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Raí vê ousadia, diversidade e riqueza nas Olimpíadas: 'Se pecaram, pecaram pelo excesso'
PARIS - Poucos brasileiros são tão conhecidos na França como Raí. É raro que ele se sente num café ou caminhe nas ruas de Paris sem ser abordado por alguém pedindo uma foto. Geralmente é parado por um brasileiro ou um torcedor do Paris Saint-Germain, do qual o ex-jogador foi eleito o maior ídolo em eleição recente.
Raí é cidadão francês desde 2016 e tem relação profunda relação com a capital francesa, que é sede das Olimpíadas mais uma vez depois de um século. “É um megaevento. Estou sentindo que a cidade está com o astral de Olimpíadas. Está respirando esse espírito olímpico, com espaços democráticos que o evento se propôs a oferecer”, diz.
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Raí conversou a reportagem do Estadão em um café na região central de Paris. Vestido com uma camisa do Brasil e um par de chinelos havaiana, o ex-atleta, que foi o único brasileiro a carregar a tocha olímpica dos Jogos de Paris, considera que a cerimônia de abertura dos Jogos foi plural, diversa, rica e ousada. “Foi uma mensagem de inclusão, de arte e de busca de uma nova ordem para o nosso futuro. Eu, particularmente, adorei”.
Tetracampeão mundial com a seleção brasileira, o ídolo do São Paulo deu suas impressões sobre a realização do megaevento na cidade que o acolheu. Ele virou uma espécie de embaixador informal do Brasil na França e vice-versa. Foi, desde 2016, um dos “padrinhos” internacionais da candidatura parisiense.
Ele voltou a morar em Paris para realizar um de seus grandes sonhos: o mestrado. Recentemente, obteve diploma de mestre em Políticas Públicas pela Universidade Sciences Po, uma das mais prestigiadas do mundo. A ideia, agora, é aplicar seu projeto, que discute a integração radical entre arte, esporte e educação, em uma pequena cidade do Nordeste, de 10 a 15 mil habitantes, para servir como modelo de democratização à prática esportiva. “Quero fazer o projeto em uma cidade que tem essa vocação, não quero impor nada”, afirma ele, que diz ter visitado municípios na Bahia e no Maranhão.
“Provo na minha dissertação que essas atividades lúdicas têm impacto muito grande no desenvolvimento humano, educacional, cognitivo e de integração. São atividades hoje, num mundo tão dividido, que quebram as diferenças e juntam as pessoas. Tem tudo isso dentro do projeto, que visa radicalizar a integração e universalizar o acesso a esse tipo de política pública. Essas atividades têm que ser um direito humano”, explica Raí.
Está gostando das Olimpíadas na cidade onde você mora?
Sempre achei que seria algo maravilhoso e único, com todos os riscos que todo grande evento traz. Meu envolvimento com as Olimpíadas de Paris começou meio por acaso. Em 2016, formaram uma comissão para a candidatura de Paris e me convidaram para ser um dos padrinhos internacionais da candidatura. Entrei há nove anos, oficialmente em 2016, depois das Olimpíadas do Rio. Eles reconhecem isso, reconhecem alguém que acreditou no projeto. Encontrava o pessoal da organização e depois aqui comecei a me envolver mais com o comitê organizador. Vi que a coisa ia ser grandiosa como está sendo, e ousada. A cerimônia fora de um estádio, a Olimpíada mais sustentável e emprestar os símbolos e tudo que Paris representa ao universo olímpico e a todas as modalidades. Você vê os pontos icônicos da cidade integrados com o público, com os esportes.
Acha que Paris está integrada ao movimento olímpico, apesar da fuga dos parisienses?
Não foi fácil para o parisiense nesse último ano, com as preparações, mas faz parte. É um megaevento. Estou sentindo que a cidade está com o ambiente, o astral de Olimpíadas. E diversidade, com espaços democráticos que o evento se propôs a oferecer. Existem muitos pontos de encontro e opções para quem não tem ingresso. Muitos parisienses acabaram saindo mesmo da cidade, com o medo de que seria conturbado, mas está bem tranquilo. Num verão normal, sem Olimpíada, haveria muito mais gente aqui. As pessoas têm se locomovido com facilidade, de bicicleta, metrô. Está tudo nos conformes, nas arenas, nos ginásios e também nas ruas, pra uma grande festa, cheio de momentos histórico.
