A escalada de violência no futebol brasileiro, com oito mortes registradas desde o início de 2023, sendo a mais recente e de maior repercussão a de Gabriela Anelli Marchiano, jovem de 23 anos que perdeu a vida graças a estilhaços de vidro de uma garrafa atirada em direção a palmeirenses no último sábado, pode ser explicada pela impunidade. Mas, na opinião de Silvio Ricardo da Silva, professor e pesquisador do tema, a ausência de punições severas não é a única razão para que proliferem episódios de brutalidade no futebol brasileiro.
“Desde a década de 1910 existem brigas nos estádios, sempre aconteceu. Tem vários fatores que explicam, entre eles a masculinidade tóxica e o incentivo de atores importantes, como a mídia. Os erros gravíssimos da polícia e a falência das instituições que guiam formação dos jovens também contribuem”, argumenta Sílvio Ricardo, coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcida (GEFuT) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Estudos do Futebol Brasileiro.
O pesquisador aponta o despreparo da polícia para fazer a segurança dos torcedores, a criminalização das torcidas organizadas, a ausência de diálogo dos clubes com as uniformizadas, a inércia dos atletas e a elitização dos estádios como causas do recrudescimento da violência no futebol nacional, dentro e fora dos estádios.
Para o educador, é necessário criar um pacto nacional para discutir o tema que, segundo ele, é debatido de forma rasa e deveria ser conversado nas escolas. “A CBF até que mudou o padrão, mas poderia patrocinar um trabalho de educação nas escolas, debater o tema, estabelecer materiais didáticos. As pessoas só pensam na punição. O cara que briga e mata tem que ser punido exemplarmente, mas não é só isso.”
Desde janeiro deste ano, foram registradas ao menos oito mortes de torcedores em arredores de estádios de futebol. Por quê? Trata-se de apenas impunidade e descaso das autoridades ou tem algo mais?
Não dá pra dizer que é somente impunidade. Tem algo mais. É uma tema extremamente complexo. Desde a década de 1910 existem brigas nos estádios, sempre aconteceu. Tem vários fatores que explicam, entre eles a masculinidade tóxica e o incentivo de atores importantes, como a mídia. Os erros gravíssimos da polícia e a falência das instituições que guiam formação dos jovens também contribuem.
As pessoas são presas muitas vezes, mas logo logo estão soltas. Há uma outra questão: as torcidas organizadas são diversas. Muitos grupos se envolvem em conflitos, mas muitos não, e a mídia só enfatiza, só da visibilidade à questão da violência. Não há visibilidade para a festa dos torcedores. Existe, sim, o agressor que busca visibilidade social pelo mau feito, que é a violência. Punir as torcidas organizadas como um todo também está errado. Quem tem de ser punido é o sujeito, senão a torcida fica sendo jogada à marginalidade.
Uma outra questão é que apostaram erradamente com esses megaeventos - Copa do Mundo e Olimpíada - na transformação dos nosso principais estádios em arenas e expulsaram os torcedores mais pobres. Apostaram que isso ia diminuir a violência. Na verdade, hoje você vê conflitos dentro dos estádios. No Mineirão tem brigas em camarotes, no Maracanã tem seguranças batendo nos torcedores.
Quais os caminhos para coibir ou ao menos diminuir o número de episódios violentos e mortes relacionadas ao futebol?
Precisamos de várias coisas. Uma delas é uma polícia bem preparada e que dialogue com os torcedores. A polícia não ouve nada dos torcedores, só diz o que tem que ser feito. Na maioria das praças, o torcedor é extremamente desrespeitado. É fundamental uma polícia preparada especificamente para esses eventos. E a condição é estadual, mas a discussão tem que ser nacionalizada. O Ministério do Esporte, por meio da Secretaria Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor está tentando fazer isso. Vejo que estão chamando a Anatorg para o diálogo. Existe gente comprometida lá dentro.
