Olimpíada dos dopados: conheça a disputa ‘irresponsável’ que une bilionários e atletas ‘turbinados’


Projeto de evento esportivo tem financiamento de figurão do Vale do Silício e promete premiação jamais vista; entidades e especialistas condenam a ideia

Por Bruno Accorsi
Atualização:

Atletas competindo sob o efeito de substâncias proibidas em provas de atletismo, esportes aquáticos, ginástica, força e combate. Esta é a ideia central do Enhanced Games - Jogos “Aprimorados”, em tradução livre -, um evento planejado pelo empresário e advogado australiano Aron D’Souza e financiado por bilionários do Vale do Silício, como o controverso Peter Thiel, cofundador do PayPal e ex-aliado de Donald Trump, penúltimo presidente dos EUA e candidato nas próximas eleições.

A promoção de uma competição desta natureza foi muito mal recebida pelos principais órgãos relacionados ao esporte. Em nota enviada ao Estadão, a Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) definiu o projeto como “perigoso e irresponsável” e alertou sobre os riscos de promover abertamente a dopagem. “A saúde e o bem-estar dos atletas são prioridades da WADA. Este evento colocaria ambos em risco, promovendo o abuso de substâncias e métodos que só deveriam ser prescritos, se o fossem, para necessidades terapêuticas específicas e sob a supervisão de médicos capacitados. Como temos visto na história, drogas que melhoram o desempenho causam terrível impacto físico e mental. Alguns morreram”, diz a nota. “Atletas são modelos e a WADA acredita que este evento enviaria um sinal errado aos jovens”, completa.

Medalhista olímpico James Magnussen se dispôs a participar de evento esportivo com doping liberado. Foto: Daniel Ochoa de Olza/AP
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A agência deixa claro que atletas que participarem do Enhanced Games, caso de fato as disputam aconteçam, estarão correndo o risco de violar o Código Mundial Antidopagem e, portanto, sujeitos a punições. O nadador australiano James Magnussen, dono de dois bronzes e uma prata olímpica, já afirmou que estaria disposto a participar da “Olimpíada dos dopados” para tentar bater o recorde dos 50 metros, do qual o brasileiro Cesar Cielo é detentor, com o tempo 20s91.

“A WADA alerta atletas e suas equipes, que desejam participar em desporto limpo, que se participarem dos ‘Jogos Aprimorados’ correriam o risco de cometer violações das regras antidopagem do Código Mundial Antidoping. Também colocariam a sua reputação em risco, pois poderiam ficar para sempre associados ao doping. Para ser claro, a WADA incentivará as Organizações Antidoping em todo o mundo a testar os atletas envolvidos antes, durante e depois deste evento, a fim de proteger a integridade do desporto legítimo”, afirma.

Evento se opõe à Olimpíada e tenta ganhar atletas pelo bolso

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Em seu site oficial, o Enhanced Games diz estar “reinventando o esporte a partir de uma folha em branco, livre de legados anacrônicos” e se coloca como oposição à tradicional Olimpíada, referindo-se também à remuneração milionária prometida aos atletas. O tom adotado é de desafio ao Comitê Olímpico Internacional (COI) .

“Apoiada por bilionários e pelas principais empresas de capital de risco do mundo, a Enhanced será capaz de se autofinanciar”, diz. “Rejeitamos a cleptocracia das chamadas federações desportivas ‘sem fins lucrativos’. O pagamento insuficiente aos atletas é a principal falha moral do Movimento Olímpico; é um vestígio do sentimento aristocrático por trás da ultrapassada exigência de ‘amador’ não remunerado”, completa.

Na Olimpíada, atletas não recebem premiação em dinheiro do COI e as remunerações ficam a cargo das entidades nacionais. O Comitê Olímpico do Brasil (COB), por exemplo, pagará R$ 350 mil aos medalhistas de ouro em esportes individuais nos Jogos de Paris- 2024. Para prata e bronze, serão R$ 210 mil e R$ 140 mil, respectivamente. A premiação é recorde e 40% superior aos Jogos de Tóquio, de 2021.

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Embora não fale em números, a organização do Enhanced Games promete um salário base aos participantes e prêmios maiores do que qualquer outro evento comparável na história. Detalhes completos da estrutura de remuneração, assim como datas, serão revelados ainda no primeiro semestre deste ano. Ao New York Post, Aron D’Souza disse que divulgará mais informações no dia 17 de abril. Ele também estará em Paris, entre julho e agosto, durante a Olimpíada, para promover seu evento.

WADA condenou como "irresponsável" a ideia de promover um evento esportivo com atletas dopados. Foto: Andrej Ivanov / AFP

Marcelo Franklin, advogado referência internacional em antidoping e professor do assunto no Instituto Superior de Direito e Economia de Madri, acredita que um debate sobre a remuneração dos atletas é um dos poucos desfechos úteis que a proposta de D’Souza e seus financiadores pode trazer. Franklin identifica, entre os atletas, a percepção de que deveriam ser mais bem remunerados, levando em conta os altos valores dos contratos de venda de direitos de transmissão de grandes eventos, como a Olimpíada.

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“Nem acredito que o projeto Enhanced Games saia do papel. Um evento no qual seres humanos comprometem a saúde, para bater recordes em troca de altas quantias em dinheiro, além de imoral, pode ser considerado ilegal em alguns países. O debate serve para alertar o COI sobre a necessidade de destinar uma maior “fatia do bolo” aos atletas, bem como adotar um sistema antidopagem com sanções mais justas e proporcionais às violações, sob pena de perder suas estrelas para organizações despreocupadas com a saúde e o fair play, como a Enhanced Games”, diz o advogado ao Estadão.

Quanto ao doping em si, existe uma discussão sobre a duração das sanções aplicadas em casos de testes positivos, mas a liberação de drogas para a melhoria de desempenho, sem nenhum controle, não é sequer cogitada pela maioria das instituições. Algumas franquias esportivas defendem que suspensões de 2 a 4 anos, previstas pelo Código da WADA, são desproporcionais e adotam regras desvinculadas da WADA e do COI. “Por exemplo, recentemente, o UFC rompeu com a USADA (agência antidoping dos Estados Unidos)”, explica Franklin.

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‘Esporte pressupõe valores’, defende ABCD

O evento de Aron D’Souza é apresentado como uma espécie de defesa das liberdades individuais, da ciência e dos avanços tecnológicos. “Abraçamos a inclusão da ciência nos esportes e acreditamos fundamentalmente que a escolha de usar melhorias é pessoal. Para manter os nossos atletas seguros durante a competição, vamos introduzir um protocolo obrigatório de rastreio médico pré-competição, que ajudará a monitorizar riscos cardíacos e outros marcadores de saúde”.

