a coisa estava feia, fui a uma vendinha perto do prédio com a ideia de estocar alimentos. Comprei uns 20 frangos, água, Nuggets. Os aviões bombardearam lugares a 100 metros de onde estávamos”, contou o treinador ao Estadão. A reportagem chegou a ligar para ele quando o ônibus passava por uma revista de soldados do governo.

O técnico Heron Ferreira conseguiu escapar do conflito no Sudão ao lado de companheiros do time que treina no país. Foto: Arquivo Pessoal/ Heron Ferreira

Heron foi, no fim da década de 80, auxiliar de Vanderlei Luxemburgo no Palmeiras. No começo dos anos 2000, ele se aventurou pelo futebol do Sudão. Não sabia nada sobre aquele país. Foi para o Al-Hilal, da cidade de Omdurman. Conseguiu ser campeão nas temporadas de 2005, 2006 e 2007. E levou o time longe na Champions da África. O Sudão era uma nação coadjuvante no futebol africano, sem participação em Copas do Mundo. Não havia profissionalismo nos clubes. Tudo era feito de forma amadora.

“Mas o terceiro lugar do meu time na Champions me fez um ‘rei’ no Sudão. O país parou. O presidente falou do feito, todos comentaram sobre o nosso sucesso. Foi uma conquista gigantesca”, lembra o treinador. A partir dessa experiência, comparado às dificuldades do futebol brasileiro, ele direcionou sua carreira para essa parte do planeta. Esteve no Egito, Catar e Líbia.

Mas foi em sua volta ao Sudão que Heron viveu os momentos mais tensos de sua vida, nada comparado às suas experiências, inclusive na Líbia, onde também se viu em meio a um conflito revolucionário, que contaremos mais adiante na reportagem. Quando Cartum começou a ser bombardeada pelas forças rebeldes (que se vestem de bege) em abril, Heron achou que aquilo duraria alguns dias apenas.

“Mas o tempo foi passando, todas as atividades do time foram interrompidas e fomos ficando mais tensos e nervosos. Tratei de controlar a todos, pedindo tranquilidade. Eu também estava preocupado, mas não podia deixar isso transparecer”, conta. Ele reunia os brasileiros todos os dias e passou a ser o ‘cozinheiro’ do grupo. Suas famílias estavam no Brasil.

O último time brasileiro que Heron Ferreira comandou foi o Bonsucesso, em 2018. Foto: Arquivo pessoal/ Heron Ferreira

O desespero bateu mesmo quando a Embaixada do Brasil informou que não havia planos imediatos para tirar os brasileiros do Sudão. Uma assistente da embaixada de nome Ana estava na mesma situação. O treinador disse que ela pegou carona no ônibus do clube para deixar o país com os jogadores. Começava ali a viagem mais longa da vida de Heron, sem saber, inclusive, se daria certo. Em nota, o Itamaraty divulgou que o governo estava “empreendendo esforços para retirar todos os brasileiros em território sudanês tão logo quanto possível”. A ONU estava ajudando nessa saída da capital.

Antes de seguirem por terra, também fizeram contato com o deputado federal Romário e a senadora Damares Alves. Mas também não conseguiram nada prático. A CBF e a Fifa foram notificadas do que ocorria no Sudão.

O grupo de brasileiros, com a ajuda do clube, decidiu então tomar o ônibus do time para atravessar o país e chegar ao Egito. Foram para o norte. Era a rota mais segura, mais longe, mas a mais segura. Eles saíram de Cartum. “Todos estavam saindo da capital. E decidimos ir embora também”, disse o treinador.

Lotação

O ônibus estava vazio no começo. Tinha as cores do time. E isso poderia ajudar na travessia. Levaram seis horas para percorrer 20 km, de Cartum para Omdurman. Foram parados em todas as barreiras. “Todos tinham de descer. Apontavam armas para a gente. Eram os soldados do Sudão que buscavam rebeldes. Como sabíamos? Eles estavam de roupa camuflada”. Em todos os postos de parada, pediam documentação. “Depois de uma certa distância, os soldados foram colocando mais gente dentro do nosso ônibus. Subiram umas 20 pessoas, entre mulheres, homens e crianças. Eles faziam um apelo para tirar as pessoas da região. Não havia o que fazer”.

