Sem fuga e confusão: os dias em que Palmeiras e Corinthians treinaram no presídio do Carandiru


Elenco alvinegro esteve na Casa de Detenção de São Paulo em 1971, com Rivellino; o Alviverde fez visita em 1984, sob om comando de Emerson Leão

Por Dani Blaschkauer
Atualização:

Você consegue imaginar os elencos de Corinthians e Palmeiras sendo recebidos dentro da maior prisão de São Paulo para jogar uma partida de futebol? A cena não é imaginação e poderia ter figurado como uma “cultura de bem-estar”, denominação para apresentações de artistas como Raul Gil e Sérgio Reis, que só ocorriam, porém, no complexo penitenciário paulistano em datas festivas como Dia das Mães e Natal, quando até parentes dos presos podiam estar presentes. Não foi o caso dos clubes rivais. Os treinos aconteceram em dias diferentes no Carandiru.

Condenado por mais de 351 anos por quatro assassinatos, sete tentativas de homicídio e mais de 70 assaltos, um dos maiores criminosos do Brasil, que viu sua história parar nas telas do cinema, foi um dos anfitriões de uma dessas visitas. Astro da Penitenciária do Estado de São Paulo, o Bandido da Luz Vermelha foi o responsável por receber os jogadores do Corinthians. A visita do elenco, em setembro de 1971, teve a liderança do tricampeão mundial Rivellino, quando o time ainda amargava o seu maior jejum de títulos. Treze anos depois, quem também foi ao campo da penitenciária no Carandiru, zona norte de São Paulo, foi o elenco do Palmeiras, do goleiro Emerson Leão e do ponta Mário Sérgio. O Estadão resgatou essa história e ouviu alguns dos personagens da época.

Corinthians e Palmeiras tiveram chance de treinar no Carandiru Foto: Heitor Hui/AE
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Diante dos detentos, um time misto do Corinthians entrou no campo da penitenciária para enfrentar os presidiários. Sem seus principais nomes, o Alvinegro goleou por 7 a 1, com três gols de Sérgio, dois de Crespo e dois de Gatão. E isso porque a torcida local estava colada nas linhas de demarcação do campo, um terrão bem surrado perto do antigo Pavilhão 8 do complexo.

Mas todos “ficaram de Juca”, “na manha”, “nadaram de braçada”, para usar as gírias de dentro das celas. Quem se lembra bem do episódio é Lindoia, então um recém-contratado pelo Corinthians, com apenas 18 anos. “Era um negócio estranho. A gente caía por cima deles lá, era constrangedor. Mas eles ficavam quietinhos, só falavam algo se alguém tomava um drible. Eles ficavam ali do lado, mas respeitavam porque sabiam que se desse algo errado, não ia ter mais jogadores por lá”, lembra o ponta-direita.

Lindoia conta que o policiamento era quase que o mesmo, sem a necessidade de reforço. “Só tinha segurança interna. Quem promovia esses treinos e jogos era o (técnico) Baltazar, amigo do pessoal do presídio”, conta o ex-jogador corintiano. Baltazar (que morreu em 1997) foi o segundo maior artilheiro da história do Corinthians, com 269 gols (71 de cabeça), em 404 jogos. Após encerrar a carreira, ele virou carcereiro. Era chamado de “Cabecinha de Ouro”.

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Aquele jogo não só terminou sem incidentes, conforme recordou Lindoia, corroborando com as reportagens dos principais jornais da época, como os presidiários puderam pedir autógrafos, tentar pegar o uniforme dos atletas, fazer entrevistas para o jornal interno do presídio e enviar cartas. Em uma dessas cartas, um preso pedia um violão de presente ao craque Rivellino. Hoje, mais de 50 anos depois, o então camisa 10 do Corinthians, porém, disse não se recordar daquele momento. “Já faz tempo, né? Mas o Lindoia deve ter boas histórias para contar”, disse Rivellino, por telefone, à reportagem.

