Um debate sobre a presença dos esportes equestres nos Jogos Olímpicos começou após três casos de maus-tratos contra os animais na Olimpíada de Tóquio. A ONG PETA (Pessoas pelo Tratamento Ético de Animais, na sigla em inglês) encaminhou uma carta ao Comitê Olímpico Internacional (COI) pedindo a retirada do hipismo, além da saída da modalidade que é disputada com outras quatro provas no pentatlo moderno. O Estadão conversou com a PETA e com veterinários para entender esta polêmica.
O caso que mais chamou atenção foi o de Saint Boy, montado pela alemã Anikka Schleu, do pentatlo moderno. Schleu não conseguiu controlar o cavalo para fazer os saltos do percurso, apesar de forçar ao segurar as rédeas. A treinadora de Schleu, Kim Raisner, foi vista dando um soco no animal, o que a levou a ser expulsa dos Jogos pela União Internacional do Pentatlo Moderno (UIPM).
Os outros dois foram o do cavalo Jet Set, montado pelo suíço Robin Godel, que precisou ser sacrificado após uma lesão 'irreparável' na pata traseira direita durante o concurso completo de equitação do hipismo, e o de Kilkenny, animal que teve um sangramento na narina, embora o irlandês Cian O'Connor tenha prosseguido até o fim na competição individual de saltos, sem notar o problema.
Na carta ao COI, a PETA alega que os animais não escolheram competir e podem acabar sendo aterrorizados, machucados e às vezes até perder a vida. A posição foi reafirmada pela ONG em contato com o Estadão. "Ganhar uma medalha não é desculpa para machucar animais. Os esportes evoluem com o tempo, e já passou da hora dos Jogos terminarem a exploração dos cavalos", afirmou Kathy Guillermo, vice-presidente sênior da ONG.
Para a PETA, apenas excluindo os esportes equestres da Olimpíada seria possível garantir que maus-tratos como os de Tóquio não aconteçam. A organização tem como um de seus motes que 'animais não devem ser usados para entretenimento humano', e já conseguiu mudanças relevantes em parques aquáticos que tinham apresentações com baleias e golfinhos, por exemplo. "Enquanto explorar animais para competição é antiético, há muito que pode ser feito para prevenir terror, lesões e mortes", avalia Kathy Guillermo.
Por outro lado, quem trabalha com o hipismo tem certeza de que os animais são bem tratados. "Seria muito ruim para os cavalos se as competições acabassem, porque elas exigem um padrão de bem-estar muito grande. Os animais são tratados a pão-de-ló", garante o presidente da Confederação Brasileira de Hipismo (CBH), João Meira Lins.
Segundo Eduardo Barreto, veterinário e diretor da modalidade Endurance da CBH, em épocas de competições, os cavalos são acompanhados diariamente por comissários, e existe um veterinário especializado em questões físicas que faz um check-up completo logo antes da disputa, e outros são feitos enquanto dura o torneio. "Há regras impostas pela FEI (Federação Equestre Internacional), e punições cada vez mais rigorosas para quem descumpre", diz Barreto. Além disso, o transporte dos animais, o piso e os obstáculos das competições também teriam melhorado nos últimos anos para evitar lesões.
Barreto afirma que nos períodos fora de competições, os cuidados também existem, com a presença de veterinários especializados em cavalos atletas visitando frequentemente, cocheiras de tamanhos mínimos determinados, alimentação regrada e treinamentos aos cavaleiros para garantir que entendam os animais.
Ainda assim, tanto a PETA quanto a médica veterinária Laura Pinseta, da ONG Cavalo Sem Sela, alertam que lesões pré-existentes causam a maior parte dos casos em que o cavalo de esporte se machuca a ponto de que seja obrigatório sacrificá-lo (embora não seja possível afirmar isso no caso de Jet Set). Por isso, exames como a termografia, que analisa o corpo do animal a partir do calor emitido, são importantes para detectar problemas com antecedência e tirá-los das competições se for necessário.
ASPECTO PSICOLÓGICO
Um atleta humano pode desistir por não estar bem no aspecto psicológico, como fez Simone Biles. Mas os cavalos não tem essa alternativa, embora deem uma série de sinais de estresse. "Há alguns indicadores científicos, como o comportamento da cauda, a expressão facial, o comportamento das orelhas, que muitas vezes não são avaliados", nota Laura, que é mestranda em bem-estar animal na USP, e acredita que é possível conciliar esse bem-estar com a participação nos esportes.
Laura ressalta que é possível ver em alguns casos que o cavalo aceita participar da competição, estando relaxado. Mas isso pode ser mais difícil de acontecer no pentatlo, onde o cavalo e o cavaleiro tem o primeiro contato minutos antes de competir."Quando (atleta e animal) não se conhecem bem, muitas coisas estressantes podem acontecer. O cavalo reconhece faces, expressões, cheiros", destaca. Segundo a veterinária, o ideal era que o primeiro contato ocorresse ao menos alguns dias antes, para evitar casos como o de Schleu.
"Quanto mais treinado, relaxado e focado estiver o cavalo melhor será o resultado", concorda Barreto, que diz já ter visto casos de atletas desistindo de competir por notarem que o cavalo estava nervoso e, portanto, seria mais difícil atingir um bom resultado.
O veterinário também destaca que um cavalo atleta é treinado para competir desde filhote, e que ali é sua zona de conforto. Como exemplo, citou o caso do famoso Baloubet-du-Rouet, que após ser aposentado das pistas e levado para um pasto, aparentava estar deprimido. A situação obrigou seu dono a contratar um tratador para montá-lo diariamente como forma de mantê-lo feliz.
POSSÍVEIS MELHORIAS
Para Laura, a cadeia do cavalo no Brasil pode melhorar muito, por ainda estar longe da ciência. Segundo a veterinária, a nutrição, o manejo e o treinamento podem evoluir, apenas aplicando a ciência que já existe. "As normas têm sempre que aumentar", afirma, destacando que o hipismo, por ser o esporte equestre que tem mais visibilidade, pode puxar melhorias em outros como o turfe.
Além disso, a fiscalização sobre o tratamento que os animais recebem nos períodos sem competições também é fundamental. Na avaliação da veterinária, é possível ter mais veterinários que trabalham de forma preventiva, em vez de apenas paliativa.
A veterinária também afirma que cobranças como a da PETA são importantes. "Não adianta achar que é só coisa de ativista. São questionamentos que existem na sociedade civil e devem ser respondidos". Um exemplo veio do próprio Brasil: após os Jogos de Tóquio, a CBH criou uma ouvidoria para apurar denúncias sobre maus-tratos, que podem ser feitas de forma anônima, e que irá conversar com entidades de proteção aos animais.