O futebol brasileiro pode se transformar no novo Eldorado para mega investidores e conglomerados esportivos depois do boom da China, passando pela abertura na Arábia Saudita (com capital do governo) até chegar na retomada de recursos dos Estados Unidos, com a contratação de Lionel Messi e uma Copa do Mundo para sediar ao lado dos vizinhos México e Canadá. O amadurecimento das SAFs (Sociedade Anônima do Futebol) e as novas regulamentações sobre compliance e a implementação da Lei Geral do Esporte, em vigor desde o ano passado, com deveres e obrigações para quem administra clubes e entidades esportivas, mostram um caminho mais pavimentado para quem está interessado em investir no Brasil.
Soma-se a isso a inesgotável fábrica de talentos do futebol brasileiro e se tem um cenário perfeito para gerar e ganhar dinheiro a cada 90 minutos de bola rolando. O Brasil tem dois atributos que nenhum outro país do mundo tem em se tratando de futebol: história e formação de base.
Imagina como o endinheirado americano John Textor poderia se valer da tradição do Botafogo para negociar sua marca em qualquer lugar do mundo? Foi simplesmente o time de Mané Garrincha, campeão do mundo em 1958 e 1962. O mundo conhece a história dos títulos da seleção brasileira e de seus craques do passado, reverenciados em todos os cantos, muito também por causa de Pelé, o maior de todos. Se Textor não tivesse se deixado contaminar pelo pior lado do torcedor brasileiro, que é o de reclamar de armações contra o seu time, poderia estar trabalhando a imagem do clube e toda a sua gloriosa história em mídias e marcas pelo mundo, de modo a obter, como o tempo, tudo o que investiu e começar a ganhar dinheiro.
As SAFs abriram o caminho e derrubaram a imagem de como o futebol brasileiro era visto no exterior sob o prisma de gestão e financeiro. Bem pouco tempo atrás, era impensável e até inaceitável que um clube brasileiro tivesse um dono de fora, um investidor como tem muitos nos Estados Unidos e Europa, que não pertencesse aos cartolas formados nas agremiações até chegar à presidência. Sempre foi assim. O cara era diretor da bocha, depois das piscinas, do futebol até se lançar e ganhar uma campanha para presidente. Com o sistema de governança de S.A., esse modelo não reina mais sozinho. As SAFs estão nas mãos de empresários dos mais diversos ramos de atividades ou de grupos esportivos, como é o caso do Bahia, do técnico Rogério Ceni, que se juntou ao conglomerado do Manchester City. Ronaldo comprou o Cruzeiro por R$ 400 milhões, investiu R$ 50 milhões e vai vender o clube lá na frente por cinco vezes mais que isso.
“A regulamentação das Sociedades Anônimas impulsionou a evolução do futebol brasileiro, tornando-o uma indústria atrativa para investimentos de grupos nacionais e internacionais. Nesse cenário, a nossa decisão de negociar com o Coritiba não foi fortuita. Reconhecemos o potencial de crescimento significativo do clube e estamos comprometidos com um projeto de longo prazo”, disse Bruno D’Ancona, sócio-diretor da Treecorp, empresa de Private Equity que comprou 90% das ações do clube paranaense. “Nosso objetivo é alcançar sucesso esportivo e estabilidade financeira, estabelecendo esses alicerces antes de buscar lucratividade. Trata-se, portanto, de um compromisso de longo prazo, fundamentado na construção sólida de nosso futuro.”
É preciso ter também uma estratégia de negócio
Pelas declarações do investidor do Coritiba, é fácil perceber que o futebol brasileiro não está mais sendo visto do ponto de vista apenas esportivo, da bola que rola no gramado durante os 90 minutos e dos talentos que surgem. Há uma estratégia de negócio. De chegar com o investimento, arrumar a casa e depois ganhar dinheiro. Os clubes viraram empresas e como tais visam fazer mais e mais dinheiro.
