Aos gritos de “Nós somos sauditas e fazemos o que queremos”, centenas de torcedores do Newcastle foram ao estádio St. James' Park na última quinta-feira, 7, celebrando como se fosse um título, não só a compra do clube do coração por um conglomerado bilionário, mas também a saída do então dono, o empresário inglês Mike Ashley. Os Magpies, como são conhecidos, deixaram uma era de baixo investimento, times tecnicamente limitados e dois rebaixamentos para entrarem em um novo capítulo de sua história, agora comandado por um bilionário acusado de desrespeito aos direitos humanos.
O Newcastle foi comprado por 300 milhões de libras (cerca de R$ 2,2 bilhões) por um grupo liderado pelo Fundo de Investimento Público (PIF) da Arábia Saudita, administrado pelo príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, que adquiriu 80% das ações e chegou a visitar o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em abril, para tratar da negociação. O clube da Inglaterra é considerado agora o mais rico do mundo já que o patrimônio de bin Salman é estimado em torno de 400 bilhões de dólares, dez vezes superior ao então mais rico, o sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan, dono do Manchester City.
A principal crítica à compra do Newcastle se deu pelo histórico saudita de desrespeito aos direitos humanos. O príncipe saudita também é acusado de ordenar o assassinato do jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi, crítico ao governo, em 2018, na embaixada saudita na Turquia. Relatório da CIA aponta bin Salman como o mandante do crime. Posteriormente, bin Salman assumiu a responsabilidade pelo assassinato de Khashoggi, mas negou que tenha ordenado o ataque. A Premier League, a primeira divisão inglesa, sofreu grande pressão de organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, além da ex-noiva do jornalista, Hatice Cengiz, para que vetasse a negociação.
O que é "sportswashing"? “Clubes-estado” e a cortina de fumaça
A compra do Newcastle por um fundo saudita administrado pelo príncipe herdeiro do país é definida por especialistas como sportswashing, ou seja, o uso estratégico e político do esporte para melhorar sua reputação no mundo, escondendo ações negativas de seus governos. Pesquisador do esporte pela Uerj e organizador do livro Clube empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol, Irlan Simões explica que a prática não é uma tendência recente. “Se apossar de clubes de futebol para fins políticos não é algo novo. Muitos times já foram usados como instrumento de política e imagem pública. É a ideia de projetar poder a partir da sedução que um clube de futebol tem”.
A Arábia Saudita sediou edição da Supercopa da Espanha e outra da Itália nos últimos anos, além de outros eventos esportivos. Em dezembro, receberá sua primeira corrida de Fórmula 1. O país também planeja se candidatar à sede da Copa do Mundo de 2030.
Em 2016, o governo saudita divulgou o plano estratégico "Visão 2030" para deixar de depender das exportações de petróleo, diversificando sua economia, através de grandes investimentos em outras áreas, como o esporte. Bin Salman viu nos últimos anos os vizinhos Emirados Árabes e Catar comprarem Manchester City e Paris Saint-Germain respectivamente, ganhando sucesso esportivo e projeção internacional. Hoje, o governo saudita é mais um a integrar o grupo dos “clubes-estado”.
Outro país vizinho detém ações de um adversário do Newcastle no Campeonato Inglês. Em 2008, o Manchester City foi comprado por 266 milhões de libras pelo Abu Dhabi United Group, do sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan - membro da família real dos Emirados Árabes Unidos e vice-primeiro-ministro do país. A empresa possui 78% das ações do City Football Group (CFG), uma rede que conta com dez clubes espalhados em cinco continentes, além de parcerias com o Bolívar, da Bolívia, e o Vannes, da França. O Manchester City pulou de patamar em pouco tempo, graças aos investimentos na casa de 1 bilhão de euros, desde o início da compra.
Em 2011, foi a vez do Catar iniciar sua projeção internacional através do futebol. A Qatar Sports Investments (QSI), empresa ligada ao emir catari, Tamim bin Hamad al Thani, comprou 70% das ações do Paris Saint-Germain por 50 milhões de euros. Desde então, o clube recebeu grandes investimentos, dominou o futebol do país e agora, com Neymar e Lionel Messi, quer enfim vencer a Liga dos Campeões.
Além de Arábia Saudita, Emirados Árabes e Catar, o Bahrein, através do fundo de investimentos soberano do país, pagou cinco milhões de euros no ano passado por 20% das ações do modesto Paris FC, da segunda divisão francesa. Os investimentos ainda são tímidos, mas o objetivo é alcançar a primeira divisão em pouco tempo. A frase “Explore o Bahrein” é exposta na camisa do clube.
A prática de países serem proprietários de clubes europeus também é recebida com críticas no meio do futebol. O presidente da La Liga, que organiza o Campeonato Espanhol, Javier Tebas, é um dos opositores. ''Se isso não acabar, o futebol vai ter 20 sheiks em 20 clubes diferentes dominando tudo'', disse ao diário Sport.
Os outros donos de clubes pela Europa
Relatório publicado pela empresa de auditoria Ernst & Young este ano apontou que, na primeira divisão da Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália, 92% dos clubes são empresas, enquanto na segunda divisão esse percentual é de 96%. À exceção da Inglaterra, os donos são predominantemente empresários do próprio país: 58% possuem alguma ligação pessoal com o clube ou são empresários da região.
