O reconhecimento facial chegou há pouco tempo nos estádios brasileiros, mas já foi fortemente disseminado. Após as primeiras experiências, lideradas por Goiás e Palmeiras, a tecnologia já está presente em mais da metade das arenas de times que disputam a Série A do Brasileirão em 2024. Depois dos bons resultados alcançados pelos pioneiros, o recurso foi aderido por Athletico-PR, Atlético-MG, Bahia, Botafogo, Cuiabá, Flamengo, Grêmio, Internacional, Vasco e Vitória. Agilidade, segurança e combate ao cambismo são os principais pontos que levam os clubes e administradores de estádios a procurarem a biometria facial.
“O reconhecimento facial proporciona um acesso mais rápido e prático, garante maior segurança adicional e personaliza interações. Com isso, eleva-se o conforto e a conveniência dos fãs”, destaca Vitor Roma, CEO da keeggo, consultoria de tecnologia. “O acesso ao estádio por meio das opções tecnológicas levam segurança e diminuem os gastos. Além disso, por meio de dados automáticos, que trazem benefícios para os clubes e os administradores dos estádios, há uma contribuição para o combate à violência”, acrescenta Renê Salviano, especialista em gestão esportiva e CEO da Heatmap.
Mais do que isso, ter tal tecnologia à disposição será uma obrigação legal em breve. Conforme determinado pela nova Lei Geral do Esporte, a partir de 2025, estádios com capacidade para mais de 20 mil pessoas terão de implementar o reconhecimento facial para receber jogos. “Com certeza, a tecnologia nos traz essa tranquilidade do atendimento à legislação, além de uma segurança interna que a gente faz pela nossa Central de Comando e Operações (CCO) do Estádio Beira-Rio”, comenta Victor Grunberg, vice-presidente do Internacional, que começou a implementar o sistema neste ano.
No Rio, o Maracanã já está equipado com a tecnologia, mas apenas o Flamengo iniciou a implementação, que envolve o cadastro prévio da biometria facial dos torcedores. O Fluminense, que também usa o estádio, ainda não deu início ao plano. O pioneiro entre os cariocas foi o Vasco, adepto do reconhecimento facial em São Januário desde setembro do ano passado. Já o Botafogo anunciou, em março, o início do cadastro do rosto dos torcedores para acesso ao Engenhão.
“Os times e as companhias estão iniciando o processo de implementação de novas tecnologias para tornar a experiência do torcedor ainda melhor, tanto nos estádios, quanto em outras plataformas. Sem dúvidas, este é só o início de uma ampla trajetória, em que todos os envolvidos serão beneficiados”, diz Henrique Borges, CEO da Somos Young, companhia que utiliza tecnologia para fazer o relacionamento do programa de sócio-torcedores de clubes como Cruzeiro, Vasco e Bahia.
No Rio Grande do Sul, a dupla Gre-Nal também se movimentou para atender à nova demanda. O Grêmio começou os testes em outubro de 2023 em sua Arena e já adota sistema de biometria no acesso à Arquibancada Norte, enquanto o Internacional inaugurou a operação em fevereiro, durante confronto com o Brasil de Pelotas, em jogo do Campeonato Gaúcho.
Os dois clubes desenvolveram seus respectivos sistemas com a Imply, empresa de controle de acessos que também implementou a tecnologia na Arena MRV, na Ilha do Retiro, na Ligga Arena, na Arena Independência e em São Januário.
“O reconhecimento facial tem sido um divisor de águas para a inovação dos clubes brasileiros. Essa tecnologia de última geração contribui para que os torcedores tenham uma experiência de acesso mais rápida e conveniente. É possível acessar somente com o rosto, sem precisar carregar mídias físicas ou cartões, e a validação acontece em menos de um segundo”, afirma Tironi Paz Ortiz, CEO Fundador da Imply.
