Os brasileiros que decidiram desistir da Olimpíada: ‘Resiliência não é bater um prego na testa’


Mudança de mentalidade sobre cultura do sofrimento no esporte ajudou atletas como Bruno Fratus e Henrique Avancini a entenderem que era hora de parar de se sacrificar em prol da competitividade

Por Bruno Accorsi

Paula Radcliffe era detentora do recorde mundial quando colocou as mãos nos joelhos e começou a chorar, durante a disputa da maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. A britânica, que continuaria recordista por 15 anos, não conseguiu completar a prova, o que a fez ser massacrada por parte da imprensa do Reino Unido. Afinal, havia desistido, e não importavam as explicações de que tinha sofrido uma lesão muscular pouco tempo antes da Olimpíada e que os medicamentos tomados para tratar o problema causaram uma irritação intestinal.

Mais tarde, em 2020, a maratonista disse à Sky Sports que “absolutamente não” competiria se não fosse uma maratona olímpica, o auge do esporte. A história de Radcliffe é uma das muitas citadas pela escritora Annelise Chen em seu livro Esforços Olímpicos, um romance com elementos de ensaio que questiona a cultura de sofrimento e a noção de sucesso e superação no meio esportivo e na sociedade. A obra foi lançada em 2019 e acompanhou o avanço de uma discussão que teve seu ápice nos Jogos de Tóquio, em 2021, quando as desistências da ginasta Simone Biles durante a competição, para cuidar da saúde mental, trouxeram o tema ao grande público.

No ciclo para os Jogos de Paris, a sensação é que o peso da palavra desistir não é mais o mesmo no mundo do esporte, assim como a relação dos atletas com o sofrimento e os sacrifícios desta carreira. “Existe uma romantização de coisas do tipo, como esse sofrimento, resiliência, até o ponto que a gente lembra que resiliência não quer dizer você bater um prego com a testa. Você precisa ser inteligente e usar a ferramenta certa para aquela atividade”, comenta o nadador brasileiro Bruno Fratus, medalhista de bronze dos 50 metros livre em Tóquio, ao Estadão.

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Bruno Fratus foi medalhista dos 50 metros livre nos Jogos de Tóquio. Foto: Gaspar Nóbrega/COB

Aos 34 anos, Fratus tinha planos de disputar as duas próximas Olimpíadas, mas decidiu não participar da seletiva brasileira que daria vaga a Paris-2024 por estar certo de que não conseguiria ser competitivo nos Jogos. Após três cirurgias no ombro em pouco mais de um ano e outra no joelho, em fevereiro deste ano, o físico e o emocional já não eram mais os mesmos. Até a relação com a natação estava abalada.

“A partir do momento que você se vê constantemente lesionado, impossibilitado de fazer o que você quer fazer, o que você gosta de fazer, que é ser um atleta, competir, isso vai gerando um peso muito grande na parte mental. Até o ponto que aquela atividade que era uma grande motivação, a razão da sua vida, da sua existência, passa a ser algo extremamente doloroso no seu dia”, diz.

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O medalhista olímpico está dando um tempo das piscinas, mas não está aposentado. “Foi meio que aquele término que as duas pessoas do relacionamento entendem que, apesar de se amarem muito, é melhor separar, e ainda não é o momento de cultivar uma amizade, porque tem muita coisa que está curando, que está aberta.”

Em um primeiro momento, ao se ver pensando na possibilidade de parar, desistir ou abrir mão de uma competição, o atleta pode questionar se cedeu a um impulso de fraqueza, já que está acostumado a resistir. Isso passou pela cabeça de Fratus, mas todo o processo mental o levou a concluir que estava diante de uma demanda interna importante.

“A partir do momento que você toma uma decisão contraintuitiva como escolher algo diferente à resiliência física, parece estranho, parece errado. O pensamento de desistência veio. Depois entendi, não é desistência, é priorização. Eu estou priorizando outros aspectos, escolhendo outros desafios, outro caminho. Isso, lógico, vem com o entendimento de que a vida não é só natação, esporte, competição. Me dei conta que eu estava negligenciando uma parte muito importante da minha vida em prol de um resultado esportivo”, afirma.

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Como diz o nadador medalhista olímpico, a rotina de competidor leva “a vida social a zero” e as relações mais próximas se restringem ao âmbito profissional. No caso dele, até com a própria mulher, Michelle Lenhardt, também sua treinadora. “Não pode estar em feriado, em aniversário. Eu saio do papel de marido de tempos em tempos e acabo sendo atleta dentro de casa. Quanto mais disso vai ser o suficiente para satisfazer essa busca obsessiva e desenfreada por performance? Se estivesse tudo bem, seguiria o jogo, mas não estava”, explica.

Fratus está satisfeito com a decisão e com o que vem colhendo desde então. Não se trata apenas de ter recuperado e solidificado relações, mas também de ter se conectado com questões que eram suprimidas pela rotina levada até pouco tempo atrás.

“Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento”. reflete. “Foi isso que me fez chegar onde cheguei, mas a um preço alto. Tirei essa mentalidade extremista em relação à performance e comecei a ser um cara mais de boa. Aconteça o que acontecer o sol vai nascer amanhã, o mundo continua girando e a gente vai dar um jeito no que tiver que dar”, conclui.

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Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento

Bruno Fratus

A hora de sair de cena

Alguns dos sentimentos de Fratus são semelhantes aos cultivados pelo ciclista Henrique Avancini, outro atleta brasileiro que poderia estar em Paris e decidiu não continuar com a busca pela classificação. O ícone do mountain bike, contudo, deu um passo mais radical e se aposentou em agosto de 2023, mesmo com chances altíssimas de ir à sua terceira Olimpíada.

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No final das contas, os 1.277 pontos que somou no ranking da União Internacional de Ciclismo (UCI, na sigla em inglês) durante o período deste ciclo olímpico ajudaram o Brasil a terminar em nono lugar, obtendo uma vaga. As cotas do mountain bike são por país e abarcaram o período de 2022 até o meio de maio de 2024, por isso os pontos dele foram contabilizados.

O convocado pela Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) para ocupar a cota brasileira foi Ulan Galinski, integrante da Avancini Racing. Ter saído de cena para abrir espaço para um jovem ciclista faz o campeão mundial e ex-número 1 do mundo ficar ainda mais certo de sua escolha.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida. Em contrapartida, muda a vida de quem for. Então, acho que não foi tão difícil eu abrir mão assim dos Jogos Olímpicos de Paris”, explica Avancini ao Estadão.

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Henrique Avancini foi bicampeão mundial da maratona cross-country, modalidade não olímpica, antes de se aposentar. Foto: Divulgação/UCI

A decisão foi tomada de forma muito consciente, mesmo tendo vivido uma grande frustração na Olimpíada anterior. No clico de Tóquio, o ciclista petropolitano teve grande evolução e chegou a liderar o ranking da UCI em 2020. Durante os jogos, foi 13º, melhor resultado de um brasileiro no MTB olímpico, mas motivo de decepção para Avanicni. “Tive problemas, alguns problemas com o meu time, problemas de saúde. Enfim, para mim foi uma grande frustração. Então, as minhas memórias olímpicas não são tão prazerosas.’

O desapontamento no Japão, contudo, não impediu o ciclista de pensar com clareza quando decidiu se aposentar podendo ir a Paris. Ele vinha sofrendo com consecutivas lesões e foi diagnosticado com depressão. Neste período, teve de lidar com um problema de saúde que fez sua filha Liz, na época com 4 anos, passar duas semanas na UTI. Chegou até a bater o carro, tamanho o desgaste emocional.

“Ter mais uma chance era algo que eu considerava, pensava ‘pô, eu mereço correr os Jogos Olímpicos de novo’. Só que 2023 foi um ano pesado para mim, principalmente pelas lesões que eu tive no quadril, no joelho. Foi um ano muito maçante para mim”, afirma.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida.

Henrique Avancini

O trabalho fora das piscinas, das trilhas, das quadras...

Os esforços logísticos e financeiros de se manter como atleta olímpico também contribuem para minar ambições ao longos dos anos. No mountain bike, ir bem em uma Olímpiada depende de muita coisa. Embora tenha tido suporte do COB no último ciclo, Avancini vê muitos desafios na parte da preparação.

“Como fui top 1 do mundo, tive um pouquinho de influência para trazer a minha fisioterapeuta e o meu mecânico para Tóquio. Conseguia manter um pouco mais do que era a minha rotina de trabalho, mas você precisa se adequar a um método de trabalho do Comitê Olímpico. No caso do mountain bike, isso impacta demais, porque geralmente você trabalha com mais pessoas com o conhecimento específico da modalidade. E aí, pela restrição de espaço, de credenciais, o número das delegações, isso impacta demais o atleta”

Mais crítico, Fratus também vê limitações em se manter como atleta de alta performance dentro da natação, mesmo depois de ter se tornado medalhista olímpico. Ele é gestor da própria carreira, ao lado da mulher Michelle, situação que atribui ao quão sobrecarregadas estão as instituições esportivas.

“O alto rendimento no Brasil é regido por dois pilares: o COB, que fornece esse ambiente de alto rendimento, e os clubes, que estão extremamente sobrecarregados. Cuidam da formação, do alto rendimento, do nível olímpico, e é dividido com a parte social, o sócio que está usando com a família, lazer. Dois corpos não conseguem ocupar o mesmo espaço, o que acaba espremendo profissionais para fora do País. Ao mesmo tempo, o Comitê tem sua limitações políticas, burocráticas, algo compreensível de uma instituição que se mantém, na maior parte, com dinheiro público”, diz.

“Só que isso faz com que seja extremamente complexo e desgastante fazer alto rendimento no Brasil. É um processo penoso, gera muita discussão. Às vezes o simples fato de todas as pessoas terem o mesmo objetivo já é difícil. É uma parte que acaba dando uma fadigada, já no seu quarto ciclo olímpico. Precisar explicar a coisa diversas vezes, precisar lutar pela mesma situação que você já conseguiu no passado. Precisar justificar algo que os resultados, no ponto de vista de atleta, seriam suficientes para justificar”, completa.

