Um dos 29 atletas que integram o time de refugiados nos Jogos Olímpicos de Tóquio é quase brasileiro. Popole Misenga, 29 anos, sobreviveu à segunda guerra do Congo que durou cinco anos e deixou 6 milhões de mortos, inclusive sua mãe, conseguiu se destacar no judô desde pequeno, apesar das dificuldades, e vive no Brasil desde 2013, quando pediu asilo político depois de sofrer abusos físicos e psicológicos de seus treinadores. “Me separei dos meus irmãos durante a guerra. Vi muitos mortos e crianças largadas na rua. Eram bombas para todo o lado”, relata o atleta ao Estadão. Na época do conflito em seu país, ele tinha nove anos.
Depois que sua mãe foi assassinada, ele fugiu para uma floresta e deambulou durante alguns dias até ser levado de barco para a capital Kinshasa, onde começou a praticar judô num centro para crianças resgatadas. “Quando comecei a treinar, não pensava em ser atleta. Só pensava em lutar”, diz. Embora não pensasse nisso, o judô foi mais do que uma distração para os problemas de Misenga, que progrediu no esporte e se tornou lutador profissional, prestes a competir em sua segunda Olimpíada. Durante a conversa com a reportagem, não escondeu o amor pelo esporte que lhe deu uma nova vida.
Em 2010, Popole levou o bronze no Campeonato Africano Sub-20. Em 2013, veio ao Brasil para participar do Mundial de Judô do Rio e acabou desertando. Ele acusou os treinadores da seleção de prender os judocas no hotel e de usar o dinheiro destinado a eles para fazer turismo no Rio. Os treinadores, ele diz, trancavam os judocas em gaiolas quando não alcançavam um bom desempenho e lhes deixavam passar fome. “Eles (técnicos) chegaram bêbados de uma boate no Rio e nem me perguntaram como foi minha luta”, conta ele, que diz ter ficado dois dias presos no hotel.
Misenga e outra companheira buscaram refúgio na favela Brás de Pina, repleta de imigrantes no Rio. Apesar de viver em condições ruins, ele finalmente estava livre de seus algozes. Após um ano no Brasil, em setembro de 2014, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) concedeu o status de refugiado ao judoca.
No Rio, inicialmente, Misenga não teve uma vida fácil. Não sofreu tanto quanto na guerra em seu país, mas, sem recursos e longe da família, encontrou dificuldades para se sustentar. Viveu na rua e novamente passou fome. Continuidade do sofrimento na terra natal. Ele trabalhou como carregador de caminhão e ajudante de supermercado, entre outros bicos. Perdeu algumas oportunidades pela barreira linguística, já que não sabia falar português e não conseguia se fixar em um emprego. O cenário mudou em 2015, quando foi convidado a treinar no Instituto Reação, fundado pelo ex-judoca brasileiro Flávio Canto. A instalação atende jovens afetados pela pobreza e pelo crime.
A Caritas, órgão da Arquidiocese do Rio de Janeiro que auxilia refugiados no Brasil, foi quem apresentou Misenga ao ex-judoca Flávio Canto. O veterano Geraldo Bernardes, treinador que formou, além de Canto, a campeã olímpica Rafaela Silva, é, até hoje, responsável pelos treinamentos de Misenga.
“Fui chamado e escolhido pelo instituto”, disse o congolês. “Me deu a chance de vencer, de fazer uma vida e de escapar da violência que no Rio”. Depois de poucos meses treinando, ele disputou a Olimpíada do Rio. Foi selecionado para a primeira equipe de refugiados do Comitê Olímpico Internacional (COI). A medalha não veio, mas isso não importou à época. Misenga foi surpreendido pelo público na arena. Eles gritaram o nome do judoca, que saiu do tatame ovacionado. A cena, conta, não saiu mais de sua mente e virou combustível para buscar a sonhada medalha olímpica.
“Nunca pensei que fossem gritar meu nome”, recorda-se. “Mesmo perdendo, não acho que perdi. Ganhei uma boa experiência para me ajudar chegar à Olimpíada de 2020 e ganhar uma medalha. Jamais vou esquecer daquela Olimpíada”.
Em busca da medalha em Tóquio
Em 2019, Misenga recebeu uma bolsa de estudos para atletas refugiados do COI que permitiu que se mudasse com a mulher brasileira e os filhos para longe da favela e para mais perto de seu centro de treinamento, onde treinou para disputar sua segunda Olimpíada, em Tóquio. Ele é pai de duas crianças, mas ajuda a cuidar de outras três, filhos de sua mulher, Fabiana.
“Agora sou pai, tenho que fazer uma coisa boa”, reflete. “Eu estou lutando por eles, para que suas vidas sejam boas amanhã, e para que eles não sofram o que eu passei na vida, o que eu sofri”.
A equipe de refugiados quase triplicou da Rio-2016 para os Jogos de Tóquio. Misenga é um dos 29 competidores de 11 países e 12 modalidades, que vivem e treinam em 13 nações. Eles representam 26 milhões de refugiados em todo o mundo, pessoas que foram forçadas a deixar seus países por causa de guerras, violações de direitos humanos e perseguições.
O Brasil reconheceu oficialmente em 2018 1.086 refugiados de diversas nacionalidades. Ao todo, são 11.231 refugiados oficialmente reconhecidos no País. Os dados são da quarta edição da publicação Refúgio em Números, divulgada em julho de 2019.
Misenga crê que vive seu melhor momento esportivo. Teve todo um ciclo olímpico para se preparar para Tóquio-2020 e foi treinado por Geraldo Bernardes, técnico que ajudou a forjar grandes medalhistas olímpicos. “Estou pronto para brigar por uma medalha. Treinei muito forte. Estou em um nível técnico muito mais alto do que antes”, resume.
Para além do sonho olímpico, o congolês tem outras metas depois de competir em Tóquio. Quer ainda voltar ao tatame nos Jogos de Paris, em 2024 e aposentar-se com a experiência de ter disputado três vezes edições de Olimpíada. Depois disso, planeja ser treinador. Fora do esporte, sonha buscar os irmãos no Congo.
“Eu sei que sou um embaixador de refugiados”, orgulha-se. “Mas todas as pessoas são iguais. Todos nós temos cabelo, unhas, dentes e nariz. Não há nada de ofensivo em ser um refugiado”. Sua estreia em Tóquio ocorre na noite da próxima terça-feira (pelo horário de Brasília). Lutando na categoria até 90kg, ele encara o húngaro Krisztian Toth.