Raicca Ventura tem 15 anos e anda de skate há quase uma década. Deu as primeiras remadas (como chamam o impulso que faz com o pé) com 6, começou a competir com 11, evoluiu rápido e logo se destacou nos cenários de park e vertical. Ao longo de 2022, viveu o ápice da carreira ao terminar o ano como líder do ranking de park do STU, o circuito brasileiro de skate, e se firmou como forte candidata a representar o Brasil na Olimpíada de Paris, em 2024, além de ter se aproximado do lendário Bob Burnquist, que a ajudou a alcançar feitos inéditos na desafiadora mega rampa.
Depois de um ano tão bom, Raicca ficou mais conhecida, até mesmo fora do universo do skate, mas não sente qualquer dose extra de pressão diante da exposição e mantém a postura despretensiosa e confiante que exibe dentro e fora das pistas. “Não me importo que tem muita gente me olhando, é até bom. Não sinto a pressão. Eu sinto a pressão que eu sempre sinto, me cobro para acertar”, disse ao Estadão.
A cobrança interna da adolescente tem um foco claro. O maior sonho dela é disputar os Jogos de Paris, em 2024, e o caminho para alcançar o objetivo atingirá um ponto importante no início de fevereiro, quando começa a disputa do Mundial de Park, em Sharjah, nos Emirados Árabes, primeira competição da modalidade que conta pontos para a Olimpíada.
PAI PROFESSOR E TIO INOVADOR
A relação de Raicca com o skate, contudo, vai além da obsessão olímpica e dos limites do “bowl”, nome da pista do park, que é tipo uma piscina, e seus obstáculos. Filha do skatista Elber Bereta, que dava aulas em uma extinta pista de São Bernardo do Campo, aprendeu com ele não só a praticar o esporte, mas a viver a cultura que o envolve. Sempre que possível, gosta de andar de skate com o pai, embora ele tenha preferência pelo street e ela pelo park.
“Ele é prego agora”, brinca a campeã brasileira. “Às vezes a gente anda junto, mas ele é mais ‘streeteiro’, eu sou mais park, mas eu ando às vezes com ele, sim. Ele que não anda comigo. Ando todo dia, ele não quer andar. Espero que eu não fique assim”, completa.
A família é repleta de skatistas. Irmão de Bereta e tio de Raicca, Vanderley Arame é conhecido no mundo do skate pela criatividade e afeição por desafios. Já montou uma minirrampa flutuante na represa Billings, em 2011, e fez uma sessão sobre as águas, registrada no vídeo “Um sonho flutuante” e em fotos publicadas na revista “CemporcentoSKATE”. Em 2013, foi capa da mesma revista após realizar mais uma de suas ideias: fazer manobras em uma rampa suspensa no ar por um balão.
VOANDO EM DREAMLAND
Assim como o tio, Raicca adora se desafiar, por isso se animou quando convidada por Burnquist para andar em sua Mega Rampa, na cidade californiana de Vista. A estrutura tem 170 metros de comprimento e 24 metros de altura. Na primeira vez em que esteve lá, a adolescente se tornou, ao lado de Dora Varella, a primeira brasileira a completar um dos trajetos possíveis no monstro de madeira. Elas desceram e vararam o menor vão da pista, que é seguido de um caixote onde é feita a aterrissagem para se transferir à outra rampa. Lá, a volta é concluída com um aéreo. “Eu falei para a Dora: ‘dropa aí para eu ver’. Quando vi, fiquei me cagando, mas falei: eu vou porque eu tenho coragem e vim aqui para isso”, conta.
Raicca voltou ao local em dezembro e juntou coragem para varar o vão de maior extensão. Passou quase uma semana em Dreamland, como é chamado o terreno onde estão a Mega Rampa e a casa de Bob. As primeiras tentativas de vencer o gap maior foram frustradas. Depois de um dia inteiro, recebeu o aviso de que só poderia descer mais uma vez, pois estava escurecendo e ficaria perigoso.”Falei: ‘mano, eu vou ir agora, vou acertar, porque eu não tenho mais outra chance’, lembra.