Caminhos e prioridades

Não estar focado na busca incessante pela Olímpiada traz a oportunidade de procurar novos caminhos ou priorizar outros aspectos pessoais. Há atletas que deixaram a corrida olímpica de lado já planejando os próximos passos, caso de Letícia Bufoni, que agora divide o skate com o automobilismo. Referência para a geração de Rayssa Leal, a brasileira é multicampeã do X Games e foi vencedora da primeira edição feminina da liga mundial de street, a SLS, em 2015, ano em que eram dados os primeiros passos para transformar o skate em esporte olímpico.

Bufoni chegou aos Jogos de Tóquio como quarta do ranking mundial, não alcançou a final e terminou em nono lugar. Pretendia ir a Paris, mas refletiu melhor sobre isso depois de perder os dois primeiros eventos do classificatório olímpico do atual ciclo e decidiu não tentar a qualificação.

Ao anunciar a decisão, em entrevista à ESPN, disse que travou “uma batalha interna” até chegar à conclusão de que gostaria de priorizar outros projetos. Hoje, continua priorizando o skate, tanto que vai disputar o X Games no final deste mês, mas tem se dedicado também à Porsche Cup. Durante os Jogos Olímpicos de Paris, vai comentar as provas do street pela Globo.

Letícia Bufoni realiza manobra na pista de skate construída dentro de um avião Foto: Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool.

Dedicar-se a outros projetos foi um dos motivos que levou o ponteiro Douglas Souza, campeão olímpico com a seleção masculina de vôlei na Olímpiada do Rio-2016, a afastar-se temporariamente do esporte. Durante os Jogos de Tóquio, potencializou sua imagem ao angariar seguidores nas redes sociais, graças aos vídeos que fazia em seu quarto na Vila Olímpica. Junto a isso, virou uma importante voz da comunidade LGBTQIA+ no esporte.

Depois da disputa no Japão, Douglas se aposentou da seleção e decidiu tirar um período sabático. Acabou se envolvendo com o entretenimento, participou até da Dança dos Famosos e trabalhou como streamer, produzindo conteúdo voltado ao universo gamer. Ficou sem jogar de 2021 até o meio de 2022, quando assinou com o Farma Conde/São José, equipe que deixou para defender o Cruzeiro.

A aposentadoria da seleção continuou, mas a primeira convocação de Bernardinho, de volta ao comando do Brasil, surpreendeu a todos. Douglas apareceu na lista para a Liga das Nações, última competição oficial antes dos Jogos de Paris. Surgiu ao ponteiro, portanto, a oportunidade de disputar mais uma Olimpíada, mas ele não queria. Pouco depois de ser convocado, manifestou-se contundentemente.

“Quero informar que minha decisão de não voltar para a seleção já havia sido tomada desde os Jogos Olímpicos de Tóquio e não mudou. Eu já havia informado a CBV desta decisão. Sou imensamente grato a todos que torcem por mim e me apoiaram neste tempo em que estive com a nossa seleção. Agradeço aos meus treinadores e companheiros de seleção por este tempo em que estivemos juntos e conquistamos tantas vitórias, mas meu ciclo com a camisa da seleção já foi encerrado. Sigo agora somente com meu clube e desejando muito sucesso para a seleção brasileira de vôlei”, escreveu.

‘Cuidado para não ficar com raiva do esporte’

Com tempo para explorar outras facetas, Bruno Fratus está cursando faculdade de Publicidade e Propaganda, embora flerte com a possibilidade de trocar de curso. O sonho é se formar em Psicologia, área acadêmica pela qual tem grande paixão, mas que não é ensinada a distância. Como seu cronograma é irregular, cheio de viagens, aulas presenciais estão fora de cogitação no momento. O nadador também está pronto para apresentar um novo lado relacionado ao esporte, trabalhando como repórter na SporTV durante os Jogos Olímpicos.

“Estou virando juvenil de novo em vários outros aspectos. Era algo que me dava uma ansiedade tremenda antigamente. Tirava meu sono, eu não queria nem sequer pensar a respeito porque aquilo já me dava taquicardia, falta de ar. Mas, depois que você decide encarar o medo do novo, o medo de recomeçar, a coisa fica de fato prazerosa. Agora em vez de uma mensagem de resiliência, de superar seus limites e tudo mais, é muito mais uma mensagem de ‘enfrentar o medo e recomeçar pode ser muito bom’”, diz.

Já Henrique Avancini, agora longe da alta performance, não se distanciou do ciclismo e tem se esforçado para continuar contribuindo à cultura do esporte que ama. Correu provas de despedida e logo engatou um projeto audiovisual de expedições em que desbrava picos icônicos ou desafiadores do Brasil, além, claro, de tocar sua equipe.

“O grande ganho que eu tenho com minha aposentadoria é poder fazer coisas que antes eu não poderia fazer, que antes eu não teria o tempo ou a energia para poder fazer em prol da cultura da bicicleta. Então às vezes são coisas menos significativas. Acho que você ganhar uma copa do mundo dá muito mais repercussão para o esporte do que o que eu estou fazendo atualmente, porém são pequenas lacunas que eu consigo preencher”, diz o ciclista.

Além de registrar em vídeo suas expedições, Avancini gosta de fazer registros de seus tempos para compartilhar com quem acompanha seu trabalho. Tal preferência está relacionada ao fato de ele ter conseguido manter uma relação de diversão e bem estar com o ciclismo.

“Isso faz parte de como eu curto fazer o ciclismo. Então, isso é a parte do meu do meu lifestyle. Eu sempre fui assim, e não mudou nada, mesmo não competindo. Eu ainda gosto de subir na bicicleta e tentar andar rápido, isso é uma coisa que me diverte e isso era algo que eu faria de qualquer forma, como hobby”, explica.

É um relacionamento como o que Avancini mantém com o ciclismo que Fratus deseja ter com a natação quando decidir se aposentar. Ele quer se dar a chance de continuar competindo por mais algum tempo, mas, quando o inevitável momento de parar chegar, espera não ter ressentimentos.

“Um amigo muito próximo me falou: já que você vai tirar um tempo da natação, cuida para não ficar com raiva. Ele conhece e eu conheço muitos atletas que se aposentaram com raiva do esporte, e que a última coisa que eles queriam era entrar em uma água e falar sobre natação, esporte em geral”, diz o nadador. “Tudo que eu tenho foi a natação que me deu, em termos materiais, de reconhecimento, me permitiu dar um orgulho imenso para a minha família, tocar vidas e inspirar pessoas. Não faria o mínimo sentido eu me distanciar tanto.”

Paula Radcliffe era detentora do recorde mundial quando colocou as mãos nos joelhos e começou a chorar, durante a disputa da maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. A britânica, que continuaria recordista por 15 anos, não conseguiu completar a prova, o que a fez ser massacrada por parte da imprensa do Reino Unido. Afinal, havia desistido, e não importavam as explicações de que tinha sofrido uma lesão muscular pouco tempo antes da Olimpíada e que os medicamentos tomados para tratar o problema causaram uma irritação intestinal.

Mais tarde, em 2020, a maratonista disse à Sky Sports que “absolutamente não” competiria se não fosse uma maratona olímpica, o auge do esporte. A história de Radcliffe é uma das muitas citadas pela escritora Annelise Chen em seu livro Esforços Olímpicos, um romance com elementos de ensaio que questiona a cultura de sofrimento e a noção de sucesso e superação no meio esportivo e na sociedade. A obra foi lançada em 2019 e acompanhou o avanço de uma discussão que teve seu ápice nos Jogos de Tóquio, em 2021, quando as desistências da ginasta Simone Biles durante a competição, para cuidar da saúde mental, trouxeram o tema ao grande público.

No ciclo para os Jogos de Paris, a sensação é que o peso da palavra desistir não é mais o mesmo no mundo do esporte, assim como a relação dos atletas com o sofrimento e os sacrifícios desta carreira. “Existe uma romantização de coisas do tipo, como esse sofrimento, resiliência, até o ponto que a gente lembra que resiliência não quer dizer você bater um prego com a testa. Você precisa ser inteligente e usar a ferramenta certa para aquela atividade”, comenta o nadador brasileiro Bruno Fratus, medalhista de bronze dos 50 metros livre em Tóquio, ao Estadão.

Bruno Fratus foi medalhista dos 50 metros livre nos Jogos de Tóquio. Foto: Gaspar Nóbrega/COB

Aos 34 anos, Fratus tinha planos de disputar as duas próximas Olimpíadas, mas decidiu não participar da seletiva brasileira que daria vaga a Paris-2024 por estar certo de que não conseguiria ser competitivo nos Jogos. Após três cirurgias no ombro em pouco mais de um ano e outra no joelho, em fevereiro deste ano, o físico e o emocional já não eram mais os mesmos. Até a relação com a natação estava abalada.

“A partir do momento que você se vê constantemente lesionado, impossibilitado de fazer o que você quer fazer, o que você gosta de fazer, que é ser um atleta, competir, isso vai gerando um peso muito grande na parte mental. Até o ponto que aquela atividade que era uma grande motivação, a razão da sua vida, da sua existência, passa a ser algo extremamente doloroso no seu dia”, diz.

O medalhista olímpico está dando um tempo das piscinas, mas não está aposentado. “Foi meio que aquele término que as duas pessoas do relacionamento entendem que, apesar de se amarem muito, é melhor separar, e ainda não é o momento de cultivar uma amizade, porque tem muita coisa que está curando, que está aberta.”

Em um primeiro momento, ao se ver pensando na possibilidade de parar, desistir ou abrir mão de uma competição, o atleta pode questionar se cedeu a um impulso de fraqueza, já que está acostumado a resistir. Isso passou pela cabeça de Fratus, mas todo o processo mental o levou a concluir que estava diante de uma demanda interna importante.

“A partir do momento que você toma uma decisão contraintuitiva como escolher algo diferente à resiliência física, parece estranho, parece errado. O pensamento de desistência veio. Depois entendi, não é desistência, é priorização. Eu estou priorizando outros aspectos, escolhendo outros desafios, outro caminho. Isso, lógico, vem com o entendimento de que a vida não é só natação, esporte, competição. Me dei conta que eu estava negligenciando uma parte muito importante da minha vida em prol de um resultado esportivo”, afirma.

