Javier Tebas, presidente da LaLiga, decidiu abrir uma cruzada contra a pirataria. Um dos dirigentes mais conhecidos e influentes do futebol mundial, o advogado espanhol se irrita com os prejuízos provocados pelos jogos do Campeonato Espanhol transmitidos ilegalmente e estima que a fraude audiovisual tire dos clubes espanhóis 600 milhões de euros por ano.
Ele diz que a LaLiga investe há muitos anos grande quantidade de recursos econômicos, tecnológicos e humanos para a proteção de seus conteúdos globalmente e conseguiu em 2023 eliminar 1.251 vídeos do YouTube, mais de 938 mil vídeos em redes sociais, 61 mil perfis com conteúdo de fraude audiovisual, além de 7.300 grupos de mensagens que distribuíam conteúdo pirata. No entanto, lutar contra a “praga”, como se refere à pirataria, é uma tarefa complexa.
“A tecnologia avança rapidamente e as plataformas de pirataria se adaptam constantemente, encontrando novas formas de escapar das medidas de segurança. Essas plataformas frequentemente operam em jurisdições onde as leis de propriedade intelectual não são tão rigorosas ou não são aplicadas de maneira eficaz, o que dificulta sua perseguição legal”, constata Tebas, em entrevista ao Estadão.
Outras das dificuldades para quem tenta derrubar as transmissões piratas é que a internet permite que o conteúdo clandestino se distribua rapidamente para muitos usuários e as plataformas ilegais podem mudar de servidor e domínio com facilidade, o que complica o rastreamento e fechamento dos sites que transmitem partidas de futebol e outros conteúdos ilegalmente.
“Por trás dessa prática ilícita, não há heróis, mas sim máfias organizadas que lucram com o trabalho e os conteúdos de clubes, empresas audiovisuais etc”, dispara Tebas. “Elas operam através de um mercado paralelo sem pagar impostos, prejudicando, portanto, toda a sociedade em geral, além de estarem vinculadas a organizações criminosas”.
LaLiga, afirma Tebas, trabalha “com esforços coordenados e sustentados a nível global” em cooperação com governos, big techs, clubes, entidades e as empresas de mídias que detêm os direitos de transmissão das partidas
Ferramentas contra o conteúdo pirata
LaLiga criou um núcleo internamente para proteger seus conteúdos. São 50 especialistas protegendo tanto conteúdo ao vivo quanto sob demanda, a partir de dois laboratórios localizados em Madri e Cidade do México.
Conforme Guillermo Rodríguez, diretor de Operações Antifraude Digital e Audiovisual da LaLiga, a entidade usa diferentes ferramentas capazes de localizar e retirar o conteúdo pirateado nas redes sociais, analisar servidores dos serviço de IPTV ilegais (método de transmissão de sinais televisivos por meio de redes IP) e facilitar a gestão de bloqueios de websites e plataformas de IPTV em diferentes territórios.
Há limitações, porém, por causa das diferentes legislações de cada país, o que pode dificultar na fiscalização. “Enquanto alguns países possuem mecanismos legais robustos que facilitam a remoção rápida e o bloqueio de streams não autorizados, outros têm leis mais brandas ou processos mais lentos”, explica Rodríguez.
A pirataria, ele entende, exige “vigilância contínua, inovação nas estratégias antipirataria e marcos legais ágeis”. “Precisamos que grandes empresas de tecnologia também se comprometam efetivamente a combater a fraude audiovisual, algo que nem sempre acontece, apesar de serem consideradas líderes no setor”, cobra.
Pirataria no Brasil
Organizadora dos principais campeonatos de futebol do País, como Brasileirão e Copa do Brasil, a CBF delega ao jurídico a tarefa de lutar contra os casos de pirataria. “A pirataria corrói as receitas do futebol, uma vez que a remuneração decorre do numero de assinantes, especialmente em pacotes como os do Premiere”, afirma Regina Sampaio, gerente geral jurídica da CBF. “A transmissão é uma das receitas primordiais dos clubes e, atualmente, tem sido extremamente impactada”.
