João Maia estava próximo dos 30 anos, era carteiro em São Paulo e gostava de fotografar com a mesma curiosidade que tinha aos 14 anos, quando ganhou a primeira câmera. A rotina de trabalho dele envolvia percorrer a rua Piauí, nomeada tal qual seu Estado de origem. Foi durante um dia de ofício em Higienópolis que João notou pela primeira vez sinais de problemas com a visão. Confundia os números das cartas que precisava entregar. Consultou um oftalmologista. Primeiro, foi afastado e, depois de um ano em tratamento, aposentado por invalidez.
A uveíte bilateral, inflamação nas íris dos dois olhos, não teve causa descoberta e foi considerada “autoimune” pelos médicos. Na prática, João perdeu a visão total do olho direito e manteve a percepção de cores e vultos no olho esquerdo, mas com alcance de somente 15 centímetros.
A fotografia tem um princípio simples, explicado pela própria etimologia. Foto é luz. Grafia é gravar. Como alguém com deficiência visual poderia manter a atividade? João não teve resposta e carregou o luto e a depressão pela ruptura com o fotografar.
O ponto de virada foi a gravidez da irmã, que o motivou a retratá-la em um ensaio. Ainda lembrando da técnica, João acionou a memória mecânica dos dedos nos botões da câmera. Ele lembra de conseguir perceber um pouco da luz de uma janela, que iluminava a sua modelo. Foi a primeira experiência como fotógrafo cego. Agora, João vai a Paris, cobrir os Jogos Paralímpicos pela terceira vez.
Abertura para fotografar iniciou no interior do Piauí
Tudo começou em Bom Jesus (PI), cerca de 600km da capital Teresina. João era um dos dez filhos da família e enxergava perfeitamente. Um irmão mais velho já havia deixado o interior rumo a São Paulo e, da metrópole, enviou uma câmera compacta, com flash embutido e espaço para inserir o filme. O presente foi pedido por João depois que conheceu máquinas fotográficas do pai de um colega da escola.
“O bichinho da fotografia me mordeu na adolescência, essa fase mais linda da vida. Eu fui arrebatado”, relembra ao Estadão, enquanto conta que começou a fotografar colegas e familiares para praticar. Não ganhava dinheiro algum com isso, apenas pedia uma contribuição para enviar os filmes para revelação - e esperar quase um mês para as fotos retornarem.
“Eu fui um autodidata. Tinha aquela vontade de chegar onde cheguei, o reconhecimento como fotógrafo, mas nunca esperei na minha vida que ia ser como fotógrafo cego”, conta João. Para aprender fundamentos, ele escrevia cartas a empresa como Kodak e Fujifilm, solicitando guias que ensinavam a fotografar.
No começo de 1996, o próprio João rumou para São Paulo. “Se eu trabalhar, eu consigo estudar”, pensou em busca de cursar uma graduação. “Mas quem disse que consegui estudar? Só consegui trabalhar”, lamenta ao lembrar.
Entretanto, o trabalho lhe rendeu câmeras melhores. O caminho da fotografia seguiu até ser interrompido e retomado, como já contado aqui. Essencial nessa retomada foi a Fundação Dorina Nowill, que trabalha com pessoas cegas há quase 80 anos.
“Foi de extrema importância esse processo de reabilitação. Eu fiquei lá na Fundação um ano, ter esse processo de andar na rua sozinho e a autonomia de viver, aprender como viver numa casa sozinho”, orgulha-se. João comprou um apartamento e passou a viver por conta própria. Hoje ele é conselheiro da Fundação Dorina Nowill.
João Maia, fotógrafo com deficiência visual
Velocidade em ser reconhecido com trabalho na Rio-2016
Somente aos 33 anos, três anos após ter a visão afetada, João Maia virou-se ao esporte. Começou como paratleta na natação, mas não gostou da atividade. Mudou para a corrida de rua e encontrou-se no atletismo, principalmente no lançamento de disco e de dardo. Ele ainda competiu em circuitos pelo Brasil e foi atleta do Centro Universitário Sant’Anna, onde se formou bacharel em História.
O foco acertou, contudo, quando João adicionou a fotografia na conta. Em 2016, foi convidado pela organização dos Jogos Paralímpicos do Rio para fotografar as competições. No mesmo ano, criou o projeto Fotografia Cega, para ensinar mais pessoas com deficiência visual a fotografar. O trabalho nos Jogos do Rio repercutiu internacionalmente e o levou para Tóquio, em 2021.
Nas competições, o fotógrafo conta com um assistente que atua como intérprete. O ajudante descreve cenas, cores e luz. João faz o restante para o registro. “Eu não posso ser irresponsável de ir para uma competição como a Paralimpíada e, pelo meu trabalho, atrapalhar algum atleta que passou um ciclo de quatro anos trabalhando. Então, eu tenho sempre um guia do meu lado para me descrever um ambiente. Ele faz uma audiodescrição ao vivo”, explica.
João não é “imparcial” ao confessar qual registro mais quer conseguir fazer em Paris. “Eu tenho que ‘puxar a sardinha’ para minha cegueira. Fotografar final do futebol de cego, do golbol, o judô... competições que têm pessoas com deficiência visual. Para mim, é uma conexão incrível”, descreve.
O fotógrafo faz a ressalva de que quer mais pessoas com deficiências e que atuem na cobertura. “A gente precisa de mais profissionais com deficiência. Não só o João Maia. E eu sei que tem muitos, mas tem que ter mais, porque a gente vai contar a história de uma forma diferente, na visão da pessoa com deficiência”, argumenta.
Desde abril, a Fundação Dorina tem uma frente dedicada ao esporte e presta apoio à continuidade do time de golbol masculino do Centro de Apoio ao Deficiente Visual (Cadevi) e à Naurú, equipe de atletismo paralímpico, que passou a ter com times de iniciação infantil e adulto.
Exposições fotográficas de João Maia em Paris e em São Paulo
Em Paris, João vai poder visitar a exposição fotográfica de suas fotos, chamada 4 Sentidos 1 Visão, no Instituto para Jovens Cegos - Louis Braille. As imagens selecionadas, que também já estiveram este ano expostas na Universidade Panthéon-Sorbonne, também na capital francesa.
As peças retratam o trabalho de João Maia nos Jogos Paralímpicos do Rio e de Tóquio, com audiodescrição feita pela Fundação Dorina. Após a Paralimpíada de Paris, a exposição será atualizada com as fotos dessa nova edição.
Já em São Paulo, outra exposição, chamada de Fotografia Cega, está aberta até 8 de setembro, na Unibes Cultural, na Rua Oscar Freire, 2.500. A entrada é gratuita.