Adriana Taboza, presidente da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), não considera o argumento razoável. “Tem uma confusão, trazendo a liberdade individual como se ela fosse maior do que o respeito às regras coletivas. A partir do momento que as suas atitudes interferem naquele contexto, elas precisam ser reguladas, e é por isso que a gente tem a política antidopagem em âmbito mundial, porque um dos principais valores do esporte é a paridade de armas e a igualdade. Estamos falando de esporte, e esporte pressupõe valores.”

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Nem mesmo o cenário com dopagem liberada a todos os atletas pode ser visto como um gerador de condições de igualdade entre os competidores, explica Taboza. “Quando a gente fala ‘todos estarão dopados’, parece que está falando de uma lista de três substâncias proibidas, cada um vai tomar 5 ml e chegaremos novamente a uma igualdade de disputa. Não é assim. A lista de substâncias e métodos proibidos contém mais de 400 substâncias. Vou disputar com outra pessoa ou disputar comigo? Você só vai poder disputar consigo. Nunca existirá igualdade de armas.”

Outro ponto central quando se fala no controle de dopagem é a proteção à saúde do atleta e à integridade do ambiente esportivo. Além disso, a presidente da ABCD pontua sobre o compromisso inerente aos esportistas que praticam uma modalidade submetida ao código da WADA, exatamente o caso de esportes citados pelo Enhanced Games como integrantes de seu quadro.

“Se você é atleta na competição, você dorme e acorda atleta. Você tem deveres para além das quadras, dos tatames, dos campos”, afirma. “Se o atleta do atletismo, da natação ou da ginástica, que foram citados pela empreitada, resolve competir neste âmbito, ele não deixa de ser atleta para o sistema e continua submetido às regras antidopagem. No caso de atleta que publicamente faz uso de uma substância proibida, não precisamos nem encontrar essa substância no corpo dele, ele está sujeito às sanções aplicadas pelo código mundial, porque essa conduta já configura uma violação à regra antidopagem.”

Embora avalie que a promoção de um evento com dopagem liberada pode ter consequências negativas em termos educacionais, Taboza vê, ao mesmo tempo, uma oportunidade para enriquecer a discussão sobre o tema. “Esse debate traz algumas consequências importantes que podem ser levadas como positivas no processo educativo. Por que faz barulho? Porque é um movimento que chama atenção de tão esdrúxulo, e isso acaba fazendo com que a gente converse sobre o assunto, mesmo trazido de uma forma distorcida”.

Quem está por trás da ‘Olimpíada dos dopados’?

O discurso defendido como filosofia do Enhanced Gaes vai mais além e chega a usar o bordão “Como atletas se tornam super-heróis”, na área do site em que o planejamento do evento é explicado. Em entrevista à agência de notícias Reuters, D’Souza disse ter o objetivo de dar aos atletas a oportunidade de “ultrapassar os limites da humanidade”. Antes, em entrevista ao New York Post, falou também que o evento ajudará em pesquisas sobre “longevidade e envelhecimento saudável”.

A forma como D’Souza expõe suas ambições está alinhada ao pensamento de seus financiadores. O alemão naturalizado americano Peter Thiel, por exemplo, é conhecido por ser entusiasta do transumanismo, a ciência de aperfeiçoar a população com engenharia genética e inteligência artificial.

Fundador do PayPal e um dos primeiros investidores do Facebook, Thiel investiu, em agosto do ano passado, US$ 280 milhões (cerca de R$ 1,4 bilhões) na Neurolink, empresa neurotecnológica de Elon Musk. Também tem participação em empreendimentos que prometem retardar o envelhecimento.

Outro investidor do Enhanced Games é Christian Angermayer, do Grupo Apeiron, que coloca seu dinheiro em negócios relacionados a experiências biológicas, fintechs, inteligência artificial, farmacêuticos psicodélicos e criptomoedas. Balaji Srinivasan, ex-diretor de tecnologia da casa de câmbio digital Coinbase, também está investindo no evento esportivo.

Atletas competindo sob o efeito de substâncias proibidas em provas de atletismo, esportes aquáticos, ginástica, força e combate. Esta é a ideia central do Enhanced Games - Jogos “Aprimorados”, em tradução livre -, um evento planejado pelo empresário e advogado australiano Aron D’Souza e financiado por bilionários do Vale do Silício, como o controverso Peter Thiel, cofundador do PayPal e ex-aliado de Donald Trump, penúltimo presidente dos EUA e candidato nas próximas eleições.

A promoção de uma competição desta natureza foi muito mal recebida pelos principais órgãos relacionados ao esporte. Em nota enviada ao Estadão, a Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) definiu o projeto como “perigoso e irresponsável” e alertou sobre os riscos de promover abertamente a dopagem. “A saúde e o bem-estar dos atletas são prioridades da WADA. Este evento colocaria ambos em risco, promovendo o abuso de substâncias e métodos que só deveriam ser prescritos, se o fossem, para necessidades terapêuticas específicas e sob a supervisão de médicos capacitados. Como temos visto na história, drogas que melhoram o desempenho causam terrível impacto físico e mental. Alguns morreram”, diz a nota. “Atletas são modelos e a WADA acredita que este evento enviaria um sinal errado aos jovens”, completa.

Medalhista olímpico James Magnussen se dispôs a participar de evento esportivo com doping liberado. Foto: Daniel Ochoa de Olza/AP

A agência deixa claro que atletas que participarem do Enhanced Games, caso de fato as disputam aconteçam, estarão correndo o risco de violar o Código Mundial Antidopagem e, portanto, sujeitos a punições. O nadador australiano James Magnussen, dono de dois bronzes e uma prata olímpica, já afirmou que estaria disposto a participar da “Olimpíada dos dopados” para tentar bater o recorde dos 50 metros, do qual o brasileiro Cesar Cielo é detentor, com o tempo 20s91.

“A WADA alerta atletas e suas equipes, que desejam participar em desporto limpo, que se participarem dos ‘Jogos Aprimorados’ correriam o risco de cometer violações das regras antidopagem do Código Mundial Antidoping. Também colocariam a sua reputação em risco, pois poderiam ficar para sempre associados ao doping. Para ser claro, a WADA incentivará as Organizações Antidoping em todo o mundo a testar os atletas envolvidos antes, durante e depois deste evento, a fim de proteger a integridade do desporto legítimo”, afirma.