Os mais conservadores criticaram a cerimônia de abertura. Você gostou?
Achei muito ousada a cerimônia. Não é fácil fazer um espetáculo pensado fora do estádio em 6 quilômetros, durante quatro horas, com toda segurança que exigia. Se pecaram, pecaram pelo excesso. O que vimos foi diversidade, todas as religiões representadas e uma mensagem maravilhosa de inclusão e união. Óbvio, como todo espetáculo bate nas pessoas de maneira diferente. Eu vi uma riqueza no evento, riqueza estética e ética, reforçando os valores da França e da Revolução Francesa. Foram incluídas todas as manifestações artísticas e em tudo tentaram ir além de mostrar a França. Teve Rafael Nadal, Carl Lewis, Nadia Comaneci… Foi uma mensagem de inclusão, de arte e de busca de uma nova ordem para o nosso futuro. Eu, particularmente, adorei.
Você é cidadão francês desde 2016, tem se pronunciado cada vez mais em questões políticas na França e acabou de concluir o mestrado em políticas públicas em uma das mais prestigiadas universidades do mundo, a Sciences Po. Queria que contasse sobre sua dissertação. Tem a ver com a Gol de Letra, certo?
Tem a ver com a Gol de Letra, com oportunidade, com a democracia, que está em risco. A base da Gol de Letra é que todos tenham oportunidades iguais, de que todos tenham possibilidades iguais de desenvolvimento humano. A base da minha dissertação no mestrado é a integração radical entre arte, esporte e educação. E falo aqui em esportes como um movimento, ligado à educação, ao desenvolvimento cognitivo e social também do jovem, até no plano urbanístico, por isso o projeto de políticas públicas cita a integração de praças, quadras, clubes e ruas em favor das atividades lúdicas. O nome do projeto é “ludicidade”, um jogo de palavras para cidades lúdicas. A ideia é pegar todas essas linguagens consideradas não necessárias.
Provo na minha dissertação que essas atividades lúdicas têm impacto muito grande no desenvolvimento humano, educacional, cognitivo e de integração. São atividades hoje, num mundo tão dividido, que quebram as diferenças e juntam as pessoas. Tem tudo isso dentro do projeto, que visa radicalizar a integração e universalizar o acesso a esse tipo de política pública. Essas atividades têm que ser um direito humano.
Onde você quer pôr em prática seu projeto no Brasil? Como seria?
Quero aplicar numa cidade pequena do Brasil, de 10 a 15 mil habitantes. Penso entre Norte e Nordeste, minha origem é de lá. Meu pai, seu Raimundo, veio de Fortaleza e minha mãe, do Pará. Quero fazer o projeto em uma cidade que tem essa vocação, não quero impor nada. Acho que essas regiões são ricas para receber esse tipo de desafio, com esse projeto piloto. Eu visitei algumas cidades na Bahia e no Maranhão. Ainda não terminei as visitas. Tem que ter o apoio privado e, principalmente, do poder público. Haverá as eleições de prefeito em breve. Depois, acho um momento oportuno para começar o projeto. Vamos procurar alguém que politicamente tenha afinidade com esse tipo de ideia de justiça social, e também conseguir o apoio privado porque as prefeituras têm limitações de recursos.
Meu projeto pensa nisso, com inclusão social, desenvolvimento e educação. Melhorou muito o investimento no alto rendimento, mas na base não. Cerca de 0,004% do PIB vai pro esporte, é quase nada. E não tem essa integração com ministérios que têm muito mais recursos, como educação, saúde e cultura. É uma questão de potencializar isso. Não existe milagre: para se ter resultados consistentes e de longo prazo, não para um ou dois ciclos olímpicos, é democratizar o acesso ao esporte, assim os talentos vão surgir. E, claro, usar o esporte como ferramenta de inclusão social. A gente vê diversos heróis nosso, como a Daiane dos Santos, que foi descoberta numa praça, o Guga, a Rebeca, a Rayssa. A gente vê que temos que valorizar ainda mais porque são heróis. Quantos desses talentos a gente não alcança porque não existe essa política de democratização do acesso às modalidades esportivas? E tem a questão de o esporte juntar as pessoas e quebrar as resistências. Acaba sendo um modo de expressão. O esporte é a voz também, é a base da democracia, o modo de cada um se expressar.