Conforme Regina, o cenário se agravou com a fragmentação dos direitos de TV “porque coibir o sinal pirata fica ainda mais complicado”. A entidade diz não ter números que dimensionam o impacto das transmissões clandestinas para a própria CBF, clubes e detentores dos direitos de transmissão. Quem detém os direitos televisivos dos campeonatos mais importantes do Brasil é o Grupo Globo. A emissora não respondeu aos contatos da reportagem.
No Brasil, o combate à pirataria é articulado por um comitê nacional do Governo Federal. Dentro dessa estrutura, o controle na área de telecomunicações cabe à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que inaugurou em setembro do ano passado o Laboratório Antipirataria, dedicado à análise de equipamentos que transmitem conteúdo audiovisual de forma clandestina. De uma a duas vezes por semana, há operações em horários de partidas de futebol que atraem muita atenção.
“São operações nacionais, de bloqueio dessas caixas. A gente trabalha com dezenas de prestadores de serviço de telecomunicações, fazemos uma varredura desses aparelhos, para identificar como estão operando, e detectamos os endereços a serem bloqueados. Transmitimos as informações às operadoras e cada operadora bloqueia na sua rede o acesso àqueles IPs”, explica Artur Coimbra, conselheiro da Anatel.
A atuação é focada no combate ao aparelho popularmente conhecido como TV Box, em sua versão que transmite pirataria. Existem equipamentos do tipo que são certificados pela Anatel. “Em resumo, a gente não certifica TV box que transmite conteúdo pirata. A nossa atuação se dá para combater o uso desses equipamentos”, diz Coimbra. Ele calcula haver entre 6 milhões e 8 milhões de aparelhos piratas.
Desde março de 2023, a Anatel monitorou e bloqueou 7.564 IPs - como é chamado o número que identifica cada dispositivo - e 1.495 endereços de sites. Apesar disso, do total de IPs, apenas 1.016 continuam bloqueados até hoje. Quanto aos endereços, o bloqueio permanece apenas em nove. Tal situação se dá em razão das limitações técnicas e jurídicas que o órgão enfrenta para atuar no controle de conteúdo na internet, função atualmente atribuída à Agência Nacional do Cinema (Ancine).
“Não conseguimos bloquear conteúdo online. Às vezes tem uma marca que transmite na internet. Quando bloqueamos a caixinha, também bloqueamos o site. Mas se o conteúdo estiver só na internet, a Anatel não consegue bloquear”, explica Coimbra, segundo o qual a Ancine tem essa competência, depois que uma nova legislação permitiu, deste o início deste ano, que ela passasse a ter ferramentas mais modernas para atuar contra a exibição conteúdo sem autorização em sites piratas e aplicativos com conteúdo ilegal.
Outra dificuldade da Anatel, diz Coimbra, é a operacionalização, “que ainda é muito manual”. Apesar disso, ele avalia que foram alcançados alguns resultados permanentes. Um dos aparelhos piratas, por exemplo, parou de ser comercializado no Brasil, e outros dois começarão a cobrar mensalidade. “Estão sentindo a pressão”, acredita.
Entre 2018 e 2023, a Anatel apreendeu R$ 1,5 milhão de decodificadores de sinal clandestino. A estimativa é que o uso desse tipo de produto pelos consumidores brasileiros tenha gerado R$ 14,6 bilhões de prejuízo anual para a indústria de TV por assinatura, com impacto negativo de R$ 2 milhões em arrecadação de impostos e perda de 6.450 empregos diretos.
No Brasil, a pirataria é considerada crime de contravenção. Conforme o artigo 184 do código penal, o delito de “violar direitos de autor e os que lhe são conexos” pode render prisão de três meses a um ano ou multa.