O futebol inglês viu uma nova etapa de sua história surgir em 2003, quando o bilionário Roman Abramovich, do setor de petróleo e gás, comprou o Chelsea por 140 milhões de libras. O ex-governador de uma província russa e amigo de Vladimir Putin, investiu em grandes contratações no clube ao longo dos anos e viu o time levantar o troféu da Liga dos Campeões em duas oportunidades.
O futebol italiano conta com muitos proprietários nascidos no próprio país, como a família Agnelli, uma das mais poderosas do país e dona de empresas como Fiat e Ferrari, que colocou a Juventus no topo nos últimos anos. Mas recentemente sete dos 20 clubes da primeira divisão passaram a pertencer a investidores dos Estados Unidos. Eles foram atraídos pelo custo inferior ao de ingleses, mas também pela possibilidade de recolocar a liga italiana de volta ao topo da Europa.
Apesar do modelo de clube-empresa dominar os principais campeonatos europeus, o cenário no continente de um modo geral é bastante diverso. O governo da Espanha impôs aos clubes na década de 1990 a migração para o modelo empresarial para tentar reduzir seus graves problemas financeiros. As exceções ficam por conta de Barcelona e Real Madrid, dois dos maiores clubes do mundo, além de Athletic Bilbao e Osasuna, que são associações sem fins lucrativos.
No Campeonato Alemão, o modelo também é diferente. Os clubes eram associações, sem investimento estrangeiro, até 1998, quando as regras mudaram e foi instituído o modelo “50 mais 1”, que visa proteger os torcedores, evitando que uma pessoa ou organização tenha total controle sobre um clube. As exceções são o Bayer Leverkusen, criado pela farmacêutica Bayer, além do Wolfsburg, fundado pela montadora Volkswagen, e ambos pertencem às respectivas empresas.
Quem se adaptou à regra foi o RB Leipzig, que colocou muitos funcionários da empresa como membros do clube, mantendo assim o poder de decisão. O Leipzig surgiu em 2009, quando a Red Bull, que já era dona do Red Bull Salzburg, da Áustria, e do New York Red Bulls, dos Estados Unidos, comprou o modesto SSV Markranstädt, da quinta divisão alemã. O proprietário da empresa de bebida energética é o austríaco Dietrich Mateschitz, cujo patrimônio hoje é de 24,7 bilhões de dólares, segundo a revista Forbes. Em sete anos de muito investimento, subiram da quinta para a primeira divisão e têm disputado as primeiras posições nas últimas temporadas do Campeonato Alemão, além de edições da Liga dos Campeões.
Clubes brasileiros com donos?
Depois dos projetos na Alemanha, Áustria e Estados Unidos, a Red Bull iniciou sua trajetória no futebol brasileiro em 2007, com o nome de Red Bull Brasil. No espaço de oito anos, resultados de grande destaque demoraram a aparecer. Então, em 2019, a Red Bull foi atrás de um clube da Série B, negociou com Oeste e Paulista, mas fechou parceria com o Bragantino em um acordo em torno de R$ 45 milhões. Assim, o Red Bull Brasil virou uma “equipe B” da empresa.
Logo no primeiro ano, o Bragantino conseguiu o acesso à Série A. Já em janeiro de 2020, passou a se chamar Red Bull Bragantino, viu seu escudo mudar e ganhou a cor vermelha no uniforme. Esse ano, investiu mais de R$ 100 milhões em reforços. A equipe é finalista da Copa Sul-Americana e enfrenta o Athletico no dia 20 de novembro. O clube divulgou que terá um novo centro de treinamento, com previsão de entrega para 2023, e quer transformar o estádio Nabib Abi Chedid em uma arena para cerca de 20 mil pessoas.
Além do Red Bull Bragantino, o Cuiabá é o outro representante de clube-empresa da Série A do Campeonato Brasileiro. Em 2009, o Dourado, que foi comprado por uma fabricante de recapadora de pneus, subiu da terceira para a primeira divisão e ainda conquistou a Copa Verde, em duas ocasiões.
Outros clubes brasileiros têm se movimentado em busca de investidores, aproveitando a lei do clube-empresa, que permite participação da iniciativa privada nos clubes de futebol. André Sica, advogado de direito desportivo e sócio CSMV Advogados, diz que não vê momento melhor para investir no futebol brasileiro. “Os ativos estão em baixa, os clubes nunca valeram tão pouco e o potencial do futebol nacional é absurdo, só tende a melhorar. Com a lei da SAF (Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), fica bem melhor porque esse regime é bem benéfico. Mas é importante que os clubes achem o modelo ideal para a sua própria realidade”.
Irlan Simões salienta que muitos clubes europeus que seguiram o modelo de empresa também enfrentaram grandes problemas e até faliram. “As pessoas não têm conhecimento dos problemas que a transformação do clube-empresa pode criar, não se fala nisso. Existem grupos de poder interessados em assumir esses clubes. Boa parte de quem apoia omite o que conhece de pontos negativos”.
O América-MG negocia um acordo com um investidor estrangeiro para transformar o clube em empresa, mas não divulgou nomes, nem valores. Dois dos clubes mais endividados do futebol brasileiro, Cruzeiro e Botafogo também caminham na busca por um investidor. O CEO do Alvinegro carioca, Jorge Braga, acredita que a chegada de investidores estrangeiros no futebol brasileiro, alavancando o nível do clube, terá um efeito de contaminação. “O primeiro que fizer esse movimento vai ter um avanço tão grande que as outras torcidas vão pressionar seus times para algo parecido. Se preservar sua história, cores e tudo mais, acho que a recepção dos torcedores será excelente”.