Um blog de futebol-arte

Pelé 80 anos: para nós ele é eterno


Por Luiz Zanin Oricchio

 

Para os que o vimos jogar, causa espanto o aniversário de 80 anos de Pelé. De certa forma, em nosso imaginário, é como se ele estivesse sempre por aí, a jogar em algum campo impalpável, imaterial, a salvo da dura realidade, gramado perfeito, ao abrigo da várzea nossa de cada dia. 

Mesmo medido em termos humanos, cronológicos, Pelé é um fenômeno de sobrevivência. Deixou a seleção em 1971; o Santos, em 1974. Os anos no Cosmos não contam - é como se não tivessem existido. Então, são 46 anos que Pelé não joga bola no Brasil. E, no entanto, é como se nunca tivesse parado. Quando vemos uma jogada fenomenal, falamos que foi digna de Pelé. Um gol fora de série? Gol de Pelé. E dizemos isso com a maior desfaçatez, esquecidos do poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, e sua frase definitiva: "Difícil não é fazer mil gols como Pelé; difícil é fazer um gol de Pelé". Na maneira sutil de articular a frase, Drummond dizia que o que importa não é o número; interessa é o estilo único do goleador, inimitável. Mil gols alguém pode vir a fazer; um gol como ele, ninguém. Drummond era um Pelé das palavras. 

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Gol de Pelé. Por mais que usemos essa expressão quando nos vemos diante de algo extraordinário, sabemos que é um excesso. Não existe ninguém que possa fazer um gol de Pelé. Só ele podia. Fosse um gol tão complicado quanto aquele da rua Javari, do qual não existem imagens - e por isso foi recriado em computador no filme Pelé Eterno. Fossem os incontáveis gols simples que Pelé marcou ao longo de sua carreira. Sim, porque às vezes ele levava a arte a requintes impensáveis, mas também era mestre na simplificação de jogadas, escolhendo o caminho mais direto para chegar à meta adversária. Ou seja, Pelé podia ser um artista tanto barroco quanto clássico. Podia esbanjar sua técnica como um milionário ou poupá-la como um avarento. Ele nos fez ver a beleza da complexidade e o encanto da simplicidade. 

Também nos fez vislumbrar possibilidades insuspeitadas, mesmo nos gols que não fez. O drible sem bola em Mazurkiewicz ou a cavada de setenta metros contra o goleiro Viktor mostraram que lances como esses eram realizáveis. Que outros tenham conseguido marcar lá onde ele falhou, não tem tanta importância quanto o fato de ele ter mostrado que aquilo poderia ser feito. O incrível não era completar aquelas jogadas - o inacreditável era pensar que elas eram possíveis. 

Pelé é um inventor. Acontece que há inventores que têm apenas um lampejo de gênio de vez em quando, ao passo que Pelé sempre manteve uma média de criação extraordinária. Daí os números: mais de 1282 gols, cinco títulos mundiais, três pela seleção, dois pelo Santos, 11 vezes artilheiro do campeonato paulista, maior número de gols num único ano (127) etc. Números que, por fabulosos que sejam, não dizem a toda a verdade sobre Pelé, como intuiu Drummond. 

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Porque mesmo jogando mal (e isso às vezes acontecia, mas apenas pelos seus próprios padrões de excelência), a simples presença de Pelé imantava o jogo com tal tensão que tornava tudo diferente. Isso porque na cabeça de todos, companheiros de clube, adversários e torcida sempre ficava a dúvida: "o que ele irá aprontar?" Pelé tinha o respeito do adversário. Lembro de que quando os auto-falantes do estádio anunciavam a escalação do Santos, os nomes eram vaiados, um a um. Quando chegava a vez dele, torcida adversária calava. Se alguém vaiava, era repreendido: "Não vaia, senão o Negão fica nervoso..."

Tínhamos orgulho disso, do respeito que Pelé impunha. Mesmo porque o torcedor adversário, que detestava o que ele fazia com seu clube, amanhã estaria torcendo fanaticamente por Pelé quando ele estivesse vestindo a camisa da seleção. Isso num tempo em que a seleção era bem próxima do povo brasileiro, que adorava o seu camisa dez como a um deus. 