Os detentos aproveitaram a ocasião para entregar uma carta com dois pedidos para ser encaminhada à direção da penitenciária pedindo perdão aos presos que estavam na solitária e que fossem devolvidos os radinhos de pilha da moçada, uma das poucas diversão do local. “Quando acabou o treino, eles queriam a nossa camisa. Mas eram tantos, que a gente só tirava a camisa do corpo e pronto, ela sumia na multidão. Nem escolhia para quem dar”, recorda Lindoia.

Como agradecimento, a direção e os presos ofereceram um coquetel aos atletas corintianos. A cereja do bolo (tanto para jogadores quanto para presidiários) foi quando Rivellino contou que queria conhecer o Bandido da Luz Vermelha, conforme relatou Lindoia. Mais do que um preso, José Acácio Pereira da Rocha era uma celebridade do crime. Por anos, o assassino, que ganhou a alcunha por segurar uma lanterna com uma luz vermelha enquanto cometia os crimes, aterrorizou São Paulo. Foi na década de 1960. Como astro das quatro enormes muralhas do Carandiru, ele fez e entregou um cordão preto e branco para Lindoia. “Eles faziam esses cordões lá dentro, vinha com um crucifixo. Guardei por bastante tempo, mas depois não sei o que fiz com ele”, diz o ex-jogador.

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Pedido do livro “Papillon”

Lindoia ganhou atenção especial do Bandido da Luz Vermelha porque foi quem mais fez perguntas sobre a vida dele na prisão e sobre seus os crimes. “Depois, chegamos a trocar cartas. Até ele pedir o livro “Papillon”. Aí o diretor disse que não ia poder dar o livro e falou que era melhor eu parar de manter contato com ele, porque não era gente boa”, recorda. “Papillon” é a história de um bandido condenado à prisão perpétua por um assassinato que não cometeu e que só pensa em fugir da penitenciária.

Porta-voz dos presidiários, o Bandido da Luz Vermelha ainda desejou a Rivellino para que se transformasse no “novo rei do futebol, o sucessor de Pelé”. Ainda segundo relatos da imprensa da época, o então camisa 10 do Corinthians agradeceu e foi o responsável em entregar a carta dos pedidos ao diretor da penitenciária Fernando José Fernandes. “Depois, parece que ele foi transferido para (o Manicômio Judiciário) Franco da Rocha e nunca mais tive contato”.

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Estadão publicou uma matéria sobre visita do Palmeiras ao Carandiru na edição de 3 de agosto de 1984 Foto: Acervo / Estadão

PALMEIRAS TEM DIA PARECIDO DEZ ANOS DEPOIS

Se em 2024 o Brasil tem uma crise em prisão de segurança máxima, em agosto de 1984 a situação não era tão diferente na capital paulista. Um mês após uma fuga de sete presos por um túnel feito a partir da capela da Penitenciária do Estado e a polícia ter encontrado dezenas de facas no local, foi a vez de o elenco do Palmeiras treinar (isso mesmo, treinar!) no “razoável” campo da prisão. A equipe alviverde fez um coletivo na antevéspera de um duelo com o Santos.

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“Solidariedade humana”, explicou o então técnico palmeirense Mário Travaglini, que atendeu ao pedido do diretor do presídio Alberto Angerami, que respondia a um governo (militar) que ainda tentava negar a existência de um grupo organizado dentro da Casa de Detenção chamado Serpentes Negras.

Com Emerson Leão no gol e Mário Sérgio no ataque, os palmeirenses treinaram por 40 minutos (a chuva antecipou o término) no terrão do Carandiru. Somente no final, os presidiários se aproximaram dos atletas, pediram autógrafo e roupas e também entregaram uma carta para ser dada à direção do complexo penitenciário.