Como diz o nadador medalhista olímpico, a rotina de competidor leva “a vida social a zero” e as relações mais próximas se restringem ao âmbito profissional. No caso dele, até com a própria mulher, Michelle Lenhardt, também sua treinadora. “Não pode estar em feriado, em aniversário. Eu saio do papel de marido de tempos em tempos e acabo sendo atleta dentro de casa. Quanto mais disso vai ser o suficiente para satisfazer essa busca obsessiva e desenfreada por performance? Se estivesse tudo bem, seguiria o jogo, mas não estava”, explica.

Fratus está satisfeito com a decisão e com o que vem colhendo desde então. Não se trata apenas de ter recuperado e solidificado relações, mas também de ter se conectado com questões que eram suprimidas pela rotina levada até pouco tempo atrás.

“Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento”. reflete. “Foi isso que me fez chegar onde cheguei, mas a um preço alto. Tirei essa mentalidade extremista em relação à performance e comecei a ser um cara mais de boa. Aconteça o que acontecer o sol vai nascer amanhã, o mundo continua girando e a gente vai dar um jeito no que tiver que dar”, conclui.

Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento

Bruno Fratus

A hora de sair de cena

Alguns dos sentimentos de Fratus são semelhantes aos cultivados pelo ciclista Henrique Avancini, outro atleta brasileiro que poderia estar em Paris e decidiu não continuar com a busca pela classificação. O ícone do mountain bike, contudo, deu um passo mais radical e se aposentou em agosto de 2023, mesmo com chances altíssimas de ir à sua terceira Olimpíada.

No final das contas, os 1.277 pontos que somou no ranking da União Internacional de Ciclismo (UCI, na sigla em inglês) durante o período deste ciclo olímpico ajudaram o Brasil a terminar em nono lugar, obtendo uma vaga. As cotas do mountain bike são por país e abarcaram o período de 2022 até o meio de maio de 2024, por isso os pontos dele foram contabilizados.

O convocado pela Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) para ocupar a cota brasileira foi Ulan Galinski, integrante da Avancini Racing. Ter saído de cena para abrir espaço para um jovem ciclista faz o campeão mundial e ex-número 1 do mundo ficar ainda mais certo de sua escolha.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida. Em contrapartida, muda a vida de quem for. Então, acho que não foi tão difícil eu abrir mão assim dos Jogos Olímpicos de Paris”, explica Avancini ao Estadão.

Henrique Avancini foi bicampeão mundial da maratona cross-country, modalidade não olímpica, antes de se aposentar. Foto: Divulgação/UCI

A decisão foi tomada de forma muito consciente, mesmo tendo vivido uma grande frustração na Olimpíada anterior. No clico de Tóquio, o ciclista petropolitano teve grande evolução e chegou a liderar o ranking da UCI em 2020. Durante os jogos, foi 13º, melhor resultado de um brasileiro no MTB olímpico, mas motivo de decepção para Avanicni. “Tive problemas, alguns problemas com o meu time, problemas de saúde. Enfim, para mim foi uma grande frustração. Então, as minhas memórias olímpicas não são tão prazerosas.’

O desapontamento no Japão, contudo, não impediu o ciclista de pensar com clareza quando decidiu se aposentar podendo ir a Paris. Ele vinha sofrendo com consecutivas lesões e foi diagnosticado com depressão. Neste período, teve de lidar com um problema de saúde que fez sua filha Liz, na época com 4 anos, passar duas semanas na UTI. Chegou até a bater o carro, tamanho o desgaste emocional.

“Ter mais uma chance era algo que eu considerava, pensava ‘pô, eu mereço correr os Jogos Olímpicos de novo’. Só que 2023 foi um ano pesado para mim, principalmente pelas lesões que eu tive no quadril, no joelho. Foi um ano muito maçante para mim”, afirma.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida.

Henrique Avancini

O trabalho fora das piscinas, das trilhas, das quadras...

Os esforços logísticos e financeiros de se manter como atleta olímpico também contribuem para minar ambições ao longos dos anos. No mountain bike, ir bem em uma Olímpiada depende de muita coisa. Embora tenha tido suporte do COB no último ciclo, Avancini vê muitos desafios na parte da preparação.

“Como fui top 1 do mundo, tive um pouquinho de influência para trazer a minha fisioterapeuta e o meu mecânico para Tóquio. Conseguia manter um pouco mais do que era a minha rotina de trabalho, mas você precisa se adequar a um método de trabalho do Comitê Olímpico. No caso do mountain bike, isso impacta demais, porque geralmente você trabalha com mais pessoas com o conhecimento específico da modalidade. E aí, pela restrição de espaço, de credenciais, o número das delegações, isso impacta demais o atleta”

Mais crítico, Fratus também vê limitações em se manter como atleta de alta performance dentro da natação, mesmo depois de ter se tornado medalhista olímpico. Ele é gestor da própria carreira, ao lado da mulher Michelle, situação que atribui ao quão sobrecarregadas estão as instituições esportivas.

“O alto rendimento no Brasil é regido por dois pilares: o COB, que fornece esse ambiente de alto rendimento, e os clubes, que estão extremamente sobrecarregados. Cuidam da formação, do alto rendimento, do nível olímpico, e é dividido com a parte social, o sócio que está usando com a família, lazer. Dois corpos não conseguem ocupar o mesmo espaço, o que acaba espremendo profissionais para fora do País. Ao mesmo tempo, o Comitê tem sua limitações políticas, burocráticas, algo compreensível de uma instituição que se mantém, na maior parte, com dinheiro público”, diz.

“Só que isso faz com que seja extremamente complexo e desgastante fazer alto rendimento no Brasil. É um processo penoso, gera muita discussão. Às vezes o simples fato de todas as pessoas terem o mesmo objetivo já é difícil. É uma parte que acaba dando uma fadigada, já no seu quarto ciclo olímpico. Precisar explicar a coisa diversas vezes, precisar lutar pela mesma situação que você já conseguiu no passado. Precisar justificar algo que os resultados, no ponto de vista de atleta, seriam suficientes para justificar”, completa.

Caminhos e prioridades

Não estar focado na busca incessante pela Olímpiada traz a oportunidade de procurar novos caminhos ou priorizar outros aspectos pessoais. Há atletas que deixaram a corrida olímpica de lado já planejando os próximos passos, caso de Letícia Bufoni, que agora divide o skate com o automobilismo. Referência para a geração de Rayssa Leal, a brasileira é multicampeã do X Games e foi vencedora da primeira edição feminina da liga mundial de street, a SLS, em 2015, ano em que eram dados os primeiros passos para transformar o skate em esporte olímpico.

Bufoni chegou aos Jogos de Tóquio como quarta do ranking mundial, não alcançou a final e terminou em nono lugar. Pretendia ir a Paris, mas refletiu melhor sobre isso depois de perder os dois primeiros eventos do classificatório olímpico do atual ciclo e decidiu não tentar a qualificação.

Ao anunciar a decisão, em entrevista à ESPN, disse que travou “uma batalha interna” até chegar à conclusão de que gostaria de priorizar outros projetos. Hoje, continua priorizando o skate, tanto que vai disputar o X Games no final deste mês, mas tem se dedicado também à Porsche Cup. Durante os Jogos Olímpicos de Paris, vai comentar as provas do street pela Globo.

Letícia Bufoni realiza manobra na pista de skate construída dentro de um avião Foto: Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool.

Dedicar-se a outros projetos foi um dos motivos que levou o ponteiro Douglas Souza, campeão olímpico com a seleção masculina de vôlei na Olímpiada do Rio-2016, a afastar-se temporariamente do esporte. Durante os Jogos de Tóquio, potencializou sua imagem ao angariar seguidores nas redes sociais, graças aos vídeos que fazia em seu quarto na Vila Olímpica. Junto a isso, virou uma importante voz da comunidade LGBTQIA+ no esporte.

Depois da disputa no Japão, Douglas se aposentou da seleção e decidiu tirar um período sabático. Acabou se envolvendo com o entretenimento, participou até da Dança dos Famosos e trabalhou como streamer, produzindo conteúdo voltado ao universo gamer. Ficou sem jogar de 2021 até o meio de 2022, quando assinou com o Farma Conde/São José, equipe que deixou para defender o Cruzeiro.

A aposentadoria da seleção continuou, mas a primeira convocação de Bernardinho, de volta ao comando do Brasil, surpreendeu a todos. Douglas apareceu na lista para a Liga das Nações, última competição oficial antes dos Jogos de Paris. Surgiu ao ponteiro, portanto, a oportunidade de disputar mais uma Olimpíada, mas ele não queria. Pouco depois de ser convocado, manifestou-se contundentemente.

“Quero informar que minha decisão de não voltar para a seleção já havia sido tomada desde os Jogos Olímpicos de Tóquio e não mudou. Eu já havia informado a CBV desta decisão. Sou imensamente grato a todos que torcem por mim e me apoiaram neste tempo em que estive com a nossa seleção. Agradeço aos meus treinadores e companheiros de seleção por este tempo em que estivemos juntos e conquistamos tantas vitórias, mas meu ciclo com a camisa da seleção já foi encerrado. Sigo agora somente com meu clube e desejando muito sucesso para a seleção brasileira de vôlei”, escreveu.

‘Cuidado para não ficar com raiva do esporte’

Com tempo para explorar outras facetas, Bruno Fratus está cursando faculdade de Publicidade e Propaganda, embora flerte com a possibilidade de trocar de curso. O sonho é se formar em Psicologia, área acadêmica pela qual tem grande paixão, mas que não é ensinada a distância. Como seu cronograma é irregular, cheio de viagens, aulas presenciais estão fora de cogitação no momento. O nadador também está pronto para apresentar um novo lado relacionado ao esporte, trabalhando como repórter na SporTV durante os Jogos Olímpicos.

“Estou virando juvenil de novo em vários outros aspectos. Era algo que me dava uma ansiedade tremenda antigamente. Tirava meu sono, eu não queria nem sequer pensar a respeito porque aquilo já me dava taquicardia, falta de ar. Mas, depois que você decide encarar o medo do novo, o medo de recomeçar, a coisa fica de fato prazerosa. Agora em vez de uma mensagem de resiliência, de superar seus limites e tudo mais, é muito mais uma mensagem de ‘enfrentar o medo e recomeçar pode ser muito bom’”, diz.

Já Henrique Avancini, agora longe da alta performance, não se distanciou do ciclismo e tem se esforçado para continuar contribuindo à cultura do esporte que ama. Correu provas de despedida e logo engatou um projeto audiovisual de expedições em que desbrava picos icônicos ou desafiadores do Brasil, além, claro, de tocar sua equipe.