Foi no Centro-Oeste que se desenrolou a primeira experiência de um clube da Série A com biometria facial, realizada em 2022 pelo Goiás, hoje na Série B. Além do Esmeraldino, o Cuiabá é outro clube da região que aprova a implementação do sistema. “A instalação desse sistema é mais um passo na modernização e estruturação do clube. Estamos evoluindo cada vez mais e buscando nos enquadrar em todas as exigências legais, tanto governamentais quanto das entidades que regem o nosso futebol. Ficamos muito satisfeitos com os testes realizados”, comenta Cristiano Dresch, presidente do Dourado.
Clubes do nordeste também já estão se adaptando. Além do Vitória, na Série A, o Sport começou seus testes da nova tecnologia na reta final da Série B do ano passado e planeja implementar a técnologia de forma integral na Ilha do Retiro em 2024.
“O sistema foi bem aceito pelo torcedor e o atendimento foi mais ágil e seguro. Nossa intenção é garantir segurança no estádio e comodidade para o torcedor, além de garantir eficiência na operação do jogo. O uso do sistema de reconhecimento facial também é uma forma de coibir o cambismo, já que a compra do ingresso só será feita através do rosto do fã. Portanto, o bilhete é intransferível, conclui o presidente do Sport”, afirma Yuri Romão, presidente do Rubro-Negro
Tecnologia de reconhecimento gera debate sobre discriminação
No Allianz Parque, a utilidade do sistema foi além de identificar infrações cometidas dentro do estádio. Entre janeiro de 2023 e janeiro de 2024, o reconhecimento do estádio identificou 48 procuradas pela Justiça, das quais 39 foram presas ao tentarem acessar a arena.
Apesar dos avanços na implementação da tecnologia, um caso recente chamou a atenção das autoridades. O personal trainer João Antônio Trindade Bastos, de 23 anos, foi algemado e detido por policiais na frente de milhares de pessoas nas arquibancadas da Arena Batistão, em Aracaju, durante a final do Campeonato Sergipano, entre Confiança e Sergipe. O reconhecimento facial indicou que ele poderia ser um criminoso.
O homem, que é negro, relatou o constrangimento em uma publicação nas redes sociais, afirmando ter chorado durante a prisão. Após o episódio, o governador Fábio Mitidieri (PSD) pediu desculpas ao torcedor e mandou suspender o uso da tecnologia até a implementação de novos protocolos.
De acordo com Raquel Sousa, Mestre e doutoranda em Ciências Sociais pelo programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Uerj e Integrante do Laboratório de Análises da Violência (LAV/Uerj) e do Observatório da Violência e Convivência no Futebol, uma das problemas da utilização da tecnologia está em uma alta taxa de erro com pessoas negras.
“A ausência de regulamentação para a aplicação da tecnologia e a falta de diretrizes para a ação policial em casos de reconhecimento são os pontos que refletem diretamente sobre o torcedor,” diz a especialista. “Devido ao grande número de erros, deve ser necessária a melhora na tecnologia e uma ação policial menos chamativa possível, para evitar constrangimentos e ação difamatória.”
Segundo a pesquisa “Gender Shades”, conduzida por pesquisadoras do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e da Microsoft, algoritmos de reconhecimento facial baseados em machine learning podem discriminar pessoas baseado em gênero e raça. Os resultados mostraram que a taxa de erros para mulheres negras chegou a 34,7%, enquanto o erro máximo para homens brancos foi de 0,8%.
Tironi Paz Ortiz, CEO Fundador da Imply, reconhece que há questões a serem debatidas sobre a biometria facial e aponta procedimentos para que erros graves como o ocorrido no Batistão não se repitam. “Casos como o de João Antônio, erroneamente identificado como foragido da Justiça, levantam questões importantes sobre preconceito algorítmico e identificações errôneas com falos positivos em sistemas de reconhecimento facial”, afirma.
“É essencial que os clubes e estádios estabeleçam tecnologias e procedimentos adequados para minimizar o risco de identificações errôneas e prevenir incidentes similares, garantindo que o processo seja eficiente e justo, e que os direitos dos torcedores sejam preservados em todas as etapas. Isso inclui a análise detalhada destes para identificar a verdadeira causa, considerando fatores como a qualidade da foto de cadastro, a precisão do algoritmo de reconhecimento e a eficiências do processo como um todo, desde a coleta de dados até as ações tomadas após o reconhecimento”, conclui.