De volta ao quarto na Vila Olímpica após ser ouro no vôlei de praia nas Olimpíadas de Paris, Ana Patrícia Ramos olhou para o cabide no armário perto de sua cama e sugeriu à parceira Duda Lisboa: “Eu vou pendurar a medalha ali, porque, quando eu acordar, vou ver que é verdade”. As duas foram dormir ainda sem acreditar que eram campeãs, embora sempre tenham acreditado que viver esse momento era possível.
A mineira e a sergipana, ambas de 26 anos, tiveram algumas frustrações até atingirem o ápice do esporte, mas, pacientes e focadas, construíram um caminho sólido rumo ao primeiro lugar do pódio olímpico, algo que não acontecia no vôlei de praia feminino desde a conquista de Jaqueline Silva e Sandra Pires em Atlanta-1996. Parte da força psicológica da dupla está ligada a um trabalho que Duda fez com sua terapeuta, utilizando a música como elemento de preparação mental.
“Eu queria entender o que funcionava na minha rotina. Cada pessoa tem uma forma meio que ativa para aquecer, para entrar no jogo. Aí eu encontrei a música. Eu me afastei um pouco nesse ano, depois consegui me conectar de novo. A gente criou meio que uma playlist de músicas que me motivam”, conta a jogadora ao Estadão.
A lista tem canções como Fé - Iza, Vai Dar Certo - Negra Li e raps americanos como The Rain - DMX e Last Breath - Future, esta última trilha sonora de Creed, filme da franquia Rocky. A grande estrela da playlist e eleita pelas atletas como a “música do ouro” é Clareou, de Diogo Nogueira, um samba que fala sobre fé, otimismo e não se deixar abalar com as adversidades da vida.
Leia também
“Clareou foi uma letra que me motivou, mexeu com minha vida, minha essência, minha motivação. Ele fala ‘não é sobre ganhar ou perder, a sua hora vai chegar’. Também tem muito da Iza. São músicas que me motivam, a playlist está no Spotify. Eu criei, foi algo que me conectou e me ativou. O que me motiva? O que me faz entrar lá para fazer o meu melhor. A música para mim clareia, faz ser o melhor, brilha”, conta Duda.
Ana Patrícia não costuma ser tão envolvida com música, mas a conexão com a parceira é tanta que ela se deixou levar, tocada e motivada pela letra do samba. “A gente está muito conectada, bateu muito para mim a letra porque é muito forte. Se for prestar atenção, é um pouco da nossa história, nossa vida, nossas lutas. A gente falou imediatamente quando nos questionaram, pensando na mesma coisa. Porque foi luta. Como diz a música: nossa hora chegou”, diz.
As lutas de Duda e Ana Patrícia
As lutas da dupla são dentro e fora de quadra. No âmbito esportivo, tiveram de lidar com a frustração de sair dos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, sem pódio, assim como os demais colegas do vôlei de praia brasileiro. Na época, as duas não jogavam juntas, embora se conhecessem há muito tempo e tenham sido companheiras na conquista dos Jogos da Juventude, dez anos atrás. Em Tóquio, Duda era parceira de Agatha e Ana de Rebecca.
Foi a primeira vez que o esporte não trouxe medalha desde que foi incluído nas Olimpíadas, em 1996, e isso trouxe críticas à geração da qual elas são parte. “Uma das melhores partes (do ouro) é não precisar mais ouvir sobre o que aconteceu em Tóquio, com o Brasil sem medalhas”, diz Ana Patrícia. “Sempre achei muito injusto que classificassem a campanha de 2021 como algo que tirava o brilho de tudo que aconteceu antes”, conclui.
Ter de lidar com a maledicência pública, entretanto, não foi o único, nem o maior problema vivido pela atleta mineira. Quando mais nova, ela foi vítima de bullying por ser muito alta e isso a perseguiu por muito tempo, a ponto de ter dificuldade para tratar do assunto. Hoje, faz questão de tratar do tema, pois sabe que pode inspirar crianças e adolescentes que passam pelo mesmo.
“Era muito difícil falar sobre isso. Hoje, toda vez que posso falar, toco no assunto porque acho extremamente importante conscientizar quem sofre por isso. Desabafe, não precisa ter vergonha, não é sobre você, é sobre alguém que acha engraçado, e não é. Só acabou quando eu literalmente surtei e decidi que não ia aceitar, até de forma muito agressiva, mas decidi não aceitar mais isso para minha vida. Meu conselho é: imponha limites, converse com as pessoas e entenda que ninguém tem direito de falar sobre a sua vida, sobre a sua história. Você sabe sobre sua história”, afirma.