Sim, amigos, Pelé nos acostumou muito mal, a nós que o vimos jogar tantas vezes, que acompanhamos de perto a sua carreira inigualável. Pelé estabeleceu um patamar de exigência impossível de ser alcançado. Deu-nos a felicidade de descobrir e fruir, ano após ano, o melhor futebol do mundo. Mostrou até onde pode alcançar a arte do jogo da bola. Deu-nos uma ideia bem concreta do que pode ser a perfeição. Assim, quando queremos saber o que é jogar bem o futebol, basta evocar Pelé, da mesma maneira como evocamos Bach quando queremos saber o que é a grande música ou Michelangelo quando se trata de definir o sublime da escultura, ou Machado de Assis, quando falamos do ápice da literatura. O nível é esse mesmo e o Brasil deveria se orgulhar profundamente de que um artista desse porte tenha aqui nascido e viver entre nós.

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Neste 23 de outubro de 2020, só podemos agradecer ao Rei e desejar-lhe vida longa e feliz. Para nós, ele já é eterno.  

  • Com algumas adaptações, é o texto que escrevi no 70° aniversário do Rei. Não mudei de opinião sobre ele nesses dez anos. 

 

Para os que o vimos jogar, causa espanto o aniversário de 80 anos de Pelé. De certa forma, em nosso imaginário, é como se ele estivesse sempre por aí, a jogar em algum campo impalpável, imaterial, a salvo da dura realidade, gramado perfeito, ao abrigo da várzea nossa de cada dia. 

Mesmo medido em termos humanos, cronológicos, Pelé é um fenômeno de sobrevivência. Deixou a seleção em 1971; o Santos, em 1974. Os anos no Cosmos não contam - é como se não tivessem existido. Então, são 46 anos que Pelé não joga bola no Brasil. E, no entanto, é como se nunca tivesse parado. Quando vemos uma jogada fenomenal, falamos que foi digna de Pelé. Um gol fora de série? Gol de Pelé. E dizemos isso com a maior desfaçatez, esquecidos do poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, e sua frase definitiva: "Difícil não é fazer mil gols como Pelé; difícil é fazer um gol de Pelé". Na maneira sutil de articular a frase, Drummond dizia que o que importa não é o número; interessa é o estilo único do goleador, inimitável. Mil gols alguém pode vir a fazer; um gol como ele, ninguém. Drummond era um Pelé das palavras. 

Gol de Pelé. Por mais que usemos essa expressão quando nos vemos diante de algo extraordinário, sabemos que é um excesso. Não existe ninguém que possa fazer um gol de Pelé. Só ele podia. Fosse um gol tão complicado quanto aquele da rua Javari, do qual não existem imagens - e por isso foi recriado em computador no filme Pelé Eterno. Fossem os incontáveis gols simples que Pelé marcou ao longo de sua carreira. Sim, porque às vezes ele levava a arte a requintes impensáveis, mas também era mestre na simplificação de jogadas, escolhendo o caminho mais direto para chegar à meta adversária. Ou seja, Pelé podia ser um artista tanto barroco quanto clássico. Podia esbanjar sua técnica como um milionário ou poupá-la como um avarento. Ele nos fez ver a beleza da complexidade e o encanto da simplicidade. 

Também nos fez vislumbrar possibilidades insuspeitadas, mesmo nos gols que não fez. O drible sem bola em Mazurkiewicz ou a cavada de setenta metros contra o goleiro Viktor mostraram que lances como esses eram realizáveis. Que outros tenham conseguido marcar lá onde ele falhou, não tem tanta importância quanto o fato de ele ter mostrado que aquilo poderia ser feito. O incrível não era completar aquelas jogadas - o inacreditável era pensar que elas eram possíveis. 

Pelé é um inventor. Acontece que há inventores que têm apenas um lampejo de gênio de vez em quando, ao passo que Pelé sempre manteve uma média de criação extraordinária. Daí os números: mais de 1282 gols, cinco títulos mundiais, três pela seleção, dois pelo Santos, 11 vezes artilheiro do campeonato paulista, maior número de gols num único ano (127) etc. Números que, por fabulosos que sejam, não dizem a toda a verdade sobre Pelé, como intuiu Drummond. 