Em um “razoável gramado sem alambrado”, conforme registro do Estadão, e tomado nas laterais por centenas de espectadores. Travaglini comandou o coletivo com direito a ter torcida contra, mas sempre “na manha”. Os não palmeirenses vibravam com os lances da equipe reserva e fizeram várias provocações ao goleiro Emerson Leão. “Fomos bem recebidos, passamos por todas aquelas grades do Carandiru, quando ele ainda existia. Os detentos nos respeitaram muito, muito mesmo”, lembrou Leão. “No fim do treino, eles vinham tocar na gente, pegar a camisa, o short, tudo”. Menos a luva.

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“Teve um que chegou brincando dizendo: ‘me passa a luva’. Eu disse: ‘a luva não, não mesmo’”, conta o ex-goleiro, rindo. “A luva era o meu principal instrumento de trabalho e não tinha patrocinador que mandava mais. Eu era goleiro da seleção e a minha luva era importada. Podia ficar com a cueca, mas a luva, não”, contou Leão, por telefone à reportagem. Leão foi um dos mais empáticos. Foi o próprio goleiro que entregou a carta de reivindicações dos presos. Entre os pedidos, eles queriam poder jogar futebol não somente aos sábados e ter permissão, novamente, para ouvir o radinho até mais tarde da noite. “Cheguei até a voltar uma outra vez a pedido do Nelson (zagueiro do Palmeiras), que tinha um irmão lá. Ele até deu um cheque para a gente ir, mas o cheque era fajuto. A gente deu muita risada por causa disso”, recorda.

Como aconteceu com os corintianos nos anos 70, após o coletivo, os jogadores do Palmeiras ganharam salgadinhos e laranjada no coquetel dentro do Carandiru.

Visita do Palmeiras ao Carandiru em 1984 Foto: Acervo/Estadão

Você consegue imaginar os elencos de Corinthians e Palmeiras sendo recebidos dentro da maior prisão de São Paulo para jogar uma partida de futebol? A cena não é imaginação e poderia ter figurado como uma “cultura de bem-estar”, denominação para apresentações de artistas como Raul Gil e Sérgio Reis, que só ocorriam, porém, no complexo penitenciário paulistano em datas festivas como Dia das Mães e Natal, quando até parentes dos presos podiam estar presentes. Não foi o caso dos clubes rivais. Os treinos aconteceram em dias diferentes no Carandiru.

Condenado por mais de 351 anos por quatro assassinatos, sete tentativas de homicídio e mais de 70 assaltos, um dos maiores criminosos do Brasil, que viu sua história parar nas telas do cinema, foi um dos anfitriões de uma dessas visitas. Astro da Penitenciária do Estado de São Paulo, o Bandido da Luz Vermelha foi o responsável por receber os jogadores do Corinthians. A visita do elenco, em setembro de 1971, teve a liderança do tricampeão mundial Rivellino, quando o time ainda amargava o seu maior jejum de títulos. Treze anos depois, quem também foi ao campo da penitenciária no Carandiru, zona norte de São Paulo, foi o elenco do Palmeiras, do goleiro Emerson Leão e do ponta Mário Sérgio. O Estadão resgatou essa história e ouviu alguns dos personagens da época.

Corinthians e Palmeiras tiveram chance de treinar no Carandiru Foto: Heitor Hui/AE

Diante dos detentos, um time misto do Corinthians entrou no campo da penitenciária para enfrentar os presidiários. Sem seus principais nomes, o Alvinegro goleou por 7 a 1, com três gols de Sérgio, dois de Crespo e dois de Gatão. E isso porque a torcida local estava colada nas linhas de demarcação do campo, um terrão bem surrado perto do antigo Pavilhão 8 do complexo.

Mas todos “ficaram de Juca”, “na manha”, “nadaram de braçada”, para usar as gírias de dentro das celas. Quem se lembra bem do episódio é Lindoia, então um recém-contratado pelo Corinthians, com apenas 18 anos. “Era um negócio estranho. A gente caía por cima deles lá, era constrangedor. Mas eles ficavam quietinhos, só falavam algo se alguém tomava um drible. Eles ficavam ali do lado, mas respeitavam porque sabiam que se desse algo errado, não ia ter mais jogadores por lá”, lembra o ponta-direita.