Então, desceu os 24 metros e voou sobre o vão antes de pousar na outra rampa para acertar um backside, uma das variações de aéreos do skate. Antes dela, nenhuma mulher havia completado o combo na rampa de Bob. A britânica Sky Brown já conseguiu o feito, mas na mega rampa de Elliot Sloan, que tem proporções menores. “O problema não é o vão, o problema é o backside do outro lado, que vai muito mais alto. Se você não estiver preparado, pode dar alguma coisa errada”, explica Raicca.
INSPIRADA PELA VELHA GUARDA
A jovem skatista foi convidada para andar em Dreamland pois já havia impressionado Burnquist antes, tanto que integra o do time de skatistas liderado por ele, o Squad BB. Na verdade, ela tem impressionado muitos e já conquistou o respeito de bastante gente importante do esporte. Também em dezembro, esteve na inauguração da pista de skate pública do Parque do Ibirapuera, uma reivindicação antiga da cena paulistana.
Lá, conheceu alguns dos “Ibiraboys”, grupo pioneiro de skatistas formado na década de 1970, como Paulo Anshowinhas, Fabio Bolota e Antonio Thronn, e ouviu sobre os tempos em que o skate, hoje esporte olímpico, foi proibido em São Paulo pelo então prefeito Jânio Quadros, durante os anos 1980. “Contaram que antes o skate era proibido, contaram a história. Nossa, muito louco. Não dá nem para imaginar. Por que, né? Se o prefeito fosse skatista, aí seria bom”.
O skate foi liberado na capital paulista por Luiza Erundina, prefeita sucessora da Jânio. Hoje, o prefeito não é skatista, mas desbravadores como os “Ibiraboys” abriram o caminho que o tirou o esporte aos poucos da marginalização inimaginável para Raicca. Pouco dias após encontrar os veteranos, ela participou de um evento que não seria concebível décadas atrás. Dessa vez na posição de veterena, esteve no Sesc Guarulhos para falar sobre sua trajetória a um grupo de crianças e deu algumas dicas sobre skate para elas. “Vejo que hoje eu sou referência, e fico feliz. Eu fico com vontade de treinar mais, para ser cada vez mais referência”.
MUNDIAL
A caminho do Mundial de Park em Sharjah, ela pode elevar ainda mais esse status. Integrante da seleção principal de park desde abril do ano passado, tem treinado sob o comando do técnico Cris Mateus para bater de frente com as melhores do mundo. Raicca ainda não competiu muito fora do Brasil, mas tem experiência em embates de igual para igual com as “gringas”. Em julho de 2022, foi terceira colocada de um campeonato de vert organizado pelo brasileiro Evandro Mancha em seu half privado, na Califórnia.
Em outubro, participou do STU Open do Rio, que inicialmente teria o status de Campeonato Mundial tanto na disputa de park quanto na de street, mas a chancela foi retirada pela World Skate após um desacordo “conceitual e comercial”. Mesmo sem contar pontos para a Olimpíada, a competição reuniu grandes estrelas, e Raicca ficou em quarto, atrás da americana Mina Stress, da japonesa campeã olímpica Sajura Yasosumi e da britânica Sky Brown, medalhista de prata em Tóquio.
“Estou treinando bastante manobras que vou precisar. Vai ser difícil, porque vai ter muita gringa, mas é para isso que eu estou me preparando a minha vida toda. Apesar de eu já ter corrido o campeonato do Rio, com o nível pesado, este campeonato vai ter muito mais gringa que lá. Estou treinando bastante para ficar numa boa posição Vou treinar muito mais, vou treinar todo dia até chegar à Olimpíada para que eu consiga minha medalha”, promete a skatista.