“Não é fácil perder um filho querido. Foi muito custoso conseguir se levantar depois daquela tragédia.” A resposta é de Limbert Beltrán, quando questionado pelo Estadão sobre como foram os últimos dez anos, desde a morte de seu filho Kevin Espada, atingido na cabeça por um sinalizador no dia 20 de fevereiro de 2013, enquanto assistia nas arquibancadas do estádio Jesús Bermúdez, em Oruro, na Bolívia, ao jogo entre San José e Corinthians, pela Libertadores.
A morte do garoto de 14 anos chocou o futebol sul-americano e virou um marco no combate à violência nos estádios do continente. A partir daquele episódio, a Conmebol decidiu criar um departamento dedicado especialmente à segurança das competições entre clubes e seleções, regulamentos ficaram mais rígidos, punições inéditas passaram a ser aplicadas e uma série de itens foram proibidos nos estádios pelo continente, como bandeirões, rolos de papel, mastros de bandeira e, claro, sinalizadores.
“As sanções ficaram mais duras. Os clubes passaram a ser responsáveis pelo comportamento dos seus torcedores. Isso era algo que não existia”, relembra o uruguaio Adrian Leiza. Então vice-presidente do Tribunal de Disciplina da Conmebol, foi ele quem comandou o processo movido contra o Corinthians para apurar a tragédia de Oruro.
O Corinthians foi punido com uma partida sem a presença de público no Pacaembu, onde atuava, e sua torcida não pôde comparecer a jogos como visitante por 18 meses. O clube também teve de pagar uma multa de US$ 200 mil (cerca de R$ 1 milhão pela cotação atual).
“A morte de Kevin ajudou a acelerar várias ações de combate à violência nos estádios. No Brasil, a aplicação do Estatuto do Torcedor ganhou mais força”, diz Paulo Schmitt, então procurador-geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).
Foi como consequência direta dessa mudança de comportamento da Conmebol, por exemplo, que a final da Libertadores da América de 2018 foi disputada em Madri, na Espanha, após torcedores do River Plate atacarem o ônibus que levava o Boca Juniors até o estádio Monumental de Núñez, em Buenos Aires.
Schmitt, no entanto, lamenta que esse tipo de reação da Conmebol no enfrentamento à violência só tenha ocorrido depois da morte trágica de Kevin Espada. “Acho que a Conmebol acordou um pouco tarde para a gravidade desses fatos e suas repercussões sociais, pois um clube aqui no Brasileirão era punido com perda de mando pelo arremesso de um objeto por seu torcedor, mas na Copa Sul-Americana ou na Libertadores ocorria uma chuva de objetos arremessados com sanções insignificantes”, diz.
Em nota enviada ao Estadão, a Conmebol destaca o aprimoramento em seus regimentos internos na última década, mas reconhece que o combate à violência ainda precisa ser aperfeiçoado. “Embora ainda haja muito a ser feito, avançamos na conscientização dos clubes em relação à segurança. Em janeiro de cada ano, por exemplo, realizamos um workshop entre os oficiais de segurança dos clubes participantes de nossas competições”, afirma a entidade.
OS 12 DE ORURO
No dia da morte de Kevin Espada, 12 torcedores do Corinthians foram presos em Oruro, acusados de envolvimento com o crime. Todos alegaram inocência, enquanto que, no Brasil, um jovem de 17 anos, sócio da torcida organizada Gaviões da Fiel, se apresentou à Justiça como autor do disparo e foi liberado na sequência.
O depoimento do adolescente, porém, não foi suficiente para a Justiça boliviana entender que deveria libertar Cleuter Barreto Barros, Marco Aurélio Freire, José Carlos da Silva Junior, Raphael Machado Castilho Araújo, Tiago Aurélio dos Santos Ferreira, Danilo Silva de Oliveira, Fábio Neves Domingos, Cléber Souza, Tadeu Macedo Andrade, Hugo Nonato, Leandro Silva de Oliveira e Reginaldo Coelho. O grupo continuou preso por mais de cem dias e somente depois que uma longa negociação que envolveu diplomatas do Brasil e da Bolívia é que sete torcedores foram soltos em junho daquele ano. No mês seguinte, os cinco restantes foram liberados.
De volta ao Brasil, muitos se envolveram em novos problemas com a Justiça. Em setembro de 2013, Raphael Machado Castilho Araújo foi preso no interior da Bahia acusado de atirar em policiais durante uma fuga. Na troca de tiros, acabou alvejado no braço, na perna e nas costelas. Raphael resistiu aos ferimentos e foi detido.