O Mbappé e outros astros do futebol e de outros esportes se engajaram nas eleições na França. Por que no Brasil a gente não vê isso? Por que o atleta brasileiro não se engaja em outro tema que não seja o esporte?
Bom, o papel dos esportistas aqui aqui foi fundamental, foi corajoso, assim como temos o exemplo do Vini Jr também, um atleta engajado, corajoso e que está representando uma causa importantíssima. Então, o Vini é um bom exemplo nosso. Os atletas franceses foram corajosos porque usaram a Eurocopa para a sua voz. É um país misturado, cheio de imigrantes.. Então é um país misturado que no esporte, nas artes, na política, em tudo é resultado dessa dessa mistura que cria um povo mais diverso, mais rico, em todos os sentidos. Acabei sendo chamado e participando desse movimento dentre os esportistas, são pessoas ligadas ao esporte.
Eu acho que as pessoas têm de se interessar por termos atuais, não só os esportistas. Acho que as novas gerações se interessando por temais atuais vai ter um reflexo direto na vida dessas pessoas. gerações. Se interessar e se informar é o que dá a base para você ter sua própria opinião.
A Ana Moser outro dia me disse que o vôlei era muito fechado, na época dela e até hoje. É só por causa da bolha, que eles vivem em um ambiente fechado e não se relacionam com outros assuntos, com outros temas e não se engajam, ou tem mais coisa?
Eu sempre acho que o esporte é reflexo da sociedade. Sobre brasileiros de maneira geral, ainda temos muito a crescer nesse sentido, de movimentos sociais, como a gente vê no continente muito mais antigo o nosso, em democracia nem se fala. A Ditadura acabou algumas décadas atrás. Então, acho que é reflexo. Obviamente que o atleta de destaque internacional acaba tendo mais responsabilidade. A gente espera mais, cobra mais dos atletas. Sem dúvida, da mesma maneira que a sociedade tem que se politizar, ainda mais, se engajar assim, se interessar, não vai ter nenhuma transformação sem movimentos sociais. Os movimentos sociais têm que se fortalecer e os atletas têm que estar ligados, saber que eles são referências também de movimentos sociais, de gerações, para futuras transformações.
Você fará 60 anos ano que vem. O que te motiva a continuar se engajando nos temas sociais?
O mais me motiva a continuar e foi a coisa que eu mais tem orgulho foi quando iniciei o movimento do Gol de Letra, ainda jovem, com 34, 35 anos, e ver que muita gente pensa como eu. Iniciei um projeto junto com Leonardo que, hoje em dia, tem centenas de pessoas responsáveis. Tem resultado para todo lado. O que mais me motiva é ver que quando você se dá e investe naquilo que você acredita, e, principalmente, democratiza as oportunidades, existem resultados espetaculares,
Quando tenho algum desânimo, alguma coisa que realmente nem sempre é fácil e vejo os milhares de jovens homens, empreendedores, artistas, que passaram pelo Gol de Letra e valorizam o que eles tiveram ali, como algo que fez a diferença na vida deles - e são milhares e milhares de exemplos -, isso sem dúvida nenhuma me motiva. Quando eu vou visitar a Gol de Letra e vejo o engajamento de um educador que está lá no dia a dia, eu não tenho direito desanimar esse cara que está aqui todo dia, 7 da manhã, para dar aula na Periferia de São Paulo. Então, o pessoal que está lá no campo é que faz a grande diferença, são as pessoas né? Graças aos educadores, assistentes sociais, das pessoas que estão lá no dia a dia para fazer diferença na vida, que se entregam para isso, que tem esse talento, essa vocação, é o que me motiva e me fortalece.