Evento se opõe à Olimpíada e tenta ganhar atletas pelo bolso

Em seu site oficial, o Enhanced Games diz estar “reinventando o esporte a partir de uma folha em branco, livre de legados anacrônicos” e se coloca como oposição à tradicional Olimpíada, referindo-se também à remuneração milionária prometida aos atletas. O tom adotado é de desafio ao Comitê Olímpico Internacional (COI) .

“Apoiada por bilionários e pelas principais empresas de capital de risco do mundo, a Enhanced será capaz de se autofinanciar”, diz. “Rejeitamos a cleptocracia das chamadas federações desportivas ‘sem fins lucrativos’. O pagamento insuficiente aos atletas é a principal falha moral do Movimento Olímpico; é um vestígio do sentimento aristocrático por trás da ultrapassada exigência de ‘amador’ não remunerado”, completa.

Na Olimpíada, atletas não recebem premiação em dinheiro do COI e as remunerações ficam a cargo das entidades nacionais. O Comitê Olímpico do Brasil (COB), por exemplo, pagará R$ 350 mil aos medalhistas de ouro em esportes individuais nos Jogos de Paris- 2024. Para prata e bronze, serão R$ 210 mil e R$ 140 mil, respectivamente. A premiação é recorde e 40% superior aos Jogos de Tóquio, de 2021.

Embora não fale em números, a organização do Enhanced Games promete um salário base aos participantes e prêmios maiores do que qualquer outro evento comparável na história. Detalhes completos da estrutura de remuneração, assim como datas, serão revelados ainda no primeiro semestre deste ano. Ao New York Post, Aron D’Souza disse que divulgará mais informações no dia 17 de abril. Ele também estará em Paris, entre julho e agosto, durante a Olimpíada, para promover seu evento.

WADA condenou como "irresponsável" a ideia de promover um evento esportivo com atletas dopados. Foto: Andrej Ivanov / AFP

Marcelo Franklin, advogado referência internacional em antidoping e professor do assunto no Instituto Superior de Direito e Economia de Madri, acredita que um debate sobre a remuneração dos atletas é um dos poucos desfechos úteis que a proposta de D’Souza e seus financiadores pode trazer. Franklin identifica, entre os atletas, a percepção de que deveriam ser mais bem remunerados, levando em conta os altos valores dos contratos de venda de direitos de transmissão de grandes eventos, como a Olimpíada.

“Nem acredito que o projeto Enhanced Games saia do papel. Um evento no qual seres humanos comprometem a saúde, para bater recordes em troca de altas quantias em dinheiro, além de imoral, pode ser considerado ilegal em alguns países. O debate serve para alertar o COI sobre a necessidade de destinar uma maior “fatia do bolo” aos atletas, bem como adotar um sistema antidopagem com sanções mais justas e proporcionais às violações, sob pena de perder suas estrelas para organizações despreocupadas com a saúde e o fair play, como a Enhanced Games”, diz o advogado ao Estadão.

Quanto ao doping em si, existe uma discussão sobre a duração das sanções aplicadas em casos de testes positivos, mas a liberação de drogas para a melhoria de desempenho, sem nenhum controle, não é sequer cogitada pela maioria das instituições. Algumas franquias esportivas defendem que suspensões de 2 a 4 anos, previstas pelo Código da WADA, são desproporcionais e adotam regras desvinculadas da WADA e do COI. “Por exemplo, recentemente, o UFC rompeu com a USADA (agência antidoping dos Estados Unidos)”, explica Franklin.

‘Esporte pressupõe valores’, defende ABCD

O evento de Aron D’Souza é apresentado como uma espécie de defesa das liberdades individuais, da ciência e dos avanços tecnológicos. “Abraçamos a inclusão da ciência nos esportes e acreditamos fundamentalmente que a escolha de usar melhorias é pessoal. Para manter os nossos atletas seguros durante a competição, vamos introduzir um protocolo obrigatório de rastreio médico pré-competição, que ajudará a monitorizar riscos cardíacos e outros marcadores de saúde”.

Adriana Taboza, presidente da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), não considera o argumento razoável. “Tem uma confusão, trazendo a liberdade individual como se ela fosse maior do que o respeito às regras coletivas. A partir do momento que as suas atitudes interferem naquele contexto, elas precisam ser reguladas, e é por isso que a gente tem a política antidopagem em âmbito mundial, porque um dos principais valores do esporte é a paridade de armas e a igualdade. Estamos falando de esporte, e esporte pressupõe valores.”

Nem mesmo o cenário com dopagem liberada a todos os atletas pode ser visto como um gerador de condições de igualdade entre os competidores, explica Taboza. “Quando a gente fala ‘todos estarão dopados’, parece que está falando de uma lista de três substâncias proibidas, cada um vai tomar 5 ml e chegaremos novamente a uma igualdade de disputa. Não é assim. A lista de substâncias e métodos proibidos contém mais de 400 substâncias. Vou disputar com outra pessoa ou disputar comigo? Você só vai poder disputar consigo. Nunca existirá igualdade de armas.”

Outro ponto central quando se fala no controle de dopagem é a proteção à saúde do atleta e à integridade do ambiente esportivo. Além disso, a presidente da ABCD pontua sobre o compromisso inerente aos esportistas que praticam uma modalidade submetida ao código da WADA, exatamente o caso de esportes citados pelo Enhanced Games como integrantes de seu quadro.

“Se você é atleta na competição, você dorme e acorda atleta. Você tem deveres para além das quadras, dos tatames, dos campos”, afirma. “Se o atleta do atletismo, da natação ou da ginástica, que foram citados pela empreitada, resolve competir neste âmbito, ele não deixa de ser atleta para o sistema e continua submetido às regras antidopagem. No caso de atleta que publicamente faz uso de uma substância proibida, não precisamos nem encontrar essa substância no corpo dele, ele está sujeito às sanções aplicadas pelo código mundial, porque essa conduta já configura uma violação à regra antidopagem.”

Embora avalie que a promoção de um evento com dopagem liberada pode ter consequências negativas em termos educacionais, Taboza vê, ao mesmo tempo, uma oportunidade para enriquecer a discussão sobre o tema. “Esse debate traz algumas consequências importantes que podem ser levadas como positivas no processo educativo. Por que faz barulho? Porque é um movimento que chama atenção de tão esdrúxulo, e isso acaba fazendo com que a gente converse sobre o assunto, mesmo trazido de uma forma distorcida”.