Adrian Leiza, vice-presidente do Tribunal de Disciplina da Conmebol
Paulo Schmitt, ex-procurador do STJD
Fábio Neves Domingos foi assassinado em abril de 2015 numa chacina que terminou com oito mortos na sede da torcida Pavilhão 9. De acordo com a Polícia Civil, a motivação foi a disputa pelo tráfico de drogas.
Leandro Silva de Oliveira, conhecido como Soldado, participou de uma briga com vascaínos em Brasília em agosto de 2013. Cleuter Barreto Barros, chamado de Manaus por causa da sua origem, também brigou com vascaínos no Distrito Federal. Em 2015, foi preso com dez quilos de maconha na rodoviária do Rio.
Já Tiago Aurélio dos Santos Ferreira foi detido em fevereiro de 2014 por invadir o CT do Corinthians para protestar contra a má fase da equipe. Solto três semanas depois, Tiago participou em setembro de uma briga durante um jogo em Itaquera. Por causa daquela confusão, o Corinthians foi multado em R$ 50 mil pelo STJD e perdeu um mando de campo no Campeonato Brasileiro.
Danilo Silva de Oliveira virou vice-presidente da Gaviões da Fiel e, em 2021, foi preso acusado de incendiar a estátua de Borba Gato, na zona sul de São Paulo. Depois, acabou solto.
DINHEIRO DESVIADO
Uma das maiores dores de Limbert Beltrán, pai de Kevin Espada, é saber que, passados dez anos da morte do seu filho, ninguém foi responsabilizado nem pela Justiça boliviana nem pela brasileira. “A dor pela morte do Kevin é ainda maior por causa da impunidade”, diz.
A família também acabou não sendo indenizada como deveria pela morte do garoto. Pior: segundo o Ministério Público da Bolívia, dirigentes da federação local usaram um amistoso entre a seleção do país e o Brasil, disputado em abril de 2013, para desviar dinheiro.
A partida foi realizada em Santa Cruz de la Sierra com as presenças de Ronaldinho Gaúcho, Neymar e Alexandre Pato e a renda deveria ser revertida para a família de Kevin. A Federação Boliviana de Futebol (FBF) colocou à venda 31 mil ingressos e esgotou todas as entradas. A arrecadação com bilheteria foi de US$ 550 mil (R$ 2,9 milhões), mas os parentes de Kevin ficaram com apenas US$ 21,5 mil (R$ 118,2 mil), o equivalente a menos de 5% do valor.
Ainda de acordo com o MP boliviano, recursos dos direitos de transmissão para a TV também foram transferidos para contas fantasmas em favor do então presidente da FBF, Carlos Chávez. Segundo o dirigente, a negociação teria sido feito com uma empresa argentina, mas os promotores descobriram que a transação foi realizada na verdade em Santa Cruz de la Sierra.
“A realidade é que o Brasil jogou de forma gratuita para ajudar a família de Kevin, mas Carlos Chávez e outros dirigentes abusaram dessa boa vontade e das pessoas que pagaram suas entradas”, disse o procurador-geral da Bolívia, Ramiro Guerrero.
Chávez estava em seu terceiro mandato na presidência da FBF, cargo que ocupava desde 2006 – fora reeleito em 2010 e 2014. Ele acabou preso em 2015 na cidade de Sucre, assim como o então secretário executivo da federação, Alberto Lozada.
ITENS PROIBIDOS EM ESTÁDIOS A PARTIR DE 2013
- BANDEIRÕES: A Conmebol alega que vários tipos de armas estavam sendo camuflados dentro dos tecidos, assim como drogas, dificultando a revista dos policiais.
- MASTROS DE BANDEIRAS: Foram relatados diversos casos em que mastros eram usados em brigas. Somente bastões de plástico flexíveis passaram a ser autorizados.
- ROLOS DE PAPEL: Como muitas vezes eles não eram desenrolados, acabavam sendo usados em ataques contra jogadores e árbitros. Em outros casos, os rolos de papel se acumulavam no campo, obrigando o árbitro a interromper o jogo para limpar a área.
- FOGOS DE ARTIFÍCIO E SINALIZADORES: Conmebol alerta que “pirotecnia nas mãos dos torcedores pode se tornar em uma arma letal”. A Fifa também proíbe esse tipo de artefato.