Ronaldo Souza vivia mais um dia de trabalho como operador de máquinas, em 2001, quando passou mal e precisou de atendimento médico. A situação foi um sintoma do grande esforço que ele fazia pelo sonho de se tornar um profissional de taekwondo, com treinos exaustivos nos horários de folga e sem a suplementação alimentar necessária para aguentar uma rotina tão intensa.
O lutador mal podia imaginar que, a partir daquele momento, começaria a construir um projeto social que ajudaria mais de 8 mil crianças e adolescentes a mudarem de vida em Santa Rita, na Paraíba, e ainda colocaria alunos na seleção brasileira de taekwondo. A cidade paraibana faz parte da região metropolitana de João Pessoa e tem alto índice de violência .
Ronaldo já havia passado mal outras vezes na fábrica da Alpargatas, seu local de trabalho, por isso foi levado à sala de Berivaldo Araújo, funcionário do RH, e explicou a situação. Sensibilizado ao ouvir o relato, Berivaldo se movimentou dentro da empresa e conseguiu um aporte de recursos para incentivar o sonho do aspirante a atleta.
O auxílio financeiro era algo que Ronaldo buscava há muito tempo. Quase um ano antes de consegui-lo, ele trabalhava em outra empresa, da qual foi demitido após pedir apoio. “Cheguei para a gerência e pedi patrocínio para viajar, disputar campeonato, mas parece que o gerente não estava em um dia muito bom. Aí eu fui demitido, e acho que já iria ser mesmo. Ele falou: ‘Então, você quer tempo e dinheiro? Pode ficar tranquilo que agora o tempo você tem’”, relembra o lutador e professor de taekwondo de 46 anos, em entrevista ao Estadão.
A demissão o levou, alguns meses depois, ao emprego na fábrica onde encontrou, na figura de Berivaldo, o apoio que precisava para evoluir. Com isso, foi campeão paraibano e brasileiro dentro da Liga Nacional de Taekwondo, entidade paralela à Confederação Brasileira e não filiada ao Comitê Olímpico. Também teve títulos fora do Brasil, mas cultivava objetivos além das competições.
Certo dia, Ronaldo bateu novamente à porta de Berivaldo e revelou o desejo de montar uma escolinha de taekwondo para filhos de funcionários. Ouviu que não havia recursos, mas insistiu, sugerindo utilizar salas vazias e reciclar materiais descartados pela fábrica para improvisar tatames e sacos de pancada. Carismático e munido de argumentos, conseguiu a liberação e começou a ministrar as aulas, que, em 2003, deixaram de ser restritas aos empregados e foram abertas à comunidade local, após a fundação do Instituto Alpargatas, braço social da empresa dirigido por Berivaldo.
No Centro Social Urbano de Santa Rita, espaço cedido pelo Governo do Estado, no bairro Alto das Populares, passou a funcionar o Projeto Escolinha de Taekwondo, agora ativo há mais de 20 anos. A inscrição nas aulas só pode ser feita por crianças e adolescentes matriculados na escola. Além disso, é exigido um bom desempenho escolar ao longo do ano, sem reprovações, para continuarem no projeto. “Tem só duas histórias de alunos que não puderam ser matriculados no ano seguinte porque foram reprovados. Um deles melhorou a nota e voltou. A educação é o nosso foco”, diz Berivaldo.
BUSCA POR OPORTUNIDADE
O sistema ajudou muitos dos alunos de Ronaldo a serem inseridos no ensino superior e a escaparem da realidade violenta dos bairros mais vulneráveis de Santa Rita, que costuma aparecer em estudos sobre taxas de homicídio em municípios brasileiros. Um levantamento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2021, baseado na taxa média de homicídios dolosos por 100 mil habitantes entre 2018 e 2020, colocou a cidade paraibana entre as 15 mais violentas do Brasil nesse período.
Com uma população de cerca de 140 mil habitantes, Santa Rita teve 84 crimes violentos letais intencionais (CVLI) registrados ao longo de 2022, de acordo com dados do Anuário de Segurança Pública do Governo da Paraíba. A capital João Pessoa, que tem mais de 820 mil habitantes, registrou 200 casos de CVLI.