“O grande ganho que eu tenho com minha aposentadoria é poder fazer coisas que antes eu não poderia fazer, que antes eu não teria o tempo ou a energia para poder fazer em prol da cultura da bicicleta. Então às vezes são coisas menos significativas. Acho que você ganhar uma copa do mundo dá muito mais repercussão para o esporte do que o que eu estou fazendo atualmente, porém são pequenas lacunas que eu consigo preencher”, diz o ciclista.

Além de registrar em vídeo suas expedições, Avancini gosta de fazer registros de seus tempos para compartilhar com quem acompanha seu trabalho. Tal preferência está relacionada ao fato de ele ter conseguido manter uma relação de diversão e bem estar com o ciclismo.

“Isso faz parte de como eu curto fazer o ciclismo. Então, isso é a parte do meu do meu lifestyle. Eu sempre fui assim, e não mudou nada, mesmo não competindo. Eu ainda gosto de subir na bicicleta e tentar andar rápido, isso é uma coisa que me diverte e isso era algo que eu faria de qualquer forma, como hobby”, explica.

É um relacionamento como o que Avancini mantém com o ciclismo que Fratus deseja ter com a natação quando decidir se aposentar. Ele quer se dar a chance de continuar competindo por mais algum tempo, mas, quando o inevitável momento de parar chegar, espera não ter ressentimentos.

“Um amigo muito próximo me falou: já que você vai tirar um tempo da natação, cuida para não ficar com raiva. Ele conhece e eu conheço muitos atletas que se aposentaram com raiva do esporte, e que a última coisa que eles queriam era entrar em uma água e falar sobre natação, esporte em geral”, diz o nadador. “Tudo que eu tenho foi a natação que me deu, em termos materiais, de reconhecimento, me permitiu dar um orgulho imenso para a minha família, tocar vidas e inspirar pessoas. Não faria o mínimo sentido eu me distanciar tanto.”

Paula Radcliffe era detentora do recorde mundial quando colocou as mãos nos joelhos e começou a chorar, durante a disputa da maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. A britânica, que continuaria recordista por 15 anos, não conseguiu completar a prova, o que a fez ser massacrada por parte da imprensa do Reino Unido. Afinal, havia desistido, e não importavam as explicações de que tinha sofrido uma lesão muscular pouco tempo antes da Olimpíada e que os medicamentos tomados para tratar o problema causaram uma irritação intestinal.

Mais tarde, em 2020, a maratonista disse à Sky Sports que “absolutamente não” competiria se não fosse uma maratona olímpica, o auge do esporte. A história de Radcliffe é uma das muitas citadas pela escritora Annelise Chen em seu livro Esforços Olímpicos, um romance com elementos de ensaio que questiona a cultura de sofrimento e a noção de sucesso e superação no meio esportivo e na sociedade. A obra foi lançada em 2019 e acompanhou o avanço de uma discussão que teve seu ápice nos Jogos de Tóquio, em 2021, quando as desistências da ginasta Simone Biles durante a competição, para cuidar da saúde mental, trouxeram o tema ao grande público.

No ciclo para os Jogos de Paris, a sensação é que o peso da palavra desistir não é mais o mesmo no mundo do esporte, assim como a relação dos atletas com o sofrimento e os sacrifícios desta carreira. “Existe uma romantização de coisas do tipo, como esse sofrimento, resiliência, até o ponto que a gente lembra que resiliência não quer dizer você bater um prego com a testa. Você precisa ser inteligente e usar a ferramenta certa para aquela atividade”, comenta o nadador brasileiro Bruno Fratus, medalhista de bronze dos 50 metros livre em Tóquio, ao Estadão.

Bruno Fratus foi medalhista dos 50 metros livre nos Jogos de Tóquio. Foto: Gaspar Nóbrega/COB

Aos 34 anos, Fratus tinha planos de disputar as duas próximas Olimpíadas, mas decidiu não participar da seletiva brasileira que daria vaga a Paris-2024 por estar certo de que não conseguiria ser competitivo nos Jogos. Após três cirurgias no ombro em pouco mais de um ano e outra no joelho, em fevereiro deste ano, o físico e o emocional já não eram mais os mesmos. Até a relação com a natação estava abalada.

“A partir do momento que você se vê constantemente lesionado, impossibilitado de fazer o que você quer fazer, o que você gosta de fazer, que é ser um atleta, competir, isso vai gerando um peso muito grande na parte mental. Até o ponto que aquela atividade que era uma grande motivação, a razão da sua vida, da sua existência, passa a ser algo extremamente doloroso no seu dia”, diz.

O medalhista olímpico está dando um tempo das piscinas, mas não está aposentado. “Foi meio que aquele término que as duas pessoas do relacionamento entendem que, apesar de se amarem muito, é melhor separar, e ainda não é o momento de cultivar uma amizade, porque tem muita coisa que está curando, que está aberta.”

Em um primeiro momento, ao se ver pensando na possibilidade de parar, desistir ou abrir mão de uma competição, o atleta pode questionar se cedeu a um impulso de fraqueza, já que está acostumado a resistir. Isso passou pela cabeça de Fratus, mas todo o processo mental o levou a concluir que estava diante de uma demanda interna importante.

“A partir do momento que você toma uma decisão contraintuitiva como escolher algo diferente à resiliência física, parece estranho, parece errado. O pensamento de desistência veio. Depois entendi, não é desistência, é priorização. Eu estou priorizando outros aspectos, escolhendo outros desafios, outro caminho. Isso, lógico, vem com o entendimento de que a vida não é só natação, esporte, competição. Me dei conta que eu estava negligenciando uma parte muito importante da minha vida em prol de um resultado esportivo”, afirma.

Como diz o nadador medalhista olímpico, a rotina de competidor leva “a vida social a zero” e as relações mais próximas se restringem ao âmbito profissional. No caso dele, até com a própria mulher, Michelle Lenhardt, também sua treinadora. “Não pode estar em feriado, em aniversário. Eu saio do papel de marido de tempos em tempos e acabo sendo atleta dentro de casa. Quanto mais disso vai ser o suficiente para satisfazer essa busca obsessiva e desenfreada por performance? Se estivesse tudo bem, seguiria o jogo, mas não estava”, explica.

Fratus está satisfeito com a decisão e com o que vem colhendo desde então. Não se trata apenas de ter recuperado e solidificado relações, mas também de ter se conectado com questões que eram suprimidas pela rotina levada até pouco tempo atrás.

“Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento”. reflete. “Foi isso que me fez chegar onde cheguei, mas a um preço alto. Tirei essa mentalidade extremista em relação à performance e comecei a ser um cara mais de boa. Aconteça o que acontecer o sol vai nascer amanhã, o mundo continua girando e a gente vai dar um jeito no que tiver que dar”, conclui.

Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento

Bruno Fratus

A hora de sair de cena

Alguns dos sentimentos de Fratus são semelhantes aos cultivados pelo ciclista Henrique Avancini, outro atleta brasileiro que poderia estar em Paris e decidiu não continuar com a busca pela classificação. O ícone do mountain bike, contudo, deu um passo mais radical e se aposentou em agosto de 2023, mesmo com chances altíssimas de ir à sua terceira Olimpíada.

No final das contas, os 1.277 pontos que somou no ranking da União Internacional de Ciclismo (UCI, na sigla em inglês) durante o período deste ciclo olímpico ajudaram o Brasil a terminar em nono lugar, obtendo uma vaga. As cotas do mountain bike são por país e abarcaram o período de 2022 até o meio de maio de 2024, por isso os pontos dele foram contabilizados.

O convocado pela Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) para ocupar a cota brasileira foi Ulan Galinski, integrante da Avancini Racing. Ter saído de cena para abrir espaço para um jovem ciclista faz o campeão mundial e ex-número 1 do mundo ficar ainda mais certo de sua escolha.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida. Em contrapartida, muda a vida de quem for. Então, acho que não foi tão difícil eu abrir mão assim dos Jogos Olímpicos de Paris”, explica Avancini ao Estadão.

Henrique Avancini foi bicampeão mundial da maratona cross-country, modalidade não olímpica, antes de se aposentar. Foto: Divulgação/UCI

A decisão foi tomada de forma muito consciente, mesmo tendo vivido uma grande frustração na Olimpíada anterior. No clico de Tóquio, o ciclista petropolitano teve grande evolução e chegou a liderar o ranking da UCI em 2020. Durante os jogos, foi 13º, melhor resultado de um brasileiro no MTB olímpico, mas motivo de decepção para Avanicni. “Tive problemas, alguns problemas com o meu time, problemas de saúde. Enfim, para mim foi uma grande frustração. Então, as minhas memórias olímpicas não são tão prazerosas.’

O desapontamento no Japão, contudo, não impediu o ciclista de pensar com clareza quando decidiu se aposentar podendo ir a Paris. Ele vinha sofrendo com consecutivas lesões e foi diagnosticado com depressão. Neste período, teve de lidar com um problema de saúde que fez sua filha Liz, na época com 4 anos, passar duas semanas na UTI. Chegou até a bater o carro, tamanho o desgaste emocional.

“Ter mais uma chance era algo que eu considerava, pensava ‘pô, eu mereço correr os Jogos Olímpicos de novo’. Só que 2023 foi um ano pesado para mim, principalmente pelas lesões que eu tive no quadril, no joelho. Foi um ano muito maçante para mim”, afirma.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida.

Henrique Avancini

O trabalho fora das piscinas, das trilhas, das quadras...

Os esforços logísticos e financeiros de se manter como atleta olímpico também contribuem para minar ambições ao longos dos anos. No mountain bike, ir bem em uma Olímpiada depende de muita coisa. Embora tenha tido suporte do COB no último ciclo, Avancini vê muitos desafios na parte da preparação.