Porque mesmo jogando mal (e isso às vezes acontecia, mas apenas pelos seus próprios padrões de excelência), a simples presença de Pelé imantava o jogo com tal tensão que tornava tudo diferente. Isso porque na cabeça de todos, companheiros de clube, adversários e torcida sempre ficava a dúvida: "o que ele irá aprontar?" Pelé tinha o respeito do adversário. Lembro de que quando os auto-falantes do estádio anunciavam a escalação do Santos, os nomes eram vaiados, um a um. Quando chegava a vez dele, torcida adversária calava. Se alguém vaiava, era repreendido: "Não vaia, senão o Negão fica nervoso..."

Tínhamos orgulho disso, do respeito que Pelé impunha. Mesmo porque o torcedor adversário, que detestava o que ele fazia com seu clube, amanhã estaria torcendo fanaticamente por Pelé quando ele estivesse vestindo a camisa da seleção. Isso num tempo em que a seleção era bem próxima do povo brasileiro, que adorava o seu camisa dez como a um deus. 

Sim, amigos, Pelé nos acostumou muito mal, a nós que o vimos jogar tantas vezes, que acompanhamos de perto a sua carreira inigualável. Pelé estabeleceu um patamar de exigência impossível de ser alcançado. Deu-nos a felicidade de descobrir e fruir, ano após ano, o melhor futebol do mundo. Mostrou até onde pode alcançar a arte do jogo da bola. Deu-nos uma ideia bem concreta do que pode ser a perfeição. Assim, quando queremos saber o que é jogar bem o futebol, basta evocar Pelé, da mesma maneira como evocamos Bach quando queremos saber o que é a grande música ou Michelangelo quando se trata de definir o sublime da escultura, ou Machado de Assis, quando falamos do ápice da literatura. O nível é esse mesmo e o Brasil deveria se orgulhar profundamente de que um artista desse porte tenha aqui nascido e viver entre nós.

Neste 23 de outubro de 2020, só podemos agradecer ao Rei e desejar-lhe vida longa e feliz. Para nós, ele já é eterno.  

  • Com algumas adaptações, é o texto que escrevi no 70° aniversário do Rei. Não mudei de opinião sobre ele nesses dez anos. 

 

Para os que o vimos jogar, causa espanto o aniversário de 80 anos de Pelé. De certa forma, em nosso imaginário, é como se ele estivesse sempre por aí, a jogar em algum campo impalpável, imaterial, a salvo da dura realidade, gramado perfeito, ao abrigo da várzea nossa de cada dia. 

Mesmo medido em termos humanos, cronológicos, Pelé é um fenômeno de sobrevivência. Deixou a seleção em 1971; o Santos, em 1974. Os anos no Cosmos não contam - é como se não tivessem existido. Então, são 46 anos que Pelé não joga bola no Brasil. E, no entanto, é como se nunca tivesse parado. Quando vemos uma jogada fenomenal, falamos que foi digna de Pelé. Um gol fora de série? Gol de Pelé. E dizemos isso com a maior desfaçatez, esquecidos do poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, e sua frase definitiva: "Difícil não é fazer mil gols como Pelé; difícil é fazer um gol de Pelé". Na maneira sutil de articular a frase, Drummond dizia que o que importa não é o número; interessa é o estilo único do goleador, inimitável. Mil gols alguém pode vir a fazer; um gol como ele, ninguém. Drummond era um Pelé das palavras. 

Gol de Pelé. Por mais que usemos essa expressão quando nos vemos diante de algo extraordinário, sabemos que é um excesso. Não existe ninguém que possa fazer um gol de Pelé. Só ele podia. Fosse um gol tão complicado quanto aquele da rua Javari, do qual não existem imagens - e por isso foi recriado em computador no filme Pelé Eterno. Fossem os incontáveis gols simples que Pelé marcou ao longo de sua carreira. Sim, porque às vezes ele levava a arte a requintes impensáveis, mas também era mestre na simplificação de jogadas, escolhendo o caminho mais direto para chegar à meta adversária. Ou seja, Pelé podia ser um artista tanto barroco quanto clássico. Podia esbanjar sua técnica como um milionário ou poupá-la como um avarento. Ele nos fez ver a beleza da complexidade e o encanto da simplicidade. 

