Seu navegador não suporta esse video.
Pilotos, jornalistas e personalidades definem o herói do esporte brasileiro na semana que marca os 30 anos do acidente que tirou a vida de Ayrton Senna
Gabriel Bortoleto, Antonella Bassani e Bruna Tomaselli são jovens pilotos brasileiros. Em comum, eles têm a paixão pela velocidade e um ídolo nacional, dentro e fora das pistas: Ayrton Senna. O trio, contudo, jamais viu o tricampeão mundial “ao vivo”, brilhando nas pistas da Fórmula 1. Eles nasceram depois da morte do tricampeão mundial, em 1º de maio de 1994. Trinta anos depois do trágico episódio, Senna continua angariando fãs e admiradores pelo Brasil e também pelo mundo.
Atual campeão da Fórmula 3, categoria de base da F-1, Bortoleto nasceu dez anos depois da morte do piloto que se tornaria seu ídolo. O jovem de 19 anos conheceu Senna a partir da paixão dos pais pelo ídolo, algo recorrente entre esta geração. Antonella, de 17 anos, e Bruna, de 26, viveram situação semelhante.
“Eu conheci o Senna através do meu pai. Desde pequeno, ele sempre foi um apaixonado por automobilismo. E passou essa paixão para mim”, conta Bortoleto, ao Estadão. “Todo mundo lá em casa sempre falou muito dele. Eu comecei no automobilismo com 7 anos e, desde sempre, tive a presença dele como inspiração para a minha carreira”, diz Bruna, que compete na categoria de acesso da Stock Car e já passou pela base da Indy.
30 anos sem Ayrton Senna
A paixão dos pais pelo ídolo ganhou força com ajuda da internet. Vídeos no YouTube e em outras plataformas se tornaram a base para reforçar a base de fãs de Senna. “Eu virei fã dele assistindo às corridas que estão na internet, estudando a vida dele. Tentava entender porque ele era tão à frente do seu tempo. E foi esse o motivo de eu virar fã. Ele era um gênio pilotando”, comenta Bortoleto, que estreou na Fórmula 2 neste ano.
A palavra “inspiração” é das mais comuns em toda conversa sobre Senna com a nova geração. “Não peguei a época dele, infelizmente. Eu, como qualquer outro piloto, vejo o Ayrton Senna como uma inspiração. Um grande ídolo, sem dúvida. Ele deu uma cara diferente para o Brasil. Quando se fala em Ayrton Senna, já vem o automobilismo na cabeça