“Como fui top 1 do mundo, tive um pouquinho de influência para trazer a minha fisioterapeuta e o meu mecânico para Tóquio. Conseguia manter um pouco mais do que era a minha rotina de trabalho, mas você precisa se adequar a um método de trabalho do Comitê Olímpico. No caso do mountain bike, isso impacta demais, porque geralmente você trabalha com mais pessoas com o conhecimento específico da modalidade. E aí, pela restrição de espaço, de credenciais, o número das delegações, isso impacta demais o atleta”

Mais crítico, Fratus também vê limitações em se manter como atleta de alta performance dentro da natação, mesmo depois de ter se tornado medalhista olímpico. Ele é gestor da própria carreira, ao lado da mulher Michelle, situação que atribui ao quão sobrecarregadas estão as instituições esportivas.

“O alto rendimento no Brasil é regido por dois pilares: o COB, que fornece esse ambiente de alto rendimento, e os clubes, que estão extremamente sobrecarregados. Cuidam da formação, do alto rendimento, do nível olímpico, e é dividido com a parte social, o sócio que está usando com a família, lazer. Dois corpos não conseguem ocupar o mesmo espaço, o que acaba espremendo profissionais para fora do País. Ao mesmo tempo, o Comitê tem sua limitações políticas, burocráticas, algo compreensível de uma instituição que se mantém, na maior parte, com dinheiro público”, diz.

“Só que isso faz com que seja extremamente complexo e desgastante fazer alto rendimento no Brasil. É um processo penoso, gera muita discussão. Às vezes o simples fato de todas as pessoas terem o mesmo objetivo já é difícil. É uma parte que acaba dando uma fadigada, já no seu quarto ciclo olímpico. Precisar explicar a coisa diversas vezes, precisar lutar pela mesma situação que você já conseguiu no passado. Precisar justificar algo que os resultados, no ponto de vista de atleta, seriam suficientes para justificar”, completa.

Caminhos e prioridades

Não estar focado na busca incessante pela Olímpiada traz a oportunidade de procurar novos caminhos ou priorizar outros aspectos pessoais. Há atletas que deixaram a corrida olímpica de lado já planejando os próximos passos, caso de Letícia Bufoni, que agora divide o skate com o automobilismo. Referência para a geração de Rayssa Leal, a brasileira é multicampeã do X Games e foi vencedora da primeira edição feminina da liga mundial de street, a SLS, em 2015, ano em que eram dados os primeiros passos para transformar o skate em esporte olímpico.

Bufoni chegou aos Jogos de Tóquio como quarta do ranking mundial, não alcançou a final e terminou em nono lugar. Pretendia ir a Paris, mas refletiu melhor sobre isso depois de perder os dois primeiros eventos do classificatório olímpico do atual ciclo e decidiu não tentar a qualificação.

Ao anunciar a decisão, em entrevista à ESPN, disse que travou “uma batalha interna” até chegar à conclusão de que gostaria de priorizar outros projetos. Hoje, continua priorizando o skate, tanto que vai disputar o X Games no final deste mês, mas tem se dedicado também à Porsche Cup. Durante os Jogos Olímpicos de Paris, vai comentar as provas do street pela Globo.

Letícia Bufoni realiza manobra na pista de skate construída dentro de um avião Foto: Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool.

Dedicar-se a outros projetos foi um dos motivos que levou o ponteiro Douglas Souza, campeão olímpico com a seleção masculina de vôlei na Olímpiada do Rio-2016, a afastar-se temporariamente do esporte. Durante os Jogos de Tóquio, potencializou sua imagem ao angariar seguidores nas redes sociais, graças aos vídeos que fazia em seu quarto na Vila Olímpica. Junto a isso, virou uma importante voz da comunidade LGBTQIA+ no esporte.

Depois da disputa no Japão, Douglas se aposentou da seleção e decidiu tirar um período sabático. Acabou se envolvendo com o entretenimento, participou até da Dança dos Famosos e trabalhou como streamer, produzindo conteúdo voltado ao universo gamer. Ficou sem jogar de 2021 até o meio de 2022, quando assinou com o Farma Conde/São José, equipe que deixou para defender o Cruzeiro.

A aposentadoria da seleção continuou, mas a primeira convocação de Bernardinho, de volta ao comando do Brasil, surpreendeu a todos. Douglas apareceu na lista para a Liga das Nações, última competição oficial antes dos Jogos de Paris. Surgiu ao ponteiro, portanto, a oportunidade de disputar mais uma Olimpíada, mas ele não queria. Pouco depois de ser convocado, manifestou-se contundentemente.

“Quero informar que minha decisão de não voltar para a seleção já havia sido tomada desde os Jogos Olímpicos de Tóquio e não mudou. Eu já havia informado a CBV desta decisão. Sou imensamente grato a todos que torcem por mim e me apoiaram neste tempo em que estive com a nossa seleção. Agradeço aos meus treinadores e companheiros de seleção por este tempo em que estivemos juntos e conquistamos tantas vitórias, mas meu ciclo com a camisa da seleção já foi encerrado. Sigo agora somente com meu clube e desejando muito sucesso para a seleção brasileira de vôlei”, escreveu.

‘Cuidado para não ficar com raiva do esporte’

Com tempo para explorar outras facetas, Bruno Fratus está cursando faculdade de Publicidade e Propaganda, embora flerte com a possibilidade de trocar de curso. O sonho é se formar em Psicologia, área acadêmica pela qual tem grande paixão, mas que não é ensinada a distância. Como seu cronograma é irregular, cheio de viagens, aulas presenciais estão fora de cogitação no momento. O nadador também está pronto para apresentar um novo lado relacionado ao esporte, trabalhando como repórter na SporTV durante os Jogos Olímpicos.

“Estou virando juvenil de novo em vários outros aspectos. Era algo que me dava uma ansiedade tremenda antigamente. Tirava meu sono, eu não queria nem sequer pensar a respeito porque aquilo já me dava taquicardia, falta de ar. Mas, depois que você decide encarar o medo do novo, o medo de recomeçar, a coisa fica de fato prazerosa. Agora em vez de uma mensagem de resiliência, de superar seus limites e tudo mais, é muito mais uma mensagem de ‘enfrentar o medo e recomeçar pode ser muito bom’”, diz.

Já Henrique Avancini, agora longe da alta performance, não se distanciou do ciclismo e tem se esforçado para continuar contribuindo à cultura do esporte que ama. Correu provas de despedida e logo engatou um projeto audiovisual de expedições em que desbrava picos icônicos ou desafiadores do Brasil, além, claro, de tocar sua equipe.

“O grande ganho que eu tenho com minha aposentadoria é poder fazer coisas que antes eu não poderia fazer, que antes eu não teria o tempo ou a energia para poder fazer em prol da cultura da bicicleta. Então às vezes são coisas menos significativas. Acho que você ganhar uma copa do mundo dá muito mais repercussão para o esporte do que o que eu estou fazendo atualmente, porém são pequenas lacunas que eu consigo preencher”, diz o ciclista.

Além de registrar em vídeo suas expedições, Avancini gosta de fazer registros de seus tempos para compartilhar com quem acompanha seu trabalho. Tal preferência está relacionada ao fato de ele ter conseguido manter uma relação de diversão e bem estar com o ciclismo.

“Isso faz parte de como eu curto fazer o ciclismo. Então, isso é a parte do meu do meu lifestyle. Eu sempre fui assim, e não mudou nada, mesmo não competindo. Eu ainda gosto de subir na bicicleta e tentar andar rápido, isso é uma coisa que me diverte e isso era algo que eu faria de qualquer forma, como hobby”, explica.

É um relacionamento como o que Avancini mantém com o ciclismo que Fratus deseja ter com a natação quando decidir se aposentar. Ele quer se dar a chance de continuar competindo por mais algum tempo, mas, quando o inevitável momento de parar chegar, espera não ter ressentimentos.

“Um amigo muito próximo me falou: já que você vai tirar um tempo da natação, cuida para não ficar com raiva. Ele conhece e eu conheço muitos atletas que se aposentaram com raiva do esporte, e que a última coisa que eles queriam era entrar em uma água e falar sobre natação, esporte em geral”, diz o nadador. “Tudo que eu tenho foi a natação que me deu, em termos materiais, de reconhecimento, me permitiu dar um orgulho imenso para a minha família, tocar vidas e inspirar pessoas. Não faria o mínimo sentido eu me distanciar tanto.”

Paula Radcliffe era detentora do recorde mundial quando colocou as mãos nos joelhos e começou a chorar, durante a disputa da maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. A britânica, que continuaria recordista por 15 anos, não conseguiu completar a prova, o que a fez ser massacrada por parte da imprensa do Reino Unido. Afinal, havia desistido, e não importavam as explicações de que tinha sofrido uma lesão muscular pouco tempo antes da Olimpíada e que os medicamentos tomados para tratar o problema causaram uma irritação intestinal.

Mais tarde, em 2020, a maratonista disse à Sky Sports que “absolutamente não” competiria se não fosse uma maratona olímpica, o auge do esporte. A história de Radcliffe é uma das muitas citadas pela escritora Annelise Chen em seu livro Esforços Olímpicos, um romance com elementos de ensaio que questiona a cultura de sofrimento e a noção de sucesso e superação no meio esportivo e na sociedade. A obra foi lançada em 2019 e acompanhou o avanço de uma discussão que teve seu ápice nos Jogos de Tóquio, em 2021, quando as desistências da ginasta Simone Biles durante a competição, para cuidar da saúde mental, trouxeram o tema ao grande público.

No ciclo para os Jogos de Paris, a sensação é que o peso da palavra desistir não é mais o mesmo no mundo do esporte, assim como a relação dos atletas com o sofrimento e os sacrifícios desta carreira. “Existe uma romantização de coisas do tipo, como esse sofrimento, resiliência, até o ponto que a gente lembra que resiliência não quer dizer você bater um prego com a testa. Você precisa ser inteligente e usar a ferramenta certa para aquela atividade”, comenta o nadador brasileiro Bruno Fratus, medalhista de bronze dos 50 metros livre em Tóquio, ao Estadão.

Bruno Fratus foi medalhista dos 50 metros livre nos Jogos de Tóquio. Foto: Gaspar Nóbrega/COB

Aos 34 anos, Fratus tinha planos de disputar as duas próximas Olimpíadas, mas decidiu não participar da seletiva brasileira que daria vaga a Paris-2024 por estar certo de que não conseguiria ser competitivo nos Jogos. Após três cirurgias no ombro em pouco mais de um ano e outra no joelho, em fevereiro deste ano, o físico e o emocional já não eram mais os mesmos. Até a relação com a natação estava abalada.