Quem está por trás da ‘Olimpíada dos dopados’?

O discurso defendido como filosofia do Enhanced Gaes vai mais além e chega a usar o bordão “Como atletas se tornam super-heróis”, na área do site em que o planejamento do evento é explicado. Em entrevista à agência de notícias Reuters, D’Souza disse ter o objetivo de dar aos atletas a oportunidade de “ultrapassar os limites da humanidade”. Antes, em entrevista ao New York Post, falou também que o evento ajudará em pesquisas sobre “longevidade e envelhecimento saudável”.

A forma como D’Souza expõe suas ambições está alinhada ao pensamento de seus financiadores. O alemão naturalizado americano Peter Thiel, por exemplo, é conhecido por ser entusiasta do transumanismo, a ciência de aperfeiçoar a população com engenharia genética e inteligência artificial.

Fundador do PayPal e um dos primeiros investidores do Facebook, Thiel investiu, em agosto do ano passado, US$ 280 milhões (cerca de R$ 1,4 bilhões) na Neurolink, empresa neurotecnológica de Elon Musk. Também tem participação em empreendimentos que prometem retardar o envelhecimento.

Outro investidor do Enhanced Games é Christian Angermayer, do Grupo Apeiron, que coloca seu dinheiro em negócios relacionados a experiências biológicas, fintechs, inteligência artificial, farmacêuticos psicodélicos e criptomoedas. Balaji Srinivasan, ex-diretor de tecnologia da casa de câmbio digital Coinbase, também está investindo no evento esportivo.

Atletas competindo sob o efeito de substâncias proibidas em provas de atletismo, esportes aquáticos, ginástica, força e combate. Esta é a ideia central do Enhanced Games - Jogos “Aprimorados”, em tradução livre -, um evento planejado pelo empresário e advogado australiano Aron D’Souza e financiado por bilionários do Vale do Silício, como o controverso Peter Thiel, cofundador do PayPal e ex-aliado de Donald Trump, penúltimo presidente dos EUA e candidato nas próximas eleições.

A promoção de uma competição desta natureza foi muito mal recebida pelos principais órgãos relacionados ao esporte. Em nota enviada ao Estadão, a Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) definiu o projeto como “perigoso e irresponsável” e alertou sobre os riscos de promover abertamente a dopagem. “A saúde e o bem-estar dos atletas são prioridades da WADA. Este evento colocaria ambos em risco, promovendo o abuso de substâncias e métodos que só deveriam ser prescritos, se o fossem, para necessidades terapêuticas específicas e sob a supervisão de médicos capacitados. Como temos visto na história, drogas que melhoram o desempenho causam terrível impacto físico e mental. Alguns morreram”, diz a nota. “Atletas são modelos e a WADA acredita que este evento enviaria um sinal errado aos jovens”, completa.

Medalhista olímpico James Magnussen se dispôs a participar de evento esportivo com doping liberado. Foto: Daniel Ochoa de Olza/AP

A agência deixa claro que atletas que participarem do Enhanced Games, caso de fato as disputam aconteçam, estarão correndo o risco de violar o Código Mundial Antidopagem e, portanto, sujeitos a punições. O nadador australiano James Magnussen, dono de dois bronzes e uma prata olímpica, já afirmou que estaria disposto a participar da “Olimpíada dos dopados” para tentar bater o recorde dos 50 metros, do qual o brasileiro Cesar Cielo é detentor, com o tempo 20s91.

“A WADA alerta atletas e suas equipes, que desejam participar em desporto limpo, que se participarem dos ‘Jogos Aprimorados’ correriam o risco de cometer violações das regras antidopagem do Código Mundial Antidoping. Também colocariam a sua reputação em risco, pois poderiam ficar para sempre associados ao doping. Para ser claro, a WADA incentivará as Organizações Antidoping em todo o mundo a testar os atletas envolvidos antes, durante e depois deste evento, a fim de proteger a integridade do desporto legítimo”, afirma.

Evento se opõe à Olimpíada e tenta ganhar atletas pelo bolso

Em seu site oficial, o Enhanced Games diz estar “reinventando o esporte a partir de uma folha em branco, livre de legados anacrônicos” e se coloca como oposição à tradicional Olimpíada, referindo-se também à remuneração milionária prometida aos atletas. O tom adotado é de desafio ao Comitê Olímpico Internacional (COI) .

“Apoiada por bilionários e pelas principais empresas de capital de risco do mundo, a Enhanced será capaz de se autofinanciar”, diz. “Rejeitamos a cleptocracia das chamadas federações desportivas ‘sem fins lucrativos’. O pagamento insuficiente aos atletas é a principal falha moral do Movimento Olímpico; é um vestígio do sentimento aristocrático por trás da ultrapassada exigência de ‘amador’ não remunerado”, completa.

Na Olimpíada, atletas não recebem premiação em dinheiro do COI e as remunerações ficam a cargo das entidades nacionais. O Comitê Olímpico do Brasil (COB), por exemplo, pagará R$ 350 mil aos medalhistas de ouro em esportes individuais nos Jogos de Paris- 2024. Para prata e bronze, serão R$ 210 mil e R$ 140 mil, respectivamente. A premiação é recorde e 40% superior aos Jogos de Tóquio, de 2021.

Embora não fale em números, a organização do Enhanced Games promete um salário base aos participantes e prêmios maiores do que qualquer outro evento comparável na história. Detalhes completos da estrutura de remuneração, assim como datas, serão revelados ainda no primeiro semestre deste ano. Ao New York Post, Aron D’Souza disse que divulgará mais informações no dia 17 de abril. Ele também estará em Paris, entre julho e agosto, durante a Olimpíada, para promover seu evento.

WADA condenou como "irresponsável" a ideia de promover um evento esportivo com atletas dopados. Foto: Andrej Ivanov / AFP

Marcelo Franklin, advogado referência internacional em antidoping e professor do assunto no Instituto Superior de Direito e Economia de Madri, acredita que um debate sobre a remuneração dos atletas é um dos poucos desfechos úteis que a proposta de D’Souza e seus financiadores pode trazer. Franklin identifica, entre os atletas, a percepção de que deveriam ser mais bem remunerados, levando em conta os altos valores dos contratos de venda de direitos de transmissão de grandes eventos, como a Olimpíada.

