O jornalista e economista inglês Simon Kuper analisa com reprovação a tentativa fracassada de 12 times europeus em criar a Superliga, um torneio rebelde e que surgiu como alternativa à Liga dos Campeões. Autor de livros importantes sobre a relação entre futebol, economia e geopolítica, o escritor disse ao Estadão que o maior legado foi justamente ter dado errado e mostrado ao mundo como não se deve organizar uma competição.
Kuper atendeu a reportagem por telefone diretamente de Paris, onde mora. Colunista do jornal inglês Financial Times, ele vai lançar em março uma nova obra voltada a contar os bastidores sobre como o Barcelona se tornou o time mais poderoso do mundo. Entre as principais obras já publicadas, o inglês estão o bestseller Soccernomics, Futebol contra o Inimigo e Ajax, a Guerra Holandesa.
O que achou da tentativa de se criar a Superliga?
Os grandes clubes estranhamente entraram em colisão com a Uefa e de maneira secreta, organizaram a Superliga. A grande razão por trás dela é que para os principais clubes, não há um grande número de jogos entre eles. Barcelona contra Liverpool ou Manchester United contra Juventus são jogos que não acontecem em uma quantidade suficiente para satisfazer os dirigentes. O plano era fazer com que os grandes times se enfrentassem ao menos duas vezes ao ano.
Acredita que pode ter uma nova tentativa de criar a Superliga?
Acho que não teremos isso em breve. Os clubes agora vão aceitar a expansão da Liga dos Campeões para um número maior de clubes. Mas a principal diferença para a Superliga é que os times precisam a cada temporada conseguir a classificação para jogar a Liga dos Campeões.
Como as entidades do futebol podem evitar que novas Superligas sejam criadas?
Agora é o momento mais seguro, porque a investida falhou completamente. Os clubes foram muito amadores na proposta do torneio, não pensaram em maneiras de cativar as pessoas. A ideia de se ter uma Superliga existe pelo menos desde os anos 1960. Então, agora foi a vez que chegaram mais perto desse objetivo. Foi interessante ver a força da reação dos fãs à proposta.
Mas os jogadores se mantiveram em silêncio, mesmo diante da ameaça de não poderem jogar a Copa. Foi surpreendente isso?
Todos os atletas aprendem desde cedo a se comportarem de maneira disciplinada. Desde os 12 anos eles são treinados para agir assim. O capitão do Liverpool, Jordan Henderson, foi muito ativo ao convocar os capitães da Premier League para discutir o tema. Claro que para ele foi difícil agendar esse reunião. Eu acho que seria muito improvável que esses jogadores publicassem um comunicado dizendo: "Nós, capitães, somos contra a Superliga". Isso tornaria mais fácil para todos se manifestarem abertamente. Quase todos os jogadores estão nas mãos de outras pessoas.
A possível adesão de clubes a ligas controversas não pode causar uma dissidência? No Manchester United, por exemplo, em 2005 um grupo de torcedores criou o F.C. United of Manchester.
Esses times são muito tradicionais e fortes no futebol. Por causa disso e da estabilidade que eles têm, é difícil demais criar um outro clube capaz de tirar esse prestígio. Se voltarmos no tempo em cem anos, é difícil imaginar qual tipo de empresa está aberta daquela época até hoje. Muitas empresas grandes desapareceram nesse tempo. Mas no futebol, não. Temos clubes estáveis e que sabem passar por diferentes eras.
Simon Kuper, Escritor
Como fazer o futebol ser mais lucrativo?
Nós sabemos que no Brasil os clubes sempre tiveram dívidas e alguns até foram à falência. Mas são recriados. Um time de futebol nada mais é do que ter uma camisa e um nome. Um exemplo: se o Flamengo for à falência, você recria um Flamengo amanhã de manhã com as mesmas cores e terá a mesma torcida. Se você analisar os clubes mais antigos da Inglaterra, os quase os mesmos que existiam em 1921 continuam existindo hoje. Os clubes sobrevivem a todas as recessões, crises, suportaram tudo. Vale lembrar do exemplo da Fiorentina, na Itália. O clube faliu e voltou.
Muitos dirigentes falam da importância de se dirigir um clube como se fosse uma empresa. Por que isso é tão difícil de se concretizar?
Porque as pessoas dos clubes e a mídia não estão interessados em processos. Se você está em uma companhia, você tem de obter lucro e resultados para se manter. No futebol, a imprensa, a torcida, os jogadores e os dirigentes não se importam se vai ter lucro. Se você vende um jogador por 50 milhões de euros, o clube pode considerar que teve essa quantia como lucro, certo? Mas não. A torcida e a mídia vão querer que esses 50 milhões de euros sejam gastos em reforços. A cultura é de gastar todo centavo que tiver em jogadores, porque quanto mais você gastar, mais você terá atletas de qualidades e mais poderá vencer. É impossível afastar o dinheiro do futebol.
Simon Kuper, Escritor
Nos últimos anos, empresas como Red Bull e o City Football Group adquiriram e montaram vários clubes pelo mundo comandados pelos mesmos donos. Como você vê esse processo?
A lógica do Red Bull não faz isso para ter lucro. Faz como propaganda. Você quase não vê a marca deles em ações publicitárias na TV, mas sim associada a eventos esportivos e a times. É um tipo de marketing. No caso do City Football Group, eles compraram um time no Uruguai, onde é barato. É importante relembrar o quanto o futebol traz fama. Você pode ser um bilionário, mas ninguém se importa com isso. A partir do momento que você compra um time de futebol, todo mundo sabe quem você é.
É possível apostar que um dia o futebol terá gestão 100% profissional?
Na Europa isso tem melhorado nos últimos dez anos. Porém, quando alguém assume o clube, recebe uma herança do passado financeiro. Muitas vezes você tem na diretoria ex-jogadores e outras pessoas que trazem para o comando seus amigos. O processo de seleção é muito ruim. E você pode manter o negócio dessa maneira porque o clube não vai falir. Você pode assumir o Flamengo e fazer uma má gestão que continuará sendo o Flamengo. O clube sempre existirá. Agora, se você tiver um mercado e não cuidar da gestão, ele vai fechar.
A pandemia e a Superliga deixam algum legado de aprendizado?
Eu acho que a Superliga será abandonada por algum tempo, o que é de certa um aprendizado. Futebol envolve negócios com direitos de transmissão e também com o segmento de eventos, como um teatro ou um concerto musical. O coronavírus matou esse segmento de eventos ao vivo. E com certeza isso vai acabar, é temporário. Isso não vai afetar a forma como é operado o negócio do futebol. Isso vai voltar ao normal.