Na Escolinha de taekwondo, os alunos têm acesso a alimentação, esporte e educação. Embora o foco do projeto seja educar, o desempenho esportivo também tem aberto portas. Em fevereiro deste ano, os alunos Davi Gonçalves de Araújo Silva, 12, e Ana Letícia Soares, 13, foram ao Rio participar das seletivas da Confederação Brasileira de TaeKwonDo (CBTKD) para a seleção brasileira. Os dois conseguiram vagas de reservas na categoria cadete, de 12 a 14 anos.
Davi terá a oportunidade de participar do Pan-Americano, na República Dominicana, entre 24 a 26 de abril, pois um dos titulares não poderá viajar e ele assumiu a vaga. “Eu nunca tinha imaginado que conseguiria uma vaga na seleção brasileira. Quando eu contei para a minha família, se animaram muito”, diz o garoto, que está há oito anos na escolinha e se espelha em Ronaldo. “Se der tudo certo, quero lutar por muito tempo e também dar aula”.
Ana Letícia, aluna há quatro anos, segue como reserva e aguarda uma oportunidade de ser acionada. “Estou tentando manter a calma. É uma coisa que comecei a fazer por fazer e agora virou um negócio bem sério”, afirma. Em agosto, os dois adolescentes esperam participar do Mundial da categoria, na Bósnia.
Foi a primeira vez que alunos do projeto entraram para a seleção da CBTKD, entidade olímpica do taekwondo no Brasil. Nas duas últimas décadas, contudo, muitas histórias foram escritas dentro da escolinha. Ronaldo lembra de todas, como o dia em que dois garotos, um maior e um menor, o procuraram para saber como participar das aulas.
Ele explicou que era preciso que os pais assinassem um termo de compromisso e viu o mais alto ficar desconfortável, pois não conhecia o pai e tinha perdido a mãe recentemente. Ronaldo o colocou para treinar e observou o despertar da paixão pelo taekwondo. O novo aluno passou a andar vestido com o kimono pelas ruas e ganhou o apelido de Michael Jackson, já que gostava de imitar a lenda americana do pop.
“Ele ganhou o quimono e ficou usando como se fosse uma roupa de sair. Ele treinou muito tempo aqui, pegou faixa amarela, mas saiu porque a família o levou para outro bairro. Botei o apelido dele de Michael Jackson, porque a gente fazia festivais com as crianças e ele se apresentava imitando. Isso é só uma das histórias a esse nível. A gente vê mães e pais sendo assassinados. Enquanto isso, tentamos mudar alguma coisa na vida de quem resta dessas famílias”, comenta Ronaldo.
COLETIVIDADE
Também há um esforço para incluir os parentes dos alunos no projeto. Neste ano, foi lançada uma nova ação do Instituto Alpargatas, em parceria com o Senai, para que pais e mães tenham a oportunidade de estudar em cursos profissionalizantes. Ronaldo convive diariamente com essas famílias e faz o possível para solucionar questões de convivência familiar que são levadas a ele diariamente.
“A gente tem todos os níveis que você pode imaginar de problemas. O Ronaldo trata isso todos os dias, por isso ele é tão respeitado. A comunidade, os pais, as mães, tratam ele como espelho. Em alguns casos, ele passa a ser um pai para cada um desses meninos”, diz Berivaldo. “Nós temos muitos alunos, que, se não fosse o taekwondo, a gente já teria perdido para o tráfico. A gente perdeu alguns. Saio por lá entregar uniforme com ele e tem criança que diz isso: ‘Tio, muito obrigado, sem esse projeto não sei onde eu estaria’”.
Criado em Santa Rita e profundamente conectado com a cidade, onde é reconhecido nas ruas, Ronaldo perambula pelos bairros com um carro de som para recrutar novos alunos para a escolinha. Conta também com um imenso apoio de voluntários, muitos deles ex-alunos que se formaram em diferentes áreas e fizeram questão de retribuir ao projeto a oportunidade que tiveram quando mais novos. Hoje, o que era um sonho individual de um apaixonado por taekwondo se transformou em algo bem maior.
“Eu assisti um filme quando eu era criança e tinha um cara que lutava arte marcial, mas ninguém conhecia ele e de repente ele fica super famoso. Encuquei que eu queria ser igual a ele”, afirma Ronaldo. “Então, aconteceu todo aquele conto de fadas, eu virei atleta semiprofissional, viajei para outros países. A ideia se expandiu para a comunidade e já foram milhares de histórias que passaram por esse projeto”, disse.