A aposentadoria dos gramados ainda está longe, mas Anderson Talisca tem um plano bem definido para quando a hora chegar. Ele não pensa em ser treinador ou dirigente, como boa parte dos atletas. A ideia do baiano de 30 anos é viver da música, ofício ao qual se dedica há seis anos sob o nome artístico Spark e há dois como dono da gravadora Nine Four Records.
Suas faixas que passeiam por gêneros como trap e R&B já chegaram até o ouvido do astro Cristiano Ronaldo, seu companheiro de clube no Al-Nassr, que prefere sertanejo e é fã de Luan Santana, mas gostou das produções. “Já mostrei, e ele gostou. De rap, ele escuta mais coisa gringa. Música brasileira é só sertanejo que ele ouve mesmo. A gente troca ideia sobre música, muito pouco, mas a gente troca”, conta Talisca ao Estadão.
A música feita pelo atacante toca no fone de outros colegas do time árabe. Ele prefere, entretanto, não misturar tanto os dois universos pelos quais transita. “Não gosto muito que fique ouvindo dentro do vestiário porque eu prezo muito pela minha arte e pelo meu trabalho. Futebol é futebol, música é música. Um dia que a gente for campeão e tal... Porque o cara vai lá, ouve minha música e depois ‘toma fumo’, vai dar motivo para diretor ficar falando, eu não gosto. Mas vejo muitos caras que ouvem no fone indo para o jogo.”
Como Spark, Talisca já gravou com artistas de sucesso, caso da parceria com o rapper L7nnon na música Felina, e lançou dois álbuns - Antes de Você Ir (2023) e Cartas Marcadas (2021) -, além de se apresentar em shows quando está de férias. Seu trabalho mais recente é o single Medusa, lançado em junho deste ano. Na atuação com a Nine Four Records, vem crescendo no cenário e assinou com Jovem Dex, um dos principais nomes do trap nacional.
Muitos jogadores brasileiros já se aventuraram pontualmente na música. Ronaldinho Gaúcho chegou a gravar com Jorge Vercillo, Marcelinho Carioca participou do grupo de pagode gospel Divina Inspiração e Gabigol se aventura no trap como Lil Gabi. Anderson Talisca, por sua vez, entende ter uma relação mais profunda com a música, que o permitiu conquistar respeito no meio.
“Com todo respeito aos atletas de futebol que curtem e querem fazer música, mas eu não faço música por hobby. Minha vida de futebol é minha vida de futebol, e minha vida de música é minha vida de música. Eu não quero atropelar os meus princípios musicalmente para alcançar o sucesso. Eu sou muito pequeno, ainda, mas estou buscando uma evolução. Faço bem feito, sei o que estou fazendo e os caras veem o que estou fazendo. É diferente de você querer brincar, fazer participação. Minha parada não é isso, até porque eu tenho uma empresa muito grande por trás e ajudo muitos artistas”, diz.
A paixão do atacante pela arte começou cedo, na Fundação de Apoio ao Menor de Feira de Santana, conhecida como Fazenda do Menor, instituição na qual teve aulas de música por meio do programa governamental Segundo Tempo. “Lá tinha capoeira, vôlei, basquete, tênis, muitas aulas pra fazer, mas a primeira que eu escolhi foi música”, relembra.
O futebol veio por influência do pai, Augusto Carlos, que foi profissional e o levava para jogar desde muito novo. O talento no campo fez o pequeno Anderson receber oportunidades de dar uma vida melhor à família, por isso a música foi ficando de lado. “Minha mãe estava grávida do meu irmão. Tive que parar de fazer música para ajudar de alguma forma dentro de casa.”
Com a segurança financeira construída por meio do futebol, Talisca conseguiu resgatar a antiga vocação. Em sua casa em Riad, tem um estúdio onde produz beats, conforme aprende mais sobre o ofício com seu amigo e produtor musical Rafa Jah, que também mora no local. Dedicado, espera ter tudo preparado para investir 100% na carreira musical a partir da aposentadoria, embora saiba que há um longo caminho a trilhar.
“Quando eu aposentar do futebol, já quero estar estourado. Não consolidado, consolidado é uma palavra muito forte, requer um tempo maior. Pelo fato de eu fazer mais lançamento digital, e não ter 12 meses para fazer show, o que impede de ter o público mais próximo, isso não vai fazer eu ficar consolidado, mas estou construindo uma carreira para quando eu parar de jogar, daqui cinco, seis anos, não sei, eu poder ter uma base sólida de fãs, me apresentar em outros estados, impactar meus fãs e ter mais ouvintes”, explica.
Volta ao Brasil distante e sonho da seleção
Antes de se aposentar e incorporar o ‘lado Spark’ de vez, o atacante gostaria de ter a chance de jogar no Brasil, com preferência por Bahia ou o Corinthians, o que não é segredo para ninguém. Não há, contudo, garantias de que o retorno irá se concretizar. “Minha carreira foi toda planejada lá fora, está muito bem resolvida e controlada. Não tem possibilidade de voltar para o Brasil agora, apesar de eu ter muita vontade de jogar em alguns clubes aqui”, diz o jogador, que tem contrato com o Al-Nassr até 2026.
Anderson Talisca sofreu uma lesão muscular grave em março e perdeu o final da temporada 2023/2024, mas está totalmente recuperado. Após período de férias, aproveitado para passar um tempo no Brasil, reapresentou-se ao Al-Nassr e está em Portugal, onde o time faz uma série de amistosos nos próximos dias.
Agora, a expectativa é retomar o mesmo nível de antes para, quem sabe, ter chance na seleção brasileira de Dorival Júnior. Em setembro de 2023, antes de se lesionar, quando vivia grande fase no clube saudita, chegou a manifestar publicamente a insatisfação por não ter sido convocação por Fernando Diniz, então treinador da seleção.
“Eu estava muito bem, temporada em alta. Eu desejo muito, quero muito, mas tudo é no momento de Deus. Não reclamo, o treinador tem meu respeito, suas escolhas. O treinador que está agora também é muito bom, não é fácil para ele. Então, estou tranquilo”, comenta.
Para Talisca, o fato de jogar na Arábia Saudita não é uma barreira para ganhar oportunidades com a amarelinha, até porque considera o campeonato mais qualificado que o Brasileirão.
“Hoje, a Arábia Saudita já não é mais dúvida para ninguém. Está entre maiores ligas do mundo”, diz. “O Campeonato Saudita, em qualidade, está muito à frente do Brasileiro. Você tira como base pelos investimentos. Se não tiver dinheiro, não contrata. É basicamente isso. Mas em termos de disputa, o Brasileiro está mais à frente porque tem mais times com chances de ganhar, 10 times. Lá, tem um pouco menos, e por isso que estão qualificando os times menores, medianos.”