Lindoia conta que o policiamento era quase que o mesmo, sem a necessidade de reforço. “Só tinha segurança interna. Quem promovia esses treinos e jogos era o (técnico) Baltazar, amigo do pessoal do presídio”, conta o ex-jogador corintiano. Baltazar (que morreu em 1997) foi o segundo maior artilheiro da história do Corinthians, com 269 gols (71 de cabeça), em 404 jogos. Após encerrar a carreira, ele virou carcereiro. Era chamado de “Cabecinha de Ouro”.

Aquele jogo não só terminou sem incidentes, conforme recordou Lindoia, corroborando com as reportagens dos principais jornais da época, como os presidiários puderam pedir autógrafos, tentar pegar o uniforme dos atletas, fazer entrevistas para o jornal interno do presídio e enviar cartas. Em uma dessas cartas, um preso pedia um violão de presente ao craque Rivellino. Hoje, mais de 50 anos depois, o então camisa 10 do Corinthians, porém, disse não se recordar daquele momento. “Já faz tempo, né? Mas o Lindoia deve ter boas histórias para contar”, disse Rivellino, por telefone, à reportagem.

Os detentos aproveitaram a ocasião para entregar uma carta com dois pedidos para ser encaminhada à direção da penitenciária pedindo perdão aos presos que estavam na solitária e que fossem devolvidos os radinhos de pilha da moçada, uma das poucas diversão do local. “Quando acabou o treino, eles queriam a nossa camisa. Mas eram tantos, que a gente só tirava a camisa do corpo e pronto, ela sumia na multidão. Nem escolhia para quem dar”, recorda Lindoia.

Como agradecimento, a direção e os presos ofereceram um coquetel aos atletas corintianos. A cereja do bolo (tanto para jogadores quanto para presidiários) foi quando Rivellino contou que queria conhecer o Bandido da Luz Vermelha, conforme relatou Lindoia. Mais do que um preso, José Acácio Pereira da Rocha era uma celebridade do crime. Por anos, o assassino, que ganhou a alcunha por segurar uma lanterna com uma luz vermelha enquanto cometia os crimes, aterrorizou São Paulo. Foi na década de 1960. Como astro das quatro enormes muralhas do Carandiru, ele fez e entregou um cordão preto e branco para Lindoia. “Eles faziam esses cordões lá dentro, vinha com um crucifixo. Guardei por bastante tempo, mas depois não sei o que fiz com ele”, diz o ex-jogador.

Pedido do livro “Papillon”

Lindoia ganhou atenção especial do Bandido da Luz Vermelha porque foi quem mais fez perguntas sobre a vida dele na prisão e sobre seus os crimes. “Depois, chegamos a trocar cartas. Até ele pedir o livro “Papillon”. Aí o diretor disse que não ia poder dar o livro e falou que era melhor eu parar de manter contato com ele, porque não era gente boa”, recorda. “Papillon” é a história de um bandido condenado à prisão perpétua por um assassinato que não cometeu e que só pensa em fugir da penitenciária.

Porta-voz dos presidiários, o Bandido da Luz Vermelha ainda desejou a Rivellino para que se transformasse no “novo rei do futebol, o sucessor de Pelé”. Ainda segundo relatos da imprensa da época, o então camisa 10 do Corinthians agradeceu e foi o responsável em entregar a carta dos pedidos ao diretor da penitenciária Fernando José Fernandes. “Depois, parece que ele foi transferido para (o Manicômio Judiciário) Franco da Rocha e nunca mais tive contato”.

Estadão publicou uma matéria sobre visita do Palmeiras ao Carandiru na edição de 3 de agosto de 1984 Foto: Acervo / Estadão

PALMEIRAS TEM DIA PARECIDO DEZ ANOS DEPOIS

Se em 2024 o Brasil tem uma crise em prisão de segurança máxima, em agosto de 1984 a situação não era tão diferente na capital paulista. Um mês após uma fuga de sete presos por um túnel feito a partir da capela da Penitenciária do Estado e a polícia ter encontrado dezenas de facas no local, foi a vez de o elenco do Palmeiras treinar (isso mesmo, treinar!) no “razoável” campo da prisão. A equipe alviverde fez um coletivo na antevéspera de um duelo com o Santos.