A segunda coisa é um pacto nacional para parar de perseguir as torcidas organizadas e dar a elas um protagonismo positivo. Tem de falar da história deles para que eles mesmos tenham uma outra visão da sociedade e entendam que possam ser reconhecidos pelo bem feito também, não só pelo mal feito.
É preciso um projeto nacional de educação para torcer. Insisto nisso há muito tempo. Vejo como fundamental ter isso no currículo dos alunos porque quando você joga esse pessoal na marginalidade, só reforça a violência. Há inúmeras torcidas, coletivos, movimentos organizados para torcer que não têm como pauta a violência. Inclusive encabeçam movimentos muito interessantes, como a inclusão no futebol, o combate à homofobia. Mas é preciso um pacto nacional porque se o assunto continuar sendo tratado em âmbito estadual é ruim porque são políticas diferentes. São necessárias diretrizes para engatar ações a curto, médio e longo prazo, num processo de consciência.
Existe um modelo de segurança implantado em algum país que possa servir de exemplo ao Brasil?
A Alemanha é um grande exemplo. O meu colega, Felipe Lopes, viajou pra lá, e viu em detalhes o que tem lá. Os alemães têm duas coisas muito importantes lá: uma polícia específica para eventos esportivos e um diálogo proximidade das torcidas organizadas, os chamados ultras. Não é habitual ver casos de violência na Alemanha e os estádios estão sempre cheios.
O delegado César Saad, que investiga o caso, diz que está cada vez mais difícil não defender a torcida única em clássicos também nacionais. Essa medida, implementada em clássicos em São Paulo, tem efetividade, na sua opinião?
A torcida única não adiantou nada porque os torcedores brigam fora do controle da polícia, em outras praças, longe dos estádios. Essas questões rasas e espetaculosas têm que ser minimizadas. Querem tirar organizada do estádio, não deixam entrar com camisa, bandeira. O futebol está morrendo e os conflitos vão continuar existindo. A torcida organizada é um bem cultural.
A Polícia Civil de São Paulo e a PM dizem hoje que tem capacidade de investigar e, em alguns casos, prevenir emboscadas e brigas. As forças de segurança estão preparadas, na sua opinião?
A polícia é despreparada. Precisa se preparar. Vejo que existe um ódio desse grupo em relação aos torcedores, principalmente pobres e pretos. Tem que haver um grupo treinado pra trabalhar nos estádios. Existem alguns poucos batalhões em alguns lugares, mas o diálogo é pífio. Entra um comandante, depois ele sai e os caras desaprendem. Eu vejo a necessidade de a discussão ser nacionalizada para que possamos ter a curto, médio e longo prazo ações para combater a violência. Não é retirando, prendendo meia dúzia, que vai resolver.
Qual a responsabilidade e o papel dos clubes nesses casos de violência?
Eles se eximem de responsabilidade. Infelizmente, nosso futebol ainda é comandado pelas elites, que têm pouco compromisso com as camadas populares. Mas está todo mundo perdendo com isso. Os clubes poderiam auxiliar bastante na relação com as torcidas. Trazer as torcidas para o diálogo, dar a esses torcedores protagonismo positivo, mostrar o trabalho que fazem pelo clube. A CBF até que mudou o padrão, mas poderia patrocinar um trabalho de educação nas escolas, debater o tema, estabelecer materiais didáticos. As pessoas só pensam na punição. O cara que briga e mata tem que ser punido exemplarmente, mas não é só isso.
A inércia dos jogadores atrapalha nesse processo?
O jogador hoje é uma empresa, uma empresa administrada por vários atores, desde o cara que escreve o texto na rede social até o que cuida da imagem dele. Infelizmente, eles têm um nível sociocultural muito baixo. São poucos os que se posicionam. Antigamente tínhamos Afonsinho, Sócrates, Reinaldo. De uma maneira geral, os caras reforçam todos os problemas no futebol, reforçam a sociedade do consumo. A base dos clubes deveria se preocupar com a formação do jogador. Vamos continuar tendo inúmeros casos senão tratarmos o problema na raiz.