“A partir do momento que você se vê constantemente lesionado, impossibilitado de fazer o que você quer fazer, o que você gosta de fazer, que é ser um atleta, competir, isso vai gerando um peso muito grande na parte mental. Até o ponto que aquela atividade que era uma grande motivação, a razão da sua vida, da sua existência, passa a ser algo extremamente doloroso no seu dia”, diz.

O medalhista olímpico está dando um tempo das piscinas, mas não está aposentado. “Foi meio que aquele término que as duas pessoas do relacionamento entendem que, apesar de se amarem muito, é melhor separar, e ainda não é o momento de cultivar uma amizade, porque tem muita coisa que está curando, que está aberta.”

Em um primeiro momento, ao se ver pensando na possibilidade de parar, desistir ou abrir mão de uma competição, o atleta pode questionar se cedeu a um impulso de fraqueza, já que está acostumado a resistir. Isso passou pela cabeça de Fratus, mas todo o processo mental o levou a concluir que estava diante de uma demanda interna importante.

“A partir do momento que você toma uma decisão contraintuitiva como escolher algo diferente à resiliência física, parece estranho, parece errado. O pensamento de desistência veio. Depois entendi, não é desistência, é priorização. Eu estou priorizando outros aspectos, escolhendo outros desafios, outro caminho. Isso, lógico, vem com o entendimento de que a vida não é só natação, esporte, competição. Me dei conta que eu estava negligenciando uma parte muito importante da minha vida em prol de um resultado esportivo”, afirma.

Como diz o nadador medalhista olímpico, a rotina de competidor leva “a vida social a zero” e as relações mais próximas se restringem ao âmbito profissional. No caso dele, até com a própria mulher, Michelle Lenhardt, também sua treinadora. “Não pode estar em feriado, em aniversário. Eu saio do papel de marido de tempos em tempos e acabo sendo atleta dentro de casa. Quanto mais disso vai ser o suficiente para satisfazer essa busca obsessiva e desenfreada por performance? Se estivesse tudo bem, seguiria o jogo, mas não estava”, explica.

Fratus está satisfeito com a decisão e com o que vem colhendo desde então. Não se trata apenas de ter recuperado e solidificado relações, mas também de ter se conectado com questões que eram suprimidas pela rotina levada até pouco tempo atrás.

“Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento”. reflete. “Foi isso que me fez chegar onde cheguei, mas a um preço alto. Tirei essa mentalidade extremista em relação à performance e comecei a ser um cara mais de boa. Aconteça o que acontecer o sol vai nascer amanhã, o mundo continua girando e a gente vai dar um jeito no que tiver que dar”, conclui.

Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento

Bruno Fratus

A hora de sair de cena

Alguns dos sentimentos de Fratus são semelhantes aos cultivados pelo ciclista Henrique Avancini, outro atleta brasileiro que poderia estar em Paris e decidiu não continuar com a busca pela classificação. O ícone do mountain bike, contudo, deu um passo mais radical e se aposentou em agosto de 2023, mesmo com chances altíssimas de ir à sua terceira Olimpíada.

No final das contas, os 1.277 pontos que somou no ranking da União Internacional de Ciclismo (UCI, na sigla em inglês) durante o período deste ciclo olímpico ajudaram o Brasil a terminar em nono lugar, obtendo uma vaga. As cotas do mountain bike são por país e abarcaram o período de 2022 até o meio de maio de 2024, por isso os pontos dele foram contabilizados.

O convocado pela Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) para ocupar a cota brasileira foi Ulan Galinski, integrante da Avancini Racing. Ter saído de cena para abrir espaço para um jovem ciclista faz o campeão mundial e ex-número 1 do mundo ficar ainda mais certo de sua escolha.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida. Em contrapartida, muda a vida de quem for. Então, acho que não foi tão difícil eu abrir mão assim dos Jogos Olímpicos de Paris”, explica Avancini ao Estadão.

Henrique Avancini foi bicampeão mundial da maratona cross-country, modalidade não olímpica, antes de se aposentar. Foto: Divulgação/UCI

A decisão foi tomada de forma muito consciente, mesmo tendo vivido uma grande frustração na Olimpíada anterior. No clico de Tóquio, o ciclista petropolitano teve grande evolução e chegou a liderar o ranking da UCI em 2020. Durante os jogos, foi 13º, melhor resultado de um brasileiro no MTB olímpico, mas motivo de decepção para Avanicni. “Tive problemas, alguns problemas com o meu time, problemas de saúde. Enfim, para mim foi uma grande frustração. Então, as minhas memórias olímpicas não são tão prazerosas.’

O desapontamento no Japão, contudo, não impediu o ciclista de pensar com clareza quando decidiu se aposentar podendo ir a Paris. Ele vinha sofrendo com consecutivas lesões e foi diagnosticado com depressão. Neste período, teve de lidar com um problema de saúde que fez sua filha Liz, na época com 4 anos, passar duas semanas na UTI. Chegou até a bater o carro, tamanho o desgaste emocional.

“Ter mais uma chance era algo que eu considerava, pensava ‘pô, eu mereço correr os Jogos Olímpicos de novo’. Só que 2023 foi um ano pesado para mim, principalmente pelas lesões que eu tive no quadril, no joelho. Foi um ano muito maçante para mim”, afirma.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida.

Henrique Avancini

O trabalho fora das piscinas, das trilhas, das quadras...

Os esforços logísticos e financeiros de se manter como atleta olímpico também contribuem para minar ambições ao longos dos anos. No mountain bike, ir bem em uma Olímpiada depende de muita coisa. Embora tenha tido suporte do COB no último ciclo, Avancini vê muitos desafios na parte da preparação.

“Como fui top 1 do mundo, tive um pouquinho de influência para trazer a minha fisioterapeuta e o meu mecânico para Tóquio. Conseguia manter um pouco mais do que era a minha rotina de trabalho, mas você precisa se adequar a um método de trabalho do Comitê Olímpico. No caso do mountain bike, isso impacta demais, porque geralmente você trabalha com mais pessoas com o conhecimento específico da modalidade. E aí, pela restrição de espaço, de credenciais, o número das delegações, isso impacta demais o atleta”

Mais crítico, Fratus também vê limitações em se manter como atleta de alta performance dentro da natação, mesmo depois de ter se tornado medalhista olímpico. Ele é gestor da própria carreira, ao lado da mulher Michelle, situação que atribui ao quão sobrecarregadas estão as instituições esportivas.

“O alto rendimento no Brasil é regido por dois pilares: o COB, que fornece esse ambiente de alto rendimento, e os clubes, que estão extremamente sobrecarregados. Cuidam da formação, do alto rendimento, do nível olímpico, e é dividido com a parte social, o sócio que está usando com a família, lazer. Dois corpos não conseguem ocupar o mesmo espaço, o que acaba espremendo profissionais para fora do País. Ao mesmo tempo, o Comitê tem sua limitações políticas, burocráticas, algo compreensível de uma instituição que se mantém, na maior parte, com dinheiro público”, diz.

“Só que isso faz com que seja extremamente complexo e desgastante fazer alto rendimento no Brasil. É um processo penoso, gera muita discussão. Às vezes o simples fato de todas as pessoas terem o mesmo objetivo já é difícil. É uma parte que acaba dando uma fadigada, já no seu quarto ciclo olímpico. Precisar explicar a coisa diversas vezes, precisar lutar pela mesma situação que você já conseguiu no passado. Precisar justificar algo que os resultados, no ponto de vista de atleta, seriam suficientes para justificar”, completa.

Caminhos e prioridades

Não estar focado na busca incessante pela Olímpiada traz a oportunidade de procurar novos caminhos ou priorizar outros aspectos pessoais. Há atletas que deixaram a corrida olímpica de lado já planejando os próximos passos, caso de Letícia Bufoni, que agora divide o skate com o automobilismo. Referência para a geração de Rayssa Leal, a brasileira é multicampeã do X Games e foi vencedora da primeira edição feminina da liga mundial de street, a SLS, em 2015, ano em que eram dados os primeiros passos para transformar o skate em esporte olímpico.

Bufoni chegou aos Jogos de Tóquio como quarta do ranking mundial, não alcançou a final e terminou em nono lugar. Pretendia ir a Paris, mas refletiu melhor sobre isso depois de perder os dois primeiros eventos do classificatório olímpico do atual ciclo e decidiu não tentar a qualificação.

Ao anunciar a decisão, em entrevista à ESPN, disse que travou “uma batalha interna” até chegar à conclusão de que gostaria de priorizar outros projetos. Hoje, continua priorizando o skate, tanto que vai disputar o X Games no final deste mês, mas tem se dedicado também à Porsche Cup. Durante os Jogos Olímpicos de Paris, vai comentar as provas do street pela Globo.

Letícia Bufoni realiza manobra na pista de skate construída dentro de um avião Foto: Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool.

Dedicar-se a outros projetos foi um dos motivos que levou o ponteiro Douglas Souza, campeão olímpico com a seleção masculina de vôlei na Olímpiada do Rio-2016, a afastar-se temporariamente do esporte. Durante os Jogos de Tóquio, potencializou sua imagem ao angariar seguidores nas redes sociais, graças aos vídeos que fazia em seu quarto na Vila Olímpica. Junto a isso, virou uma importante voz da comunidade LGBTQIA+ no esporte.

Depois da disputa no Japão, Douglas se aposentou da seleção e decidiu tirar um período sabático. Acabou se envolvendo com o entretenimento, participou até da Dança dos Famosos e trabalhou como streamer, produzindo conteúdo voltado ao universo gamer. Ficou sem jogar de 2021 até o meio de 2022, quando assinou com o Farma Conde/São José, equipe que deixou para defender o Cruzeiro.

A aposentadoria da seleção continuou, mas a primeira convocação de Bernardinho, de volta ao comando do Brasil, surpreendeu a todos. Douglas apareceu na lista para a Liga das Nações, última competição oficial antes dos Jogos de Paris. Surgiu ao ponteiro, portanto, a oportunidade de disputar mais uma Olimpíada, mas ele não queria. Pouco depois de ser convocado, manifestou-se contundentemente.