Em algumas paradas, havia café. Foram os soldados que deram a rota com menos perigo até o Egito. Foram mais de 31 horas dentro do ônibus, sem banho e sem saber ao certo o que o grupo encontraria pela frente. “Levamos dinheiro, mas isso não valia para nada. Tínhamos uma mala ou duas. Deixamos muitas coisas para trás em Cartum. Para comer, tínhamos latas de atum e sardinha, dessas de supermercado. E água. A cada barreira, ficávamos parados de 7h a 10h, esperando pela liberação. Não havia o que fazer. Os nossos passaportes sumiram em uma dessas revistas. Cara, é uma sensação horrível. Você acha mesmo que vai morrer”, disse Heron. Em alguns momentos, houve até brincadeiras e fotos para descontrair. Mas todos, diz, estavam preocupados.

O ônibus chegou ao Cairo depois de mais de 30 horas de travessia. Mesmo no Egito, eles tiveram problemas. A placa do veículo era do Sudão e a condução não podia entrar no país fronteiriço. Precisavam de autorização. Não tinham. Outro ônibus foi arrumado com a ajuda dos que recebiam as pessoas que deixavam o Sudão por esse caminho.

Primavera Árabe

É a segunda vez que Heron Ferreira foge de um país em guerra. Na primeira delas , estava na Líbia, em Trípoli, quando a Primavera Árabe estourou nas ruas da cidade para derrubar o governo de Muamar Kadhafi. Era 2011. Rebeldes pegaram em armas para combater as tropas leais ao governo. O treinador estava lá. Era técnico do Al Ahly Tripoli. Ele não deixou o país na primeira oportunidade e depois ficou sabendo que haviam bombardeado o aeroporto. Não foi para não deixar um amigo para trás. Esperou 15 dias para sair da Líbia de navio em direção a Malta.

Heron está no Rio agora. Quando conversou novamente com o Estadão, havia acabado de dar uma volta de bicicleta na orla. Todos os brasileiros do time e alguns de outras equipes deixaram o Sudão pelo Egito e depois em voos diferentes. Ainda não se encontraram. O técnico já informou para a Fifa de tudo o que aconteceu e de como deixou o Sudão para não caracterizar abandono de emprego. Seu objetivo agora é confirmar sua licença-pro de treinador, num curso que termina em junho no Rio, e assim ter todos os documentos de que precisa para continuar sua carreira em qualquer canto do planeta. Heron já trabalhou também no Catar e na Arábia Saudita. Deve ir para o Egito em breve.

A República do Sudão é um país africano que faz fronteira ao norte com o Egito e a leste com o Mar Vermelho, por onde se chega à Arábia Saudita. A Líbia também está ali por perto, assim como Chade e Etiópia. A capital Cartum fica no meio do país. Quem olha no mapa diz que fica um pouquinho mais para o sul, de modo a tornar o Egito uma fronteira mais distante. Mesmo assim, foi nessa direção que o ônibus do Al-Merrikh acelerou para fugir do conflito armado do Sudão.

No veículo do clube estavam oito brasileiros do time liderados pelo técnico Heron Ferreira, e ele próprio sentado no primeiro banco. Heron é conhecido por lá como ‘coach Ricardo’, seu nome do meio. Foi de ônibus que ele atravessou o país para se salvar e também salvar as vidas de seus atletas, comissão técnica e mais algumas pessoas que ele foi pegando pelo caminho. De carona, ainda levou uma colaboradora da Embaixada do Brasil no Sudão. O ônibus foi a melhor solução para fugir das bombas e dos rasantes dos aviões que sobrevoavam o prédio onde todos eles estavam em Cartum para escapar dos ataques. O clima na cidade era tenso. Heron temeu por sua vida.