Também nos fez vislumbrar possibilidades insuspeitadas, mesmo nos gols que não fez. O drible sem bola em Mazurkiewicz ou a cavada de setenta metros contra o goleiro Viktor mostraram que lances como esses eram realizáveis. Que outros tenham conseguido marcar lá onde ele falhou, não tem tanta importância quanto o fato de ele ter mostrado que aquilo poderia ser feito. O incrível não era completar aquelas jogadas - o inacreditável era pensar que elas eram possíveis. 

Pelé é um inventor. Acontece que há inventores que têm apenas um lampejo de gênio de vez em quando, ao passo que Pelé sempre manteve uma média de criação extraordinária. Daí os números: mais de 1282 gols, cinco títulos mundiais, três pela seleção, dois pelo Santos, 11 vezes artilheiro do campeonato paulista, maior número de gols num único ano (127) etc. Números que, por fabulosos que sejam, não dizem a toda a verdade sobre Pelé, como intuiu Drummond. 

Porque mesmo jogando mal (e isso às vezes acontecia, mas apenas pelos seus próprios padrões de excelência), a simples presença de Pelé imantava o jogo com tal tensão que tornava tudo diferente. Isso porque na cabeça de todos, companheiros de clube, adversários e torcida sempre ficava a dúvida: "o que ele irá aprontar?" Pelé tinha o respeito do adversário. Lembro de que quando os auto-falantes do estádio anunciavam a escalação do Santos, os nomes eram vaiados, um a um. Quando chegava a vez dele, torcida adversária calava. Se alguém vaiava, era repreendido: "Não vaia, senão o Negão fica nervoso..."

Tínhamos orgulho disso, do respeito que Pelé impunha. Mesmo porque o torcedor adversário, que detestava o que ele fazia com seu clube, amanhã estaria torcendo fanaticamente por Pelé quando ele estivesse vestindo a camisa da seleção. Isso num tempo em que a seleção era bem próxima do povo brasileiro, que adorava o seu camisa dez como a um deus. 

Sim, amigos, Pelé nos acostumou muito mal, a nós que o vimos jogar tantas vezes, que acompanhamos de perto a sua carreira inigualável. Pelé estabeleceu um patamar de exigência impossível de ser alcançado. Deu-nos a felicidade de descobrir e fruir, ano após ano, o melhor futebol do mundo. Mostrou até onde pode alcançar a arte do jogo da bola. Deu-nos uma ideia bem concreta do que pode ser a perfeição. Assim, quando queremos saber o que é jogar bem o futebol, basta evocar Pelé, da mesma maneira como evocamos Bach quando queremos saber o que é a grande música ou Michelangelo quando se trata de definir o sublime da escultura, ou Machado de Assis, quando falamos do ápice da literatura. O nível é esse mesmo e o Brasil deveria se orgulhar profundamente de que um artista desse porte tenha aqui nascido e viver entre nós.

Neste 23 de outubro de 2020, só podemos agradecer ao Rei e desejar-lhe vida longa e feliz. Para nós, ele já é eterno.  

  • Com algumas adaptações, é o texto que escrevi no 70° aniversário do Rei. Não mudei de opinião sobre ele nesses dez anos. 

 

Para os que o vimos jogar, causa espanto o aniversário de 80 anos de Pelé. De certa forma, em nosso imaginário, é como se ele estivesse sempre por aí, a jogar em algum campo impalpável, imaterial, a salvo da dura realidade, gramado perfeito, ao abrigo da várzea nossa de cada dia. 

Mesmo medido em termos humanos, cronológicos, Pelé é um fenômeno de sobrevivência. Deixou a seleção em 1971; o Santos, em 1974. Os anos no Cosmos não contam - é como se não tivessem existido. Então, são 46 anos que Pelé não joga bola no Brasil. E, no entanto, é como se nunca tivesse parado. Quando vemos uma jogada fenomenal, falamos que foi digna de Pelé. Um gol fora de série? Gol de Pelé. E dizemos isso com a maior desfaçatez, esquecidos do poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, e sua frase definitiva: "Difícil não é fazer mil gols como Pelé; difícil é fazer um gol de Pelé". Na maneira sutil de articular a frase, Drummond dizia que o que importa não é o número; interessa é o estilo único do goleador, inimitável. Mil gols alguém pode vir a fazer; um gol como ele, ninguém. Drummond era um Pelé das palavras. 