“Solidariedade humana”, explicou o então técnico palmeirense Mário Travaglini, que atendeu ao pedido do diretor do presídio Alberto Angerami, que respondia a um governo (militar) que ainda tentava negar a existência de um grupo organizado dentro da Casa de Detenção chamado Serpentes Negras.

Com Emerson Leão no gol e Mário Sérgio no ataque, os palmeirenses treinaram por 40 minutos (a chuva antecipou o término) no terrão do Carandiru. Somente no final, os presidiários se aproximaram dos atletas, pediram autógrafo e roupas e também entregaram uma carta para ser dada à direção do complexo penitenciário.

Em um “razoável gramado sem alambrado”, conforme registro do Estadão, e tomado nas laterais por centenas de espectadores. Travaglini comandou o coletivo com direito a ter torcida contra, mas sempre “na manha”. Os não palmeirenses vibravam com os lances da equipe reserva e fizeram várias provocações ao goleiro Emerson Leão. “Fomos bem recebidos, passamos por todas aquelas grades do Carandiru, quando ele ainda existia. Os detentos nos respeitaram muito, muito mesmo”, lembrou Leão. “No fim do treino, eles vinham tocar na gente, pegar a camisa, o short, tudo”. Menos a luva.

“Teve um que chegou brincando dizendo: ‘me passa a luva’. Eu disse: ‘a luva não, não mesmo’”, conta o ex-goleiro, rindo. “A luva era o meu principal instrumento de trabalho e não tinha patrocinador que mandava mais. Eu era goleiro da seleção e a minha luva era importada. Podia ficar com a cueca, mas a luva, não”, contou Leão, por telefone à reportagem. Leão foi um dos mais empáticos. Foi o próprio goleiro que entregou a carta de reivindicações dos presos. Entre os pedidos, eles queriam poder jogar futebol não somente aos sábados e ter permissão, novamente, para ouvir o radinho até mais tarde da noite. “Cheguei até a voltar uma outra vez a pedido do Nelson (zagueiro do Palmeiras), que tinha um irmão lá. Ele até deu um cheque para a gente ir, mas o cheque era fajuto. A gente deu muita risada por causa disso”, recorda.

Como aconteceu com os corintianos nos anos 70, após o coletivo, os jogadores do Palmeiras ganharam salgadinhos e laranjada no coquetel dentro do Carandiru.

Visita do Palmeiras ao Carandiru em 1984 Foto: Acervo/Estadão

Você consegue imaginar os elencos de Corinthians e Palmeiras sendo recebidos dentro da maior prisão de São Paulo para jogar uma partida de futebol? A cena não é imaginação e poderia ter figurado como uma “cultura de bem-estar”, denominação para apresentações de artistas como Raul Gil e Sérgio Reis, que só ocorriam, porém, no complexo penitenciário paulistano em datas festivas como Dia das Mães e Natal, quando até parentes dos presos podiam estar presentes. Não foi o caso dos clubes rivais. Os treinos aconteceram em dias diferentes no Carandiru.

Condenado por mais de 351 anos por quatro assassinatos, sete tentativas de homicídio e mais de 70 assaltos, um dos maiores criminosos do Brasil, que viu sua história parar nas telas do cinema, foi um dos anfitriões de uma dessas visitas. Astro da Penitenciária do Estado de São Paulo, o Bandido da Luz Vermelha foi o responsável por receber os jogadores do Corinthians. A visita do elenco, em setembro de 1971, teve a liderança do tricampeão mundial Rivellino, quando o time ainda amargava o seu maior jejum de títulos. Treze anos depois, quem também foi ao campo da penitenciária no Carandiru, zona norte de São Paulo, foi o elenco do Palmeiras, do goleiro Emerson Leão e do ponta Mário Sérgio. O Estadão resgatou essa história e ouviu alguns dos personagens da época.