“Nem acredito que o projeto Enhanced Games saia do papel. Um evento no qual seres humanos comprometem a saúde, para bater recordes em troca de altas quantias em dinheiro, além de imoral, pode ser considerado ilegal em alguns países. O debate serve para alertar o COI sobre a necessidade de destinar uma maior “fatia do bolo” aos atletas, bem como adotar um sistema antidopagem com sanções mais justas e proporcionais às violações, sob pena de perder suas estrelas para organizações despreocupadas com a saúde e o fair play, como a Enhanced Games”, diz o advogado ao Estadão.

Quanto ao doping em si, existe uma discussão sobre a duração das sanções aplicadas em casos de testes positivos, mas a liberação de drogas para a melhoria de desempenho, sem nenhum controle, não é sequer cogitada pela maioria das instituições. Algumas franquias esportivas defendem que suspensões de 2 a 4 anos, previstas pelo Código da WADA, são desproporcionais e adotam regras desvinculadas da WADA e do COI. “Por exemplo, recentemente, o UFC rompeu com a USADA (agência antidoping dos Estados Unidos)”, explica Franklin.

‘Esporte pressupõe valores’, defende ABCD

O evento de Aron D’Souza é apresentado como uma espécie de defesa das liberdades individuais, da ciência e dos avanços tecnológicos. “Abraçamos a inclusão da ciência nos esportes e acreditamos fundamentalmente que a escolha de usar melhorias é pessoal. Para manter os nossos atletas seguros durante a competição, vamos introduzir um protocolo obrigatório de rastreio médico pré-competição, que ajudará a monitorizar riscos cardíacos e outros marcadores de saúde”.

Adriana Taboza, presidente da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), não considera o argumento razoável. “Tem uma confusão, trazendo a liberdade individual como se ela fosse maior do que o respeito às regras coletivas. A partir do momento que as suas atitudes interferem naquele contexto, elas precisam ser reguladas, e é por isso que a gente tem a política antidopagem em âmbito mundial, porque um dos principais valores do esporte é a paridade de armas e a igualdade. Estamos falando de esporte, e esporte pressupõe valores.”

Nem mesmo o cenário com dopagem liberada a todos os atletas pode ser visto como um gerador de condições de igualdade entre os competidores, explica Taboza. “Quando a gente fala ‘todos estarão dopados’, parece que está falando de uma lista de três substâncias proibidas, cada um vai tomar 5 ml e chegaremos novamente a uma igualdade de disputa. Não é assim. A lista de substâncias e métodos proibidos contém mais de 400 substâncias. Vou disputar com outra pessoa ou disputar comigo? Você só vai poder disputar consigo. Nunca existirá igualdade de armas.”

Outro ponto central quando se fala no controle de dopagem é a proteção à saúde do atleta e à integridade do ambiente esportivo. Além disso, a presidente da ABCD pontua sobre o compromisso inerente aos esportistas que praticam uma modalidade submetida ao código da WADA, exatamente o caso de esportes citados pelo Enhanced Games como integrantes de seu quadro.

“Se você é atleta na competição, você dorme e acorda atleta. Você tem deveres para além das quadras, dos tatames, dos campos”, afirma. “Se o atleta do atletismo, da natação ou da ginástica, que foram citados pela empreitada, resolve competir neste âmbito, ele não deixa de ser atleta para o sistema e continua submetido às regras antidopagem. No caso de atleta que publicamente faz uso de uma substância proibida, não precisamos nem encontrar essa substância no corpo dele, ele está sujeito às sanções aplicadas pelo código mundial, porque essa conduta já configura uma violação à regra antidopagem.”

Embora avalie que a promoção de um evento com dopagem liberada pode ter consequências negativas em termos educacionais, Taboza vê, ao mesmo tempo, uma oportunidade para enriquecer a discussão sobre o tema. “Esse debate traz algumas consequências importantes que podem ser levadas como positivas no processo educativo. Por que faz barulho? Porque é um movimento que chama atenção de tão esdrúxulo, e isso acaba fazendo com que a gente converse sobre o assunto, mesmo trazido de uma forma distorcida”.

Quem está por trás da ‘Olimpíada dos dopados’?

O discurso defendido como filosofia do Enhanced Gaes vai mais além e chega a usar o bordão “Como atletas se tornam super-heróis”, na área do site em que o planejamento do evento é explicado. Em entrevista à agência de notícias Reuters, D’Souza disse ter o objetivo de dar aos atletas a oportunidade de “ultrapassar os limites da humanidade”. Antes, em entrevista ao New York Post, falou também que o evento ajudará em pesquisas sobre “longevidade e envelhecimento saudável”.

A forma como D’Souza expõe suas ambições está alinhada ao pensamento de seus financiadores. O alemão naturalizado americano Peter Thiel, por exemplo, é conhecido por ser entusiasta do transumanismo, a ciência de aperfeiçoar a população com engenharia genética e inteligência artificial.

Fundador do PayPal e um dos primeiros investidores do Facebook, Thiel investiu, em agosto do ano passado, US$ 280 milhões (cerca de R$ 1,4 bilhões) na Neurolink, empresa neurotecnológica de Elon Musk. Também tem participação em empreendimentos que prometem retardar o envelhecimento.

Outro investidor do Enhanced Games é Christian Angermayer, do Grupo Apeiron, que coloca seu dinheiro em negócios relacionados a experiências biológicas, fintechs, inteligência artificial, farmacêuticos psicodélicos e criptomoedas. Balaji Srinivasan, ex-diretor de tecnologia da casa de câmbio digital Coinbase, também está investindo no evento esportivo.

Atletas competindo sob o efeito de substâncias proibidas em provas de atletismo, esportes aquáticos, ginástica, força e combate. Esta é a ideia central do Enhanced Games - Jogos “Aprimorados”, em tradução livre -, um evento planejado pelo empresário e advogado australiano Aron D’Souza e financiado por bilionários do Vale do Silício, como o controverso Peter Thiel, cofundador do PayPal e ex-aliado de Donald Trump, penúltimo presidente dos EUA e candidato nas próximas eleições.

A promoção de uma competição desta natureza foi muito mal recebida pelos principais órgãos relacionados ao esporte. Em nota enviada ao Estadão, a Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) definiu o projeto como “perigoso e irresponsável” e alertou sobre os riscos de promover abertamente a dopagem. “A saúde e o bem-estar dos atletas são prioridades da WADA. Este evento colocaria ambos em risco, promovendo o abuso de substâncias e métodos que só deveriam ser prescritos, se o fossem, para necessidades terapêuticas específicas e sob a supervisão de médicos capacitados. Como temos visto na história, drogas que melhoram o desempenho causam terrível impacto físico e mental. Alguns morreram”, diz a nota. “Atletas são modelos e a WADA acredita que este evento enviaria um sinal errado aos jovens”, completa.