“Quero informar que minha decisão de não voltar para a seleção já havia sido tomada desde os Jogos Olímpicos de Tóquio e não mudou. Eu já havia informado a CBV desta decisão. Sou imensamente grato a todos que torcem por mim e me apoiaram neste tempo em que estive com a nossa seleção. Agradeço aos meus treinadores e companheiros de seleção por este tempo em que estivemos juntos e conquistamos tantas vitórias, mas meu ciclo com a camisa da seleção já foi encerrado. Sigo agora somente com meu clube e desejando muito sucesso para a seleção brasileira de vôlei”, escreveu.

‘Cuidado para não ficar com raiva do esporte’

Com tempo para explorar outras facetas, Bruno Fratus está cursando faculdade de Publicidade e Propaganda, embora flerte com a possibilidade de trocar de curso. O sonho é se formar em Psicologia, área acadêmica pela qual tem grande paixão, mas que não é ensinada a distância. Como seu cronograma é irregular, cheio de viagens, aulas presenciais estão fora de cogitação no momento. O nadador também está pronto para apresentar um novo lado relacionado ao esporte, trabalhando como repórter na SporTV durante os Jogos Olímpicos.

“Estou virando juvenil de novo em vários outros aspectos. Era algo que me dava uma ansiedade tremenda antigamente. Tirava meu sono, eu não queria nem sequer pensar a respeito porque aquilo já me dava taquicardia, falta de ar. Mas, depois que você decide encarar o medo do novo, o medo de recomeçar, a coisa fica de fato prazerosa. Agora em vez de uma mensagem de resiliência, de superar seus limites e tudo mais, é muito mais uma mensagem de ‘enfrentar o medo e recomeçar pode ser muito bom’”, diz.

Já Henrique Avancini, agora longe da alta performance, não se distanciou do ciclismo e tem se esforçado para continuar contribuindo à cultura do esporte que ama. Correu provas de despedida e logo engatou um projeto audiovisual de expedições em que desbrava picos icônicos ou desafiadores do Brasil, além, claro, de tocar sua equipe.

“O grande ganho que eu tenho com minha aposentadoria é poder fazer coisas que antes eu não poderia fazer, que antes eu não teria o tempo ou a energia para poder fazer em prol da cultura da bicicleta. Então às vezes são coisas menos significativas. Acho que você ganhar uma copa do mundo dá muito mais repercussão para o esporte do que o que eu estou fazendo atualmente, porém são pequenas lacunas que eu consigo preencher”, diz o ciclista.

Além de registrar em vídeo suas expedições, Avancini gosta de fazer registros de seus tempos para compartilhar com quem acompanha seu trabalho. Tal preferência está relacionada ao fato de ele ter conseguido manter uma relação de diversão e bem estar com o ciclismo.

“Isso faz parte de como eu curto fazer o ciclismo. Então, isso é a parte do meu do meu lifestyle. Eu sempre fui assim, e não mudou nada, mesmo não competindo. Eu ainda gosto de subir na bicicleta e tentar andar rápido, isso é uma coisa que me diverte e isso era algo que eu faria de qualquer forma, como hobby”, explica.

É um relacionamento como o que Avancini mantém com o ciclismo que Fratus deseja ter com a natação quando decidir se aposentar. Ele quer se dar a chance de continuar competindo por mais algum tempo, mas, quando o inevitável momento de parar chegar, espera não ter ressentimentos.

“Um amigo muito próximo me falou: já que você vai tirar um tempo da natação, cuida para não ficar com raiva. Ele conhece e eu conheço muitos atletas que se aposentaram com raiva do esporte, e que a última coisa que eles queriam era entrar em uma água e falar sobre natação, esporte em geral”, diz o nadador. “Tudo que eu tenho foi a natação que me deu, em termos materiais, de reconhecimento, me permitiu dar um orgulho imenso para a minha família, tocar vidas e inspirar pessoas. Não faria o mínimo sentido eu me distanciar tanto.”

Paula Radcliffe era detentora do recorde mundial quando colocou as mãos nos joelhos e começou a chorar, durante a disputa da maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. A britânica, que continuaria recordista por 15 anos, não conseguiu completar a prova, o que a fez ser massacrada por parte da imprensa do Reino Unido. Afinal, havia desistido, e não importavam as explicações de que tinha sofrido uma lesão muscular pouco tempo antes da Olimpíada e que os medicamentos tomados para tratar o problema causaram uma irritação intestinal.

Mais tarde, em 2020, a maratonista disse à Sky Sports que “absolutamente não” competiria se não fosse uma maratona olímpica, o auge do esporte. A história de Radcliffe é uma das muitas citadas pela escritora Annelise Chen em seu livro Esforços Olímpicos, um romance com elementos de ensaio que questiona a cultura de sofrimento e a noção de sucesso e superação no meio esportivo e na sociedade. A obra foi lançada em 2019 e acompanhou o avanço de uma discussão que teve seu ápice nos Jogos de Tóquio, em 2021, quando as desistências da ginasta Simone Biles durante a competição, para cuidar da saúde mental, trouxeram o tema ao grande público.

No ciclo para os Jogos de Paris, a sensação é que o peso da palavra desistir não é mais o mesmo no mundo do esporte, assim como a relação dos atletas com o sofrimento e os sacrifícios desta carreira. “Existe uma romantização de coisas do tipo, como esse sofrimento, resiliência, até o ponto que a gente lembra que resiliência não quer dizer você bater um prego com a testa. Você precisa ser inteligente e usar a ferramenta certa para aquela atividade”, comenta o nadador brasileiro Bruno Fratus, medalhista de bronze dos 50 metros livre em Tóquio, ao Estadão.

Bruno Fratus foi medalhista dos 50 metros livre nos Jogos de Tóquio. Foto: Gaspar Nóbrega/COB

Aos 34 anos, Fratus tinha planos de disputar as duas próximas Olimpíadas, mas decidiu não participar da seletiva brasileira que daria vaga a Paris-2024 por estar certo de que não conseguiria ser competitivo nos Jogos. Após três cirurgias no ombro em pouco mais de um ano e outra no joelho, em fevereiro deste ano, o físico e o emocional já não eram mais os mesmos. Até a relação com a natação estava abalada.

“A partir do momento que você se vê constantemente lesionado, impossibilitado de fazer o que você quer fazer, o que você gosta de fazer, que é ser um atleta, competir, isso vai gerando um peso muito grande na parte mental. Até o ponto que aquela atividade que era uma grande motivação, a razão da sua vida, da sua existência, passa a ser algo extremamente doloroso no seu dia”, diz.

O medalhista olímpico está dando um tempo das piscinas, mas não está aposentado. “Foi meio que aquele término que as duas pessoas do relacionamento entendem que, apesar de se amarem muito, é melhor separar, e ainda não é o momento de cultivar uma amizade, porque tem muita coisa que está curando, que está aberta.”

Em um primeiro momento, ao se ver pensando na possibilidade de parar, desistir ou abrir mão de uma competição, o atleta pode questionar se cedeu a um impulso de fraqueza, já que está acostumado a resistir. Isso passou pela cabeça de Fratus, mas todo o processo mental o levou a concluir que estava diante de uma demanda interna importante.

“A partir do momento que você toma uma decisão contraintuitiva como escolher algo diferente à resiliência física, parece estranho, parece errado. O pensamento de desistência veio. Depois entendi, não é desistência, é priorização. Eu estou priorizando outros aspectos, escolhendo outros desafios, outro caminho. Isso, lógico, vem com o entendimento de que a vida não é só natação, esporte, competição. Me dei conta que eu estava negligenciando uma parte muito importante da minha vida em prol de um resultado esportivo”, afirma.

Como diz o nadador medalhista olímpico, a rotina de competidor leva “a vida social a zero” e as relações mais próximas se restringem ao âmbito profissional. No caso dele, até com a própria mulher, Michelle Lenhardt, também sua treinadora. “Não pode estar em feriado, em aniversário. Eu saio do papel de marido de tempos em tempos e acabo sendo atleta dentro de casa. Quanto mais disso vai ser o suficiente para satisfazer essa busca obsessiva e desenfreada por performance? Se estivesse tudo bem, seguiria o jogo, mas não estava”, explica.

Fratus está satisfeito com a decisão e com o que vem colhendo desde então. Não se trata apenas de ter recuperado e solidificado relações, mas também de ter se conectado com questões que eram suprimidas pela rotina levada até pouco tempo atrás.

“Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento”. reflete. “Foi isso que me fez chegar onde cheguei, mas a um preço alto. Tirei essa mentalidade extremista em relação à performance e comecei a ser um cara mais de boa. Aconteça o que acontecer o sol vai nascer amanhã, o mundo continua girando e a gente vai dar um jeito no que tiver que dar”, conclui.

Estou em contato com uma parte de mim que eu não era muito íntimo, uma vulnerabilidade humana que todo mundo tem. Esse tipo de vulnerabilidade, sentimento e oscilação que nos torna humanos. Fui acostumado por muito tempo a ser esse animal, essa máquina competitiva, que abafava sentimentos em prol de rendimento

Bruno Fratus

A hora de sair de cena

Alguns dos sentimentos de Fratus são semelhantes aos cultivados pelo ciclista Henrique Avancini, outro atleta brasileiro que poderia estar em Paris e decidiu não continuar com a busca pela classificação. O ícone do mountain bike, contudo, deu um passo mais radical e se aposentou em agosto de 2023, mesmo com chances altíssimas de ir à sua terceira Olimpíada.

No final das contas, os 1.277 pontos que somou no ranking da União Internacional de Ciclismo (UCI, na sigla em inglês) durante o período deste ciclo olímpico ajudaram o Brasil a terminar em nono lugar, obtendo uma vaga. As cotas do mountain bike são por país e abarcaram o período de 2022 até o meio de maio de 2024, por isso os pontos dele foram contabilizados.

O convocado pela Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) para ocupar a cota brasileira foi Ulan Galinski, integrante da Avancini Racing. Ter saído de cena para abrir espaço para um jovem ciclista faz o campeão mundial e ex-número 1 do mundo ficar ainda mais certo de sua escolha.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida. Em contrapartida, muda a vida de quem for. Então, acho que não foi tão difícil eu abrir mão assim dos Jogos Olímpicos de Paris”, explica Avancini ao Estadão.