Caminho do ouro foi repleto de boas relações
Ambiente competitivo, mas acolhedor, o esporte auxiliou Ana Patrícia em seu processo de aceitação. O vôlei de praia lhe deu amizades, entre elas Duda. Dentro do circuito, a dupla tem outras amigas. A canadense Melissa Humana-Paredes, derrotada na final olímpica ao lado da parceira Brandie Wilkerson, tem bastante contato com as brasileiras. Durante a decisão, a imagem de uma discussão quente entre Brandie e Ana gerou frisson nas redes sociais, mas tudo não passou de algo natural do jogo.
“Acontece, normal. É o que a Brandie falou depois da coletiva. No calor do jogo, você quer ganhar, quer lutar pelo ouro. A gente sabe que teve provocação, mas é aquele momento. A Melissa é um doce. O namorado tirou uma foto junto com o meu namorado, mandaram no meu Instagram. A Brandie a gente não tem tanto contato, mas são meninas incríveis, lutando, trabalhando”, conta Duda.
As relações humanas foram importantes para a dupla do Brasil durante toda a disputa da Olimpíada. Além de terem suas famílias presentes em Paris - e até duas torcedoras que as acompanham em qualquer lugar - as medalhistas de ouro se divertiram e se inspiraram na companhia de outros atletas olímpicos, caso de Augusto Akio, o Japinha, bronze no skate park, e Bia Souza, ouro no judô.
“Conheci mais o Japa, que, como eu, é do Time Petrobras. Um menino muito doce, muito gente boa. A gente vibrou demais, mas foi duro também quando as meninas da quadra perderam aquele jogo para os Estados Unidos. Assistimos à disputa de terceiro e quarto, foi muito divertido. Cada um tem uma história, a Jade (Barbosa) contando tudo que ela passou. Então, você acaba vivendo um pouco o mundo da outra pessoa. As histórias são diferentes, mas o quanto elas trabalham, é muito parecido”, comenta Duda.
“A gente também vibrou muito pela Bia. A gente se preparou mesmo para assistir. A gente via ela todos os dias, é uma menina muito massa. Ela ficava na academia, perdendo peso para a categoria, pedalando. Você escuta a história da pessoa, o maior diferencial da Olimpíada é isso, mais contato com a história dos atletas. A gente lá, ela contando a história dela. A gente pensava: ‘ela tem que ganhar, vamos assistir’. A Duda assistia ginástica, futebol, queria quebrar a televisão quando o árbitro deu 16 minutos de acréscimo”, acrescenta Ana Patrícia.
Agora com medalhas de ouro no peito, a dupla brasileira espera usar a visibilidade da conquista para fortalecer ainda mais o vôlei de praia nacional. As campeãs são gratas pelas oportunidades que tiveram, seja por meio de patrocínios ou programas governamentais, e desejam que o esporte seja cada vez mais acessível para que sejam gerados talentos tão bem-sucedidos quanto elas.
“No nosso patamar, a gente conseguiu se estabelecer financeiramente. No início, não se tinha tantas possibilidades de apoio. Foi importante quando teve o apoio do governo, Bolsa Atleta, e o CBC (Programação de Formação de Atletas do Comitê Brasileiro de Clubes), que veio para ajudar muitas pessoas, deu estrutura de viagem, passagem, hospedagem. Quem vive a realidade de estar iniciando, tem que gostar mesmo do esporte, até fazer outra profissão. A gente ganhando traz visibilidade e valorização ao nosso esporte, mas espero que as pessoas não valorizem só quem chegou no topo”, afirma Duda.
“O que aconteceu na minha vida é inimaginável. Eu não vou falar em sorte, porque acredito muito em Deus. Para a minha realidade, era algo muito distante. Eu sei que, assim como eu, muitas outras, assim como a Duda, existem pessoas que precisam da oportunidade e por vezes está distante. Acho que a gente está no caminho, agora mais ainda, tenho visibilidade, lugar de fala, talvez a gente consiga alcançar mais pessoas. Criar outras ‘Dudas’, outras ‘Ana Patrícias’, criar uma renovação”, conclui Ana Patrícia.