Gol de Pelé. Por mais que usemos essa expressão quando nos vemos diante de algo extraordinário, sabemos que é um excesso. Não existe ninguém que possa fazer um gol de Pelé. Só ele podia. Fosse um gol tão complicado quanto aquele da rua Javari, do qual não existem imagens - e por isso foi recriado em computador no filme Pelé Eterno. Fossem os incontáveis gols simples que Pelé marcou ao longo de sua carreira. Sim, porque às vezes ele levava a arte a requintes impensáveis, mas também era mestre na simplificação de jogadas, escolhendo o caminho mais direto para chegar à meta adversária. Ou seja, Pelé podia ser um artista tanto barroco quanto clássico. Podia esbanjar sua técnica como um milionário ou poupá-la como um avarento. Ele nos fez ver a beleza da complexidade e o encanto da simplicidade. 

Também nos fez vislumbrar possibilidades insuspeitadas, mesmo nos gols que não fez. O drible sem bola em Mazurkiewicz ou a cavada de setenta metros contra o goleiro Viktor mostraram que lances como esses eram realizáveis. Que outros tenham conseguido marcar lá onde ele falhou, não tem tanta importância quanto o fato de ele ter mostrado que aquilo poderia ser feito. O incrível não era completar aquelas jogadas - o inacreditável era pensar que elas eram possíveis. 

Pelé é um inventor. Acontece que há inventores que têm apenas um lampejo de gênio de vez em quando, ao passo que Pelé sempre manteve uma média de criação extraordinária. Daí os números: mais de 1282 gols, cinco títulos mundiais, três pela seleção, dois pelo Santos, 11 vezes artilheiro do campeonato paulista, maior número de gols num único ano (127) etc. Números que, por fabulosos que sejam, não dizem a toda a verdade sobre Pelé, como intuiu Drummond. 

Porque mesmo jogando mal (e isso às vezes acontecia, mas apenas pelos seus próprios padrões de excelência), a simples presença de Pelé imantava o jogo com tal tensão que tornava tudo diferente. Isso porque na cabeça de todos, companheiros de clube, adversários e torcida sempre ficava a dúvida: "o que ele irá aprontar?" Pelé tinha o respeito do adversário. Lembro de que quando os auto-falantes do estádio anunciavam a escalação do Santos, os nomes eram vaiados, um a um. Quando chegava a vez dele, torcida adversária calava. Se alguém vaiava, era repreendido: "Não vaia, senão o Negão fica nervoso..."

Tínhamos orgulho disso, do respeito que Pelé impunha. Mesmo porque o torcedor adversário, que detestava o que ele fazia com seu clube, amanhã estaria torcendo fanaticamente por Pelé quando ele estivesse vestindo a camisa da seleção. Isso num tempo em que a seleção era bem próxima do povo brasileiro, que adorava o seu camisa dez como a um deus. 

Sim, amigos, Pelé nos acostumou muito mal, a nós que o vimos jogar tantas vezes, que acompanhamos de perto a sua carreira inigualável. Pelé estabeleceu um patamar de exigência impossível de ser alcançado. Deu-nos a felicidade de descobrir e fruir, ano após ano, o melhor futebol do mundo. Mostrou até onde pode alcançar a arte do jogo da bola. Deu-nos uma ideia bem concreta do que pode ser a perfeição. Assim, quando queremos saber o que é jogar bem o futebol, basta evocar Pelé, da mesma maneira como evocamos Bach quando queremos saber o que é a grande música ou Michelangelo quando se trata de definir o sublime da escultura, ou Machado de Assis, quando falamos do ápice da literatura. O nível é esse mesmo e o Brasil deveria se orgulhar profundamente de que um artista desse porte tenha aqui nascido e viver entre nós.

Neste 23 de outubro de 2020, só podemos agradecer ao Rei e desejar-lhe vida longa e feliz. Para nós, ele já é eterno.  

  • Com algumas adaptações, é o texto que escrevi no 70° aniversário do Rei. Não mudei de opinião sobre ele nesses dez anos. 

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