Corinthians e Palmeiras tiveram chance de treinar no Carandiru Foto: Heitor Hui/AE

Diante dos detentos, um time misto do Corinthians entrou no campo da penitenciária para enfrentar os presidiários. Sem seus principais nomes, o Alvinegro goleou por 7 a 1, com três gols de Sérgio, dois de Crespo e dois de Gatão. E isso porque a torcida local estava colada nas linhas de demarcação do campo, um terrão bem surrado perto do antigo Pavilhão 8 do complexo.

Mas todos “ficaram de Juca”, “na manha”, “nadaram de braçada”, para usar as gírias de dentro das celas. Quem se lembra bem do episódio é Lindoia, então um recém-contratado pelo Corinthians, com apenas 18 anos. “Era um negócio estranho. A gente caía por cima deles lá, era constrangedor. Mas eles ficavam quietinhos, só falavam algo se alguém tomava um drible. Eles ficavam ali do lado, mas respeitavam porque sabiam que se desse algo errado, não ia ter mais jogadores por lá”, lembra o ponta-direita.

Lindoia conta que o policiamento era quase que o mesmo, sem a necessidade de reforço. “Só tinha segurança interna. Quem promovia esses treinos e jogos era o (técnico) Baltazar, amigo do pessoal do presídio”, conta o ex-jogador corintiano. Baltazar (que morreu em 1997) foi o segundo maior artilheiro da história do Corinthians, com 269 gols (71 de cabeça), em 404 jogos. Após encerrar a carreira, ele virou carcereiro. Era chamado de “Cabecinha de Ouro”.

Aquele jogo não só terminou sem incidentes, conforme recordou Lindoia, corroborando com as reportagens dos principais jornais da época, como os presidiários puderam pedir autógrafos, tentar pegar o uniforme dos atletas, fazer entrevistas para o jornal interno do presídio e enviar cartas. Em uma dessas cartas, um preso pedia um violão de presente ao craque Rivellino. Hoje, mais de 50 anos depois, o então camisa 10 do Corinthians, porém, disse não se recordar daquele momento. “Já faz tempo, né? Mas o Lindoia deve ter boas histórias para contar”, disse Rivellino, por telefone, à reportagem.

Os detentos aproveitaram a ocasião para entregar uma carta com dois pedidos para ser encaminhada à direção da penitenciária pedindo perdão aos presos que estavam na solitária e que fossem devolvidos os radinhos de pilha da moçada, uma das poucas diversão do local. “Quando acabou o treino, eles queriam a nossa camisa. Mas eram tantos, que a gente só tirava a camisa do corpo e pronto, ela sumia na multidão. Nem escolhia para quem dar”, recorda Lindoia.

Como agradecimento, a direção e os presos ofereceram um coquetel aos atletas corintianos. A cereja do bolo (tanto para jogadores quanto para presidiários) foi quando Rivellino contou que queria conhecer o Bandido da Luz Vermelha, conforme relatou Lindoia. Mais do que um preso, José Acácio Pereira da Rocha era uma celebridade do crime. Por anos, o assassino, que ganhou a alcunha por segurar uma lanterna com uma luz vermelha enquanto cometia os crimes, aterrorizou São Paulo. Foi na década de 1960. Como astro das quatro enormes muralhas do Carandiru, ele fez e entregou um cordão preto e branco para Lindoia. “Eles faziam esses cordões lá dentro, vinha com um crucifixo. Guardei por bastante tempo, mas depois não sei o que fiz com ele”, diz o ex-jogador.