Alia-se a isso o que se vê, por exemplo, na Premier League, onde o futebol é bem jogado e recheado de bons jogadores e há toda uma estrutura que parece perfeita nos estádios com uma sinergia com o torcedor, e se tem uma mina de ouro, um novo Eldorado. Mas o Brasil não é a Inglaterra. Há material humano de qualidade, novos e modernos estádios alavancados com a Copa do Mundo de 2014 e por uma onda de arenas que ainda fascina os cartolas e algumas novas leis e regras que parecem colocar ordem na casa.
Ocorre que o futebol brasileiro não está pronto para ser esse Eldorado, que deixará todos do meio ainda mais ricos. É o que pensa, por exemplo, Thiago Freitas, da Roc Nation Sports no Brasil, uma empresa de entretenimento americana, comandada pelo cantor Jay-Z, que se juntou à TFM Agency, com larga experiência no futebol e na administração da carreira de jogadores renomados, como Vini Jr. e Endrick. “É importante definir o que é exatamente “futebol brasileiro” e separar o que é investimento nos clubes, do que é investimento na representação de atletas e do que é investimentos em propriedades comerciais relacionadas a competições no Brasil. Entre esses três pilares, certamente o menos relevante e interessante é o investimento na compra de ações dos clubes, porque não temos alinhamento, e não teremos em anos, necessário para a criação de uma liga que faça com que o produto “futebol brasileiro” possa existir”.
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O empresário defende que o Brasil vai precisar de bons anos para amadurecer e tentar se organizar, se é que conseguirá um dia ser um país do futebol organizado. Não precisa ir longe para concordar com ele. Na semana passada e nesta, dois casos de total falta de desorganização e paixão clubística foram noticiados na mídia. Uma diz respeito ao episódio envolvendo dirigentes e jogadores do São Paulo contra o Palmeiras e seu treinador, com pedido de desculpas em público e multa em dinheiro, e o outro de John Textor dizendo que suas bravatas contra a arbitragem que “prejudicava” o seu Botafogo não eram bem assim.
“Por conta da política que define como os presidentes das confederações são eleitos, desde o fim dos anos 1980, vimos o produto “futebol brasileiro” ser restrito fora do Brasil na seleção brasileira. Intencionalmente, aglutinando recursos para a exibição dela, sempre restringindo as possibilidades de os clubes serem vistos e enfrentarem rivais estrangeiros, para que dirigentes das federações estaduais seguissem manipulando transferência de renda dos grandes clubes para os menores, em prol dos votos para os grupos de influência e controle da CBF”, disse Freitas.
“Ainda que vejamos um excelente movimento de transformação de vários de nossos clubes em sociedades anônimas, nossas quatro principais forças e marcas, que são Flamengo, Palmeiras, São Paulo e Corinthians, não dão qualquer sinalização de que vão se transformar nelas, e esses mal conseguem se alinhar por cores de uniformes ou uso de uma sala para entrevistas em jogos específicos. Como imaginar que dois terços, três quartos do potencial de geração de receitas de nosso futebol vão se alinhar de forma ampla em prol da criação de um negócio do qual são sócios, se nem eles, isoladamente, têm interesse de deixar o amadorismo associativo e político para se converter em empresas que efetivamente “tem dono”?”.
O investidor destaca ainda que os avanços na legislação são importantes, mas ainda o futebol brasileiro está muito longe do que acontece nas ligas da Europa e com os clubes de lá. Mesmo os times pequenos da Inglaterra têm mais recursos e receitas dos grandes do Brasil, conforme atestou reportagem do jornal Financial Times. “Hoje, o atrativo maior para compra de ações de um clube brasileiro está relacionado à possibilidade de incluir esse clube em uma rede de times, e gerar valor com transferências de atletas brasileiros para clubes europeus do mesmo grupo. Em suma, o valor maior e relevante, a geração de riqueza, está no atleta brasileiro, e não nos clubes e campeonatos nacionais”, atesta o chefão da Roc Nation Sports no Brasil.