Henrique Avancini foi bicampeão mundial da maratona cross-country, modalidade não olímpica, antes de se aposentar. Foto: Divulgação/UCI

A decisão foi tomada de forma muito consciente, mesmo tendo vivido uma grande frustração na Olimpíada anterior. No clico de Tóquio, o ciclista petropolitano teve grande evolução e chegou a liderar o ranking da UCI em 2020. Durante os jogos, foi 13º, melhor resultado de um brasileiro no MTB olímpico, mas motivo de decepção para Avanicni. “Tive problemas, alguns problemas com o meu time, problemas de saúde. Enfim, para mim foi uma grande frustração. Então, as minhas memórias olímpicas não são tão prazerosas.’

O desapontamento no Japão, contudo, não impediu o ciclista de pensar com clareza quando decidiu se aposentar podendo ir a Paris. Ele vinha sofrendo com consecutivas lesões e foi diagnosticado com depressão. Neste período, teve de lidar com um problema de saúde que fez sua filha Liz, na época com 4 anos, passar duas semanas na UTI. Chegou até a bater o carro, tamanho o desgaste emocional.

“Ter mais uma chance era algo que eu considerava, pensava ‘pô, eu mereço correr os Jogos Olímpicos de novo’. Só que 2023 foi um ano pesado para mim, principalmente pelas lesões que eu tive no quadril, no joelho. Foi um ano muito maçante para mim”, afirma.

“De certa forma, eu sentia que um atleta mais jovem iria valorizar muito mais esse momento do que eu e teria muito mais benefícios de uma participação olímpica do que eu. Mal ou bem, construí meu nome dentro do esporte brasileiro, então ir para mais uma Olímpiada não é algo que mudaria a minha vida.

Henrique Avancini

O trabalho fora das piscinas, das trilhas, das quadras...

Os esforços logísticos e financeiros de se manter como atleta olímpico também contribuem para minar ambições ao longos dos anos. No mountain bike, ir bem em uma Olímpiada depende de muita coisa. Embora tenha tido suporte do COB no último ciclo, Avancini vê muitos desafios na parte da preparação.

“Como fui top 1 do mundo, tive um pouquinho de influência para trazer a minha fisioterapeuta e o meu mecânico para Tóquio. Conseguia manter um pouco mais do que era a minha rotina de trabalho, mas você precisa se adequar a um método de trabalho do Comitê Olímpico. No caso do mountain bike, isso impacta demais, porque geralmente você trabalha com mais pessoas com o conhecimento específico da modalidade. E aí, pela restrição de espaço, de credenciais, o número das delegações, isso impacta demais o atleta”

Mais crítico, Fratus também vê limitações em se manter como atleta de alta performance dentro da natação, mesmo depois de ter se tornado medalhista olímpico. Ele é gestor da própria carreira, ao lado da mulher Michelle, situação que atribui ao quão sobrecarregadas estão as instituições esportivas.

“O alto rendimento no Brasil é regido por dois pilares: o COB, que fornece esse ambiente de alto rendimento, e os clubes, que estão extremamente sobrecarregados. Cuidam da formação, do alto rendimento, do nível olímpico, e é dividido com a parte social, o sócio que está usando com a família, lazer. Dois corpos não conseguem ocupar o mesmo espaço, o que acaba espremendo profissionais para fora do País. Ao mesmo tempo, o Comitê tem sua limitações políticas, burocráticas, algo compreensível de uma instituição que se mantém, na maior parte, com dinheiro público”, diz.

“Só que isso faz com que seja extremamente complexo e desgastante fazer alto rendimento no Brasil. É um processo penoso, gera muita discussão. Às vezes o simples fato de todas as pessoas terem o mesmo objetivo já é difícil. É uma parte que acaba dando uma fadigada, já no seu quarto ciclo olímpico. Precisar explicar a coisa diversas vezes, precisar lutar pela mesma situação que você já conseguiu no passado. Precisar justificar algo que os resultados, no ponto de vista de atleta, seriam suficientes para justificar”, completa.

Caminhos e prioridades

Não estar focado na busca incessante pela Olímpiada traz a oportunidade de procurar novos caminhos ou priorizar outros aspectos pessoais. Há atletas que deixaram a corrida olímpica de lado já planejando os próximos passos, caso de Letícia Bufoni, que agora divide o skate com o automobilismo. Referência para a geração de Rayssa Leal, a brasileira é multicampeã do X Games e foi vencedora da primeira edição feminina da liga mundial de street, a SLS, em 2015, ano em que eram dados os primeiros passos para transformar o skate em esporte olímpico.

Bufoni chegou aos Jogos de Tóquio como quarta do ranking mundial, não alcançou a final e terminou em nono lugar. Pretendia ir a Paris, mas refletiu melhor sobre isso depois de perder os dois primeiros eventos do classificatório olímpico do atual ciclo e decidiu não tentar a qualificação.

Ao anunciar a decisão, em entrevista à ESPN, disse que travou “uma batalha interna” até chegar à conclusão de que gostaria de priorizar outros projetos. Hoje, continua priorizando o skate, tanto que vai disputar o X Games no final deste mês, mas tem se dedicado também à Porsche Cup. Durante os Jogos Olímpicos de Paris, vai comentar as provas do street pela Globo.

Letícia Bufoni realiza manobra na pista de skate construída dentro de um avião Foto: Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool.

Dedicar-se a outros projetos foi um dos motivos que levou o ponteiro Douglas Souza, campeão olímpico com a seleção masculina de vôlei na Olímpiada do Rio-2016, a afastar-se temporariamente do esporte. Durante os Jogos de Tóquio, potencializou sua imagem ao angariar seguidores nas redes sociais, graças aos vídeos que fazia em seu quarto na Vila Olímpica. Junto a isso, virou uma importante voz da comunidade LGBTQIA+ no esporte.

Depois da disputa no Japão, Douglas se aposentou da seleção e decidiu tirar um período sabático. Acabou se envolvendo com o entretenimento, participou até da Dança dos Famosos e trabalhou como streamer, produzindo conteúdo voltado ao universo gamer. Ficou sem jogar de 2021 até o meio de 2022, quando assinou com o Farma Conde/São José, equipe que deixou para defender o Cruzeiro.

A aposentadoria da seleção continuou, mas a primeira convocação de Bernardinho, de volta ao comando do Brasil, surpreendeu a todos. Douglas apareceu na lista para a Liga das Nações, última competição oficial antes dos Jogos de Paris. Surgiu ao ponteiro, portanto, a oportunidade de disputar mais uma Olimpíada, mas ele não queria. Pouco depois de ser convocado, manifestou-se contundentemente.

“Quero informar que minha decisão de não voltar para a seleção já havia sido tomada desde os Jogos Olímpicos de Tóquio e não mudou. Eu já havia informado a CBV desta decisão. Sou imensamente grato a todos que torcem por mim e me apoiaram neste tempo em que estive com a nossa seleção. Agradeço aos meus treinadores e companheiros de seleção por este tempo em que estivemos juntos e conquistamos tantas vitórias, mas meu ciclo com a camisa da seleção já foi encerrado. Sigo agora somente com meu clube e desejando muito sucesso para a seleção brasileira de vôlei”, escreveu.

‘Cuidado para não ficar com raiva do esporte’

Com tempo para explorar outras facetas, Bruno Fratus está cursando faculdade de Publicidade e Propaganda, embora flerte com a possibilidade de trocar de curso. O sonho é se formar em Psicologia, área acadêmica pela qual tem grande paixão, mas que não é ensinada a distância. Como seu cronograma é irregular, cheio de viagens, aulas presenciais estão fora de cogitação no momento. O nadador também está pronto para apresentar um novo lado relacionado ao esporte, trabalhando como repórter na SporTV durante os Jogos Olímpicos.

“Estou virando juvenil de novo em vários outros aspectos. Era algo que me dava uma ansiedade tremenda antigamente. Tirava meu sono, eu não queria nem sequer pensar a respeito porque aquilo já me dava taquicardia, falta de ar. Mas, depois que você decide encarar o medo do novo, o medo de recomeçar, a coisa fica de fato prazerosa. Agora em vez de uma mensagem de resiliência, de superar seus limites e tudo mais, é muito mais uma mensagem de ‘enfrentar o medo e recomeçar pode ser muito bom’”, diz.

Já Henrique Avancini, agora longe da alta performance, não se distanciou do ciclismo e tem se esforçado para continuar contribuindo à cultura do esporte que ama. Correu provas de despedida e logo engatou um projeto audiovisual de expedições em que desbrava picos icônicos ou desafiadores do Brasil, além, claro, de tocar sua equipe.

“O grande ganho que eu tenho com minha aposentadoria é poder fazer coisas que antes eu não poderia fazer, que antes eu não teria o tempo ou a energia para poder fazer em prol da cultura da bicicleta. Então às vezes são coisas menos significativas. Acho que você ganhar uma copa do mundo dá muito mais repercussão para o esporte do que o que eu estou fazendo atualmente, porém são pequenas lacunas que eu consigo preencher”, diz o ciclista.

Além de registrar em vídeo suas expedições, Avancini gosta de fazer registros de seus tempos para compartilhar com quem acompanha seu trabalho. Tal preferência está relacionada ao fato de ele ter conseguido manter uma relação de diversão e bem estar com o ciclismo.

“Isso faz parte de como eu curto fazer o ciclismo. Então, isso é a parte do meu do meu lifestyle. Eu sempre fui assim, e não mudou nada, mesmo não competindo. Eu ainda gosto de subir na bicicleta e tentar andar rápido, isso é uma coisa que me diverte e isso era algo que eu faria de qualquer forma, como hobby”, explica.

É um relacionamento como o que Avancini mantém com o ciclismo que Fratus deseja ter com a natação quando decidir se aposentar. Ele quer se dar a chance de continuar competindo por mais algum tempo, mas, quando o inevitável momento de parar chegar, espera não ter ressentimentos.

“Um amigo muito próximo me falou: já que você vai tirar um tempo da natação, cuida para não ficar com raiva. Ele conhece e eu conheço muitos atletas que se aposentaram com raiva do esporte, e que a última coisa que eles queriam era entrar em uma água e falar sobre natação, esporte em geral”, diz o nadador. “Tudo que eu tenho foi a natação que me deu, em termos materiais, de reconhecimento, me permitiu dar um orgulho imenso para a minha família, tocar vidas e inspirar pessoas. Não faria o mínimo sentido eu me distanciar tanto.”

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