Pedido do livro “Papillon”

Lindoia ganhou atenção especial do Bandido da Luz Vermelha porque foi quem mais fez perguntas sobre a vida dele na prisão e sobre seus os crimes. “Depois, chegamos a trocar cartas. Até ele pedir o livro “Papillon”. Aí o diretor disse que não ia poder dar o livro e falou que era melhor eu parar de manter contato com ele, porque não era gente boa”, recorda. “Papillon” é a história de um bandido condenado à prisão perpétua por um assassinato que não cometeu e que só pensa em fugir da penitenciária.

Porta-voz dos presidiários, o Bandido da Luz Vermelha ainda desejou a Rivellino para que se transformasse no “novo rei do futebol, o sucessor de Pelé”. Ainda segundo relatos da imprensa da época, o então camisa 10 do Corinthians agradeceu e foi o responsável em entregar a carta dos pedidos ao diretor da penitenciária Fernando José Fernandes. “Depois, parece que ele foi transferido para (o Manicômio Judiciário) Franco da Rocha e nunca mais tive contato”.

Estadão publicou uma matéria sobre visita do Palmeiras ao Carandiru na edição de 3 de agosto de 1984 Foto: Acervo / Estadão

PALMEIRAS TEM DIA PARECIDO DEZ ANOS DEPOIS

Se em 2024 o Brasil tem uma crise em prisão de segurança máxima, em agosto de 1984 a situação não era tão diferente na capital paulista. Um mês após uma fuga de sete presos por um túnel feito a partir da capela da Penitenciária do Estado e a polícia ter encontrado dezenas de facas no local, foi a vez de o elenco do Palmeiras treinar (isso mesmo, treinar!) no “razoável” campo da prisão. A equipe alviverde fez um coletivo na antevéspera de um duelo com o Santos.

“Solidariedade humana”, explicou o então técnico palmeirense Mário Travaglini, que atendeu ao pedido do diretor do presídio Alberto Angerami, que respondia a um governo (militar) que ainda tentava negar a existência de um grupo organizado dentro da Casa de Detenção chamado Serpentes Negras.

Com Emerson Leão no gol e Mário Sérgio no ataque, os palmeirenses treinaram por 40 minutos (a chuva antecipou o término) no terrão do Carandiru. Somente no final, os presidiários se aproximaram dos atletas, pediram autógrafo e roupas e também entregaram uma carta para ser dada à direção do complexo penitenciário.

Em um “razoável gramado sem alambrado”, conforme registro do Estadão, e tomado nas laterais por centenas de espectadores. Travaglini comandou o coletivo com direito a ter torcida contra, mas sempre “na manha”. Os não palmeirenses vibravam com os lances da equipe reserva e fizeram várias provocações ao goleiro Emerson Leão. “Fomos bem recebidos, passamos por todas aquelas grades do Carandiru, quando ele ainda existia. Os detentos nos respeitaram muito, muito mesmo”, lembrou Leão. “No fim do treino, eles vinham tocar na gente, pegar a camisa, o short, tudo”. Menos a luva.

“Teve um que chegou brincando dizendo: ‘me passa a luva’. Eu disse: ‘a luva não, não mesmo’”, conta o ex-goleiro, rindo. “A luva era o meu principal instrumento de trabalho e não tinha patrocinador que mandava mais. Eu era goleiro da seleção e a minha luva era importada. Podia ficar com a cueca, mas a luva, não”, contou Leão, por telefone à reportagem. Leão foi um dos mais empáticos. Foi o próprio goleiro que entregou a carta de reivindicações dos presos. Entre os pedidos, eles queriam poder jogar futebol não somente aos sábados e ter permissão, novamente, para ouvir o radinho até mais tarde da noite. “Cheguei até a voltar uma outra vez a pedido do Nelson (zagueiro do Palmeiras), que tinha um irmão lá. Ele até deu um cheque para a gente ir, mas o cheque era fajuto. A gente deu muita risada por causa disso”, recorda.

Como aconteceu com os corintianos nos anos 70, após o coletivo, os jogadores do Palmeiras ganharam salgadinhos e laranjada no coquetel dentro do Carandiru.

Visita do Palmeiras ao Carandiru em 1984 Foto: Acervo/Estadão

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