Apesar disso, a maioria dos especialistas do mercado na área esportiva ouvidos pelo Estadão olha para o futebol brasileiro como verdadeiros garimpeiros chegando em Serra Pelada em busca do seu pedaço de ouro. Alguns movimentos fazem com que eles tenham mais fé na organização do futebol brasileiro. O sistema de pontos corridos e de eliminatórias das principais competições do País, como Brasileirão e Copa do Brasil, são fatores importantes. O fim das “canetadas” do passado, quando clubes eram salvos das degolas nos tribunais ou mesmo jogadores eram absolvidos de penas esportivas com liminares, abriu uma perspectiva diferente. O Brasil paga salários altos a seus jogadores e as receitas dos clubes estão se aproximando do R$ 1 bilhão - o Flamengo já supera esse patamar.
“Com uma administração profissional, colocando a razão acima da emoção, o futebol pode ser um modelo de negócio rentável. Por muitos anos, os clubes sofreram com dirigentes sem responsabilidade financeira e que agiam no calor da emoção, buscando a manutenção dos cargos e o apoio da torcida. No Botafogo de Ribeirão Preto, por exemplo, estamos reconstruindo a instituição, com um cronograma para sanar as dívidas e uma gestão que trabalha para fomentar novas receitas para que o time consiga ser cada vez mais competitivo. O interesse de investimento estrangeiro é natural, o mercado do futebol no Brasil tem um potencial enorme de crescimento a médio e longo prazo”, acredita Adalberto Baptista, gestor da SAF do Botafogo-SP.
Risco para o investidor ‘parece menor’
O próximo pulo do futebol brasileiro é a criação e regulamentação de uma liga capaz de organizar as competições do ponto de vista financeiro dos direitos de transmissão dos jogos. Parece fácil. Não é. Faz dois anos que os clubes tentam se organizar para isso e não conseguem. A distribuição do dinheiro é o grande empecilho. Todos querem ganhar mais. Recentemente, um grupo desses times, como o Palmeiras e o São Paulo, fechou com a Rede Globo pelos próximos cinco anos. “O futebol brasileiro sempre foi um potencial para investidores de fora. O grande problema era a parte regulatória, aspecto que, com a legislação da SAF, já deu uma bela melhorada, mas que ainda necessita de ajustes. Por outro lado, a ideia de ter uma liga nos próximos anos traz um pouco mais de segurança, por ser um modelo que já é feito na Europa. Possivelmente, o Brasil terá na liga um investidor estrangeiro, onde possivelmente será feito algo similar ao que já acontece em outras grandes ligas. Essas duas dinâmicas fazem com que o investidor se sinta mais à vontade de vir para cá e buscar os ativos, que também são ativos bons e que precisam ser ajustados para se valorizarem mais”, defende Luciano Paciello, CEO do Goiás e que foi diretor financeiro do Palmeiras entre 2013 e 2018.
Junto às melhorias no futebol brasileiro e a expectativa da entrada de capital estrangeiro, de nada vai adiantar se os clubes e seus dirigentes e torcedores não se modernizarem, deixando para trás os últimos resquícios do amadorismo e da gestão sem profissionalismo. Esse passo ainda precisa ser dado. Há clubes mais adiantados no processo e outros ainda engatinhando. “O Vasco vem se profissionalizando cada vez mais e isso só foi possível com a chegada do investidor, a 777 Partners. Aumentamos os mecanismos de controle, melhoramos a organização e aumentamos nossa eficiência administrativa, isso tudo tem um impacto positivo na geração de receitas. O Vasco tem uma imagem de credibilidade perante o mercado hoje para negociar com tranquilidade e ter mais ganhos”, disse Lúcio Barbosa, CEO da SAF do Vasco.
Quem pensa parecido é Yuri Romão, presidente do Sport. “Durante muito tempo, a gestão amadora prevaleceu por aqui e isso, com certeza, afastou os investidores. Agora, neste novo cenário, norteado pela implementação de novos modelos de gestão e governança, bem como com a profissionalização e pela responsabilidade financeira implementada, e com a possibilidade de criação de uma liga, é natural que empresários de outros países se sintam mais seguros para aportar seus fundos no futebol brasileiro. O potencial de valorização sempre existiu, a diferença é que agora o risco parece menor”.