Medalhista olímpico James Magnussen se dispôs a participar de evento esportivo com doping liberado. Foto: Daniel Ochoa de Olza/AP

A agência deixa claro que atletas que participarem do Enhanced Games, caso de fato as disputam aconteçam, estarão correndo o risco de violar o Código Mundial Antidopagem e, portanto, sujeitos a punições. O nadador australiano James Magnussen, dono de dois bronzes e uma prata olímpica, já afirmou que estaria disposto a participar da “Olimpíada dos dopados” para tentar bater o recorde dos 50 metros, do qual o brasileiro Cesar Cielo é detentor, com o tempo 20s91.

“A WADA alerta atletas e suas equipes, que desejam participar em desporto limpo, que se participarem dos ‘Jogos Aprimorados’ correriam o risco de cometer violações das regras antidopagem do Código Mundial Antidoping. Também colocariam a sua reputação em risco, pois poderiam ficar para sempre associados ao doping. Para ser claro, a WADA incentivará as Organizações Antidoping em todo o mundo a testar os atletas envolvidos antes, durante e depois deste evento, a fim de proteger a integridade do desporto legítimo”, afirma.

Evento se opõe à Olimpíada e tenta ganhar atletas pelo bolso

Em seu site oficial, o Enhanced Games diz estar “reinventando o esporte a partir de uma folha em branco, livre de legados anacrônicos” e se coloca como oposição à tradicional Olimpíada, referindo-se também à remuneração milionária prometida aos atletas. O tom adotado é de desafio ao Comitê Olímpico Internacional (COI) .

“Apoiada por bilionários e pelas principais empresas de capital de risco do mundo, a Enhanced será capaz de se autofinanciar”, diz. “Rejeitamos a cleptocracia das chamadas federações desportivas ‘sem fins lucrativos’. O pagamento insuficiente aos atletas é a principal falha moral do Movimento Olímpico; é um vestígio do sentimento aristocrático por trás da ultrapassada exigência de ‘amador’ não remunerado”, completa.

Na Olimpíada, atletas não recebem premiação em dinheiro do COI e as remunerações ficam a cargo das entidades nacionais. O Comitê Olímpico do Brasil (COB), por exemplo, pagará R$ 350 mil aos medalhistas de ouro em esportes individuais nos Jogos de Paris- 2024. Para prata e bronze, serão R$ 210 mil e R$ 140 mil, respectivamente. A premiação é recorde e 40% superior aos Jogos de Tóquio, de 2021.

Embora não fale em números, a organização do Enhanced Games promete um salário base aos participantes e prêmios maiores do que qualquer outro evento comparável na história. Detalhes completos da estrutura de remuneração, assim como datas, serão revelados ainda no primeiro semestre deste ano. Ao New York Post, Aron D’Souza disse que divulgará mais informações no dia 17 de abril. Ele também estará em Paris, entre julho e agosto, durante a Olimpíada, para promover seu evento.

WADA condenou como "irresponsável" a ideia de promover um evento esportivo com atletas dopados. Foto: Andrej Ivanov / AFP

Marcelo Franklin, advogado referência internacional em antidoping e professor do assunto no Instituto Superior de Direito e Economia de Madri, acredita que um debate sobre a remuneração dos atletas é um dos poucos desfechos úteis que a proposta de D’Souza e seus financiadores pode trazer. Franklin identifica, entre os atletas, a percepção de que deveriam ser mais bem remunerados, levando em conta os altos valores dos contratos de venda de direitos de transmissão de grandes eventos, como a Olimpíada.

“Nem acredito que o projeto Enhanced Games saia do papel. Um evento no qual seres humanos comprometem a saúde, para bater recordes em troca de altas quantias em dinheiro, além de imoral, pode ser considerado ilegal em alguns países. O debate serve para alertar o COI sobre a necessidade de destinar uma maior “fatia do bolo” aos atletas, bem como adotar um sistema antidopagem com sanções mais justas e proporcionais às violações, sob pena de perder suas estrelas para organizações despreocupadas com a saúde e o fair play, como a Enhanced Games”, diz o advogado ao Estadão.

Quanto ao doping em si, existe uma discussão sobre a duração das sanções aplicadas em casos de testes positivos, mas a liberação de drogas para a melhoria de desempenho, sem nenhum controle, não é sequer cogitada pela maioria das instituições. Algumas franquias esportivas defendem que suspensões de 2 a 4 anos, previstas pelo Código da WADA, são desproporcionais e adotam regras desvinculadas da WADA e do COI. “Por exemplo, recentemente, o UFC rompeu com a USADA (agência antidoping dos Estados Unidos)”, explica Franklin.

‘Esporte pressupõe valores’, defende ABCD

O evento de Aron D’Souza é apresentado como uma espécie de defesa das liberdades individuais, da ciência e dos avanços tecnológicos. “Abraçamos a inclusão da ciência nos esportes e acreditamos fundamentalmente que a escolha de usar melhorias é pessoal. Para manter os nossos atletas seguros durante a competição, vamos introduzir um protocolo obrigatório de rastreio médico pré-competição, que ajudará a monitorizar riscos cardíacos e outros marcadores de saúde”.

Adriana Taboza, presidente da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), não considera o argumento razoável. “Tem uma confusão, trazendo a liberdade individual como se ela fosse maior do que o respeito às regras coletivas. A partir do momento que as suas atitudes interferem naquele contexto, elas precisam ser reguladas, e é por isso que a gente tem a política antidopagem em âmbito mundial, porque um dos principais valores do esporte é a paridade de armas e a igualdade. Estamos falando de esporte, e esporte pressupõe valores.”

Nem mesmo o cenário com dopagem liberada a todos os atletas pode ser visto como um gerador de condições de igualdade entre os competidores, explica Taboza. “Quando a gente fala ‘todos estarão dopados’, parece que está falando de uma lista de três substâncias proibidas, cada um vai tomar 5 ml e chegaremos novamente a uma igualdade de disputa. Não é assim. A lista de substâncias e métodos proibidos contém mais de 400 substâncias. Vou disputar com outra pessoa ou disputar comigo? Você só vai poder disputar consigo. Nunca existirá igualdade de armas.”

Outro ponto central quando se fala no controle de dopagem é a proteção à saúde do atleta e à integridade do ambiente esportivo. Além disso, a presidente da ABCD pontua sobre o compromisso inerente aos esportistas que praticam uma modalidade submetida ao código da WADA, exatamente o caso de esportes citados pelo Enhanced Games como integrantes de seu quadro.