A violência no país do nordeste africano, de cerca de 45 milhões de pessoas, eclodiu em 15 de abril entre o exército do general Abdel Fatah al-Burhan, governante, de fato, do Sudão desde o golpe de 2021, e seu rival, o também general Mohamed Hamdane Dagalo, líder das Forças de Apoio Rápido (FAR), os rebeldes. Até agora, mais de 500 pessoas morreram e cerca de 4.500 ficaram feridas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) no fim do mês.

Os confrontos acontecem essencialmente em Cartum e na região de Darfur, no oeste do país. O governo enfatizou que o número de mortos pode ser maior devido à incapacidade das equipes médicas para acessar regiões mais violentas e porque a maior parte dos hospitais dos Estados, onde os combates ocorrem, está fora de serviço.

Heron Ferreira viu tudo isso de perto, praticamente da janela de seu apartamento em um edifício internacional onde havia gente da ONU e membros de outros consulados no Sudão. “Era proibido sair de casa, com risco de morrer. Havia uma Lei Marcial em vigência. Quando percebi que a coisa estava feia, fui a uma vendinha perto do prédio com a ideia de estocar alimentos. Comprei uns 20 frangos, água, Nuggets. Os aviões bombardearam lugares a 100 metros de onde estávamos”, contou o treinador ao Estadão. A reportagem chegou a ligar para ele quando o ônibus passava por uma revista de soldados do governo.

O técnico Heron Ferreira conseguiu escapar do conflito no Sudão ao lado de companheiros do time que treina no país. Foto: Arquivo Pessoal/ Heron Ferreira

Heron foi, no fim da década de 80, auxiliar de Vanderlei Luxemburgo no Palmeiras. No começo dos anos 2000, ele se aventurou pelo futebol do Sudão. Não sabia nada sobre aquele país. Foi para o Al-Hilal, da cidade de Omdurman. Conseguiu ser campeão nas temporadas de 2005, 2006 e 2007. E levou o time longe na Champions da África. O Sudão era uma nação coadjuvante no futebol africano, sem participação em Copas do Mundo. Não havia profissionalismo nos clubes. Tudo era feito de forma amadora.

“Mas o terceiro lugar do meu time na Champions me fez um ‘rei’ no Sudão. O país parou. O presidente falou do feito, todos comentaram sobre o nosso sucesso. Foi uma conquista gigantesca”, lembra o treinador. A partir dessa experiência, comparado às dificuldades do futebol brasileiro, ele direcionou sua carreira para essa parte do planeta. Esteve no Egito, Catar e Líbia.

Mas foi em sua volta ao Sudão que Heron viveu os momentos mais tensos de sua vida, nada comparado às suas experiências, inclusive na Líbia, onde também se viu em meio a um conflito revolucionário, que contaremos mais adiante na reportagem. Quando Cartum começou a ser bombardeada pelas forças rebeldes (que se vestem de bege) em abril, Heron achou que aquilo duraria alguns dias apenas.

“Mas o tempo foi passando, todas as atividades do time foram interrompidas e fomos ficando mais tensos e nervosos. Tratei de controlar a todos, pedindo tranquilidade. Eu também estava preocupado, mas não podia deixar isso transparecer”, conta. Ele reunia os brasileiros todos os dias e passou a ser o ‘cozinheiro’ do grupo. Suas famílias estavam no Brasil.

O último time brasileiro que Heron Ferreira comandou foi o Bonsucesso, em 2018. Foto: Arquivo pessoal/ Heron Ferreira

O desespero bateu mesmo quando a Embaixada do Brasil informou que não havia planos imediatos para tirar os brasileiros do Sudão. Uma assistente da embaixada de nome Ana estava na mesma situação. O treinador disse que ela pegou carona no ônibus do clube para deixar o país com os jogadores. Começava ali a viagem mais longa da vida de Heron, sem saber, inclusive, se daria certo. Em nota, o Itamaraty divulgou que o governo estava “empreendendo esforços para retirar todos os brasileiros em território sudanês tão logo quanto possível”. A ONU estava ajudando nessa saída da capital.