“Se você é atleta na competição, você dorme e acorda atleta. Você tem deveres para além das quadras, dos tatames, dos campos”, afirma. “Se o atleta do atletismo, da natação ou da ginástica, que foram citados pela empreitada, resolve competir neste âmbito, ele não deixa de ser atleta para o sistema e continua submetido às regras antidopagem. No caso de atleta que publicamente faz uso de uma substância proibida, não precisamos nem encontrar essa substância no corpo dele, ele está sujeito às sanções aplicadas pelo código mundial, porque essa conduta já configura uma violação à regra antidopagem.”

Embora avalie que a promoção de um evento com dopagem liberada pode ter consequências negativas em termos educacionais, Taboza vê, ao mesmo tempo, uma oportunidade para enriquecer a discussão sobre o tema. “Esse debate traz algumas consequências importantes que podem ser levadas como positivas no processo educativo. Por que faz barulho? Porque é um movimento que chama atenção de tão esdrúxulo, e isso acaba fazendo com que a gente converse sobre o assunto, mesmo trazido de uma forma distorcida”.

Quem está por trás da ‘Olimpíada dos dopados’?

O discurso defendido como filosofia do Enhanced Gaes vai mais além e chega a usar o bordão “Como atletas se tornam super-heróis”, na área do site em que o planejamento do evento é explicado. Em entrevista à agência de notícias Reuters, D’Souza disse ter o objetivo de dar aos atletas a oportunidade de “ultrapassar os limites da humanidade”. Antes, em entrevista ao New York Post, falou também que o evento ajudará em pesquisas sobre “longevidade e envelhecimento saudável”.

A forma como D’Souza expõe suas ambições está alinhada ao pensamento de seus financiadores. O alemão naturalizado americano Peter Thiel, por exemplo, é conhecido por ser entusiasta do transumanismo, a ciência de aperfeiçoar a população com engenharia genética e inteligência artificial.

Fundador do PayPal e um dos primeiros investidores do Facebook, Thiel investiu, em agosto do ano passado, US$ 280 milhões (cerca de R$ 1,4 bilhões) na Neurolink, empresa neurotecnológica de Elon Musk. Também tem participação em empreendimentos que prometem retardar o envelhecimento.

Outro investidor do Enhanced Games é Christian Angermayer, do Grupo Apeiron, que coloca seu dinheiro em negócios relacionados a experiências biológicas, fintechs, inteligência artificial, farmacêuticos psicodélicos e criptomoedas. Balaji Srinivasan, ex-diretor de tecnologia da casa de câmbio digital Coinbase, também está investindo no evento esportivo.

Atletas competindo sob o efeito de substâncias proibidas em provas de atletismo, esportes aquáticos, ginástica, força e combate. Esta é a ideia central do Enhanced Games - Jogos “Aprimorados”, em tradução livre -, um evento planejado pelo empresário e advogado australiano Aron D’Souza e financiado por bilionários do Vale do Silício, como o controverso Peter Thiel, cofundador do PayPal e ex-aliado de Donald Trump, penúltimo presidente dos EUA e candidato nas próximas eleições.

A promoção de uma competição desta natureza foi muito mal recebida pelos principais órgãos relacionados ao esporte. Em nota enviada ao Estadão, a Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) definiu o projeto como “perigoso e irresponsável” e alertou sobre os riscos de promover abertamente a dopagem. “A saúde e o bem-estar dos atletas são prioridades da WADA. Este evento colocaria ambos em risco, promovendo o abuso de substâncias e métodos que só deveriam ser prescritos, se o fossem, para necessidades terapêuticas específicas e sob a supervisão de médicos capacitados. Como temos visto na história, drogas que melhoram o desempenho causam terrível impacto físico e mental. Alguns morreram”, diz a nota. “Atletas são modelos e a WADA acredita que este evento enviaria um sinal errado aos jovens”, completa.

Medalhista olímpico James Magnussen se dispôs a participar de evento esportivo com doping liberado. Foto: Daniel Ochoa de Olza/AP

A agência deixa claro que atletas que participarem do Enhanced Games, caso de fato as disputam aconteçam, estarão correndo o risco de violar o Código Mundial Antidopagem e, portanto, sujeitos a punições. O nadador australiano James Magnussen, dono de dois bronzes e uma prata olímpica, já afirmou que estaria disposto a participar da “Olimpíada dos dopados” para tentar bater o recorde dos 50 metros, do qual o brasileiro Cesar Cielo é detentor, com o tempo 20s91.

“A WADA alerta atletas e suas equipes, que desejam participar em desporto limpo, que se participarem dos ‘Jogos Aprimorados’ correriam o risco de cometer violações das regras antidopagem do Código Mundial Antidoping. Também colocariam a sua reputação em risco, pois poderiam ficar para sempre associados ao doping. Para ser claro, a WADA incentivará as Organizações Antidoping em todo o mundo a testar os atletas envolvidos antes, durante e depois deste evento, a fim de proteger a integridade do desporto legítimo”, afirma.

Evento se opõe à Olimpíada e tenta ganhar atletas pelo bolso

Em seu site oficial, o Enhanced Games diz estar “reinventando o esporte a partir de uma folha em branco, livre de legados anacrônicos” e se coloca como oposição à tradicional Olimpíada, referindo-se também à remuneração milionária prometida aos atletas. O tom adotado é de desafio ao Comitê Olímpico Internacional (COI) .

“Apoiada por bilionários e pelas principais empresas de capital de risco do mundo, a Enhanced será capaz de se autofinanciar”, diz. “Rejeitamos a cleptocracia das chamadas federações desportivas ‘sem fins lucrativos’. O pagamento insuficiente aos atletas é a principal falha moral do Movimento Olímpico; é um vestígio do sentimento aristocrático por trás da ultrapassada exigência de ‘amador’ não remunerado”, completa.

Na Olimpíada, atletas não recebem premiação em dinheiro do COI e as remunerações ficam a cargo das entidades nacionais. O Comitê Olímpico do Brasil (COB), por exemplo, pagará R$ 350 mil aos medalhistas de ouro em esportes individuais nos Jogos de Paris- 2024. Para prata e bronze, serão R$ 210 mil e R$ 140 mil, respectivamente. A premiação é recorde e 40% superior aos Jogos de Tóquio, de 2021.

Embora não fale em números, a organização do Enhanced Games promete um salário base aos participantes e prêmios maiores do que qualquer outro evento comparável na história. Detalhes completos da estrutura de remuneração, assim como datas, serão revelados ainda no primeiro semestre deste ano. Ao New York Post, Aron D’Souza disse que divulgará mais informações no dia 17 de abril. Ele também estará em Paris, entre julho e agosto, durante a Olimpíada, para promover seu evento.

WADA condenou como "irresponsável" a ideia de promover um evento esportivo com atletas dopados. Foto: Andrej Ivanov / AFP

Marcelo Franklin, advogado referência internacional em antidoping e professor do assunto no Instituto Superior de Direito e Economia de Madri, acredita que um debate sobre a remuneração dos atletas é um dos poucos desfechos úteis que a proposta de D’Souza e seus financiadores pode trazer. Franklin identifica, entre os atletas, a percepção de que deveriam ser mais bem remunerados, levando em conta os altos valores dos contratos de venda de direitos de transmissão de grandes eventos, como a Olimpíada.

“Nem acredito que o projeto Enhanced Games saia do papel. Um evento no qual seres humanos comprometem a saúde, para bater recordes em troca de altas quantias em dinheiro, além de imoral, pode ser considerado ilegal em alguns países. O debate serve para alertar o COI sobre a necessidade de destinar uma maior “fatia do bolo” aos atletas, bem como adotar um sistema antidopagem com sanções mais justas e proporcionais às violações, sob pena de perder suas estrelas para organizações despreocupadas com a saúde e o fair play, como a Enhanced Games”, diz o advogado ao Estadão.

Quanto ao doping em si, existe uma discussão sobre a duração das sanções aplicadas em casos de testes positivos, mas a liberação de drogas para a melhoria de desempenho, sem nenhum controle, não é sequer cogitada pela maioria das instituições. Algumas franquias esportivas defendem que suspensões de 2 a 4 anos, previstas pelo Código da WADA, são desproporcionais e adotam regras desvinculadas da WADA e do COI. “Por exemplo, recentemente, o UFC rompeu com a USADA (agência antidoping dos Estados Unidos)”, explica Franklin.

‘Esporte pressupõe valores’, defende ABCD

O evento de Aron D’Souza é apresentado como uma espécie de defesa das liberdades individuais, da ciência e dos avanços tecnológicos. “Abraçamos a inclusão da ciência nos esportes e acreditamos fundamentalmente que a escolha de usar melhorias é pessoal. Para manter os nossos atletas seguros durante a competição, vamos introduzir um protocolo obrigatório de rastreio médico pré-competição, que ajudará a monitorizar riscos cardíacos e outros marcadores de saúde”.

Adriana Taboza, presidente da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), não considera o argumento razoável. “Tem uma confusão, trazendo a liberdade individual como se ela fosse maior do que o respeito às regras coletivas. A partir do momento que as suas atitudes interferem naquele contexto, elas precisam ser reguladas, e é por isso que a gente tem a política antidopagem em âmbito mundial, porque um dos principais valores do esporte é a paridade de armas e a igualdade. Estamos falando de esporte, e esporte pressupõe valores.”

Nem mesmo o cenário com dopagem liberada a todos os atletas pode ser visto como um gerador de condições de igualdade entre os competidores, explica Taboza. “Quando a gente fala ‘todos estarão dopados’, parece que está falando de uma lista de três substâncias proibidas, cada um vai tomar 5 ml e chegaremos novamente a uma igualdade de disputa. Não é assim. A lista de substâncias e métodos proibidos contém mais de 400 substâncias. Vou disputar com outra pessoa ou disputar comigo? Você só vai poder disputar consigo. Nunca existirá igualdade de armas.”

Outro ponto central quando se fala no controle de dopagem é a proteção à saúde do atleta e à integridade do ambiente esportivo. Além disso, a presidente da ABCD pontua sobre o compromisso inerente aos esportistas que praticam uma modalidade submetida ao código da WADA, exatamente o caso de esportes citados pelo Enhanced Games como integrantes de seu quadro.

“Se você é atleta na competição, você dorme e acorda atleta. Você tem deveres para além das quadras, dos tatames, dos campos”, afirma. “Se o atleta do atletismo, da natação ou da ginástica, que foram citados pela empreitada, resolve competir neste âmbito, ele não deixa de ser atleta para o sistema e continua submetido às regras antidopagem. No caso de atleta que publicamente faz uso de uma substância proibida, não precisamos nem encontrar essa substância no corpo dele, ele está sujeito às sanções aplicadas pelo código mundial, porque essa conduta já configura uma violação à regra antidopagem.”

Embora avalie que a promoção de um evento com dopagem liberada pode ter consequências negativas em termos educacionais, Taboza vê, ao mesmo tempo, uma oportunidade para enriquecer a discussão sobre o tema. “Esse debate traz algumas consequências importantes que podem ser levadas como positivas no processo educativo. Por que faz barulho? Porque é um movimento que chama atenção de tão esdrúxulo, e isso acaba fazendo com que a gente converse sobre o assunto, mesmo trazido de uma forma distorcida”.

Quem está por trás da ‘Olimpíada dos dopados’?

O discurso defendido como filosofia do Enhanced Gaes vai mais além e chega a usar o bordão “Como atletas se tornam super-heróis”, na área do site em que o planejamento do evento é explicado. Em entrevista à agência de notícias Reuters, D’Souza disse ter o objetivo de dar aos atletas a oportunidade de “ultrapassar os limites da humanidade”. Antes, em entrevista ao New York Post, falou também que o evento ajudará em pesquisas sobre “longevidade e envelhecimento saudável”.

A forma como D’Souza expõe suas ambições está alinhada ao pensamento de seus financiadores. O alemão naturalizado americano Peter Thiel, por exemplo, é conhecido por ser entusiasta do transumanismo, a ciência de aperfeiçoar a população com engenharia genética e inteligência artificial.

Fundador do PayPal e um dos primeiros investidores do Facebook, Thiel investiu, em agosto do ano passado, US$ 280 milhões (cerca de R$ 1,4 bilhões) na Neurolink, empresa neurotecnológica de Elon Musk. Também tem participação em empreendimentos que prometem retardar o envelhecimento.

Outro investidor do Enhanced Games é Christian Angermayer, do Grupo Apeiron, que coloca seu dinheiro em negócios relacionados a experiências biológicas, fintechs, inteligência artificial, farmacêuticos psicodélicos e criptomoedas. Balaji Srinivasan, ex-diretor de tecnologia da casa de câmbio digital Coinbase, também está investindo no evento esportivo.

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