Antes de seguirem por terra, também fizeram contato com o deputado federal Romário e a senadora Damares Alves. Mas também não conseguiram nada prático. A CBF e a Fifa foram notificadas do que ocorria no Sudão.

O grupo de brasileiros, com a ajuda do clube, decidiu então tomar o ônibus do time para atravessar o país e chegar ao Egito. Foram para o norte. Era a rota mais segura, mais longe, mas a mais segura. Eles saíram de Cartum. “Todos estavam saindo da capital. E decidimos ir embora também”, disse o treinador.

Lotação

O ônibus estava vazio no começo. Tinha as cores do time. E isso poderia ajudar na travessia. Levaram seis horas para percorrer 20 km, de Cartum para Omdurman. Foram parados em todas as barreiras. “Todos tinham de descer. Apontavam armas para a gente. Eram os soldados do Sudão que buscavam rebeldes. Como sabíamos? Eles estavam de roupa camuflada”. Em todos os postos de parada, pediam documentação. “Depois de uma certa distância, os soldados foram colocando mais gente dentro do nosso ônibus. Subiram umas 20 pessoas, entre mulheres, homens e crianças. Eles faziam um apelo para tirar as pessoas da região. Não havia o que fazer”.

Em algumas paradas, havia café. Foram os soldados que deram a rota com menos perigo até o Egito. Foram mais de 31 horas dentro do ônibus, sem banho e sem saber ao certo o que o grupo encontraria pela frente. “Levamos dinheiro, mas isso não valia para nada. Tínhamos uma mala ou duas. Deixamos muitas coisas para trás em Cartum. Para comer, tínhamos latas de atum e sardinha, dessas de supermercado. E água. A cada barreira, ficávamos parados de 7h a 10h, esperando pela liberação. Não havia o que fazer. Os nossos passaportes sumiram em uma dessas revistas. Cara, é uma sensação horrível. Você acha mesmo que vai morrer”, disse Heron. Em alguns momentos, houve até brincadeiras e fotos para descontrair. Mas todos, diz, estavam preocupados.

O ônibus chegou ao Cairo depois de mais de 30 horas de travessia. Mesmo no Egito, eles tiveram problemas. A placa do veículo era do Sudão e a condução não podia entrar no país fronteiriço. Precisavam de autorização. Não tinham. Outro ônibus foi arrumado com a ajuda dos que recebiam as pessoas que deixavam o Sudão por esse caminho.

Primavera Árabe

É a segunda vez que Heron Ferreira foge de um país em guerra. Na primeira delas , estava na Líbia, em Trípoli, quando a Primavera Árabe estourou nas ruas da cidade para derrubar o governo de Muamar Kadhafi. Era 2011. Rebeldes pegaram em armas para combater as tropas leais ao governo. O treinador estava lá. Era técnico do Al Ahly Tripoli. Ele não deixou o país na primeira oportunidade e depois ficou sabendo que haviam bombardeado o aeroporto. Não foi para não deixar um amigo para trás. Esperou 15 dias para sair da Líbia de navio em direção a Malta.

Heron está no Rio agora. Quando conversou novamente com o Estadão, havia acabado de dar uma volta de bicicleta na orla. Todos os brasileiros do time e alguns de outras equipes deixaram o Sudão pelo Egito e depois em voos diferentes. Ainda não se encontraram. O técnico já informou para a Fifa de tudo o que aconteceu e de como deixou o Sudão para não caracterizar abandono de emprego. Seu objetivo agora é confirmar sua licença-pro de treinador, num curso que termina em junho no Rio, e assim ter todos os documentos de que precisa para continuar sua carreira em qualquer canto do planeta. Heron já trabalhou também no Catar e na Arábia Saudita. Deve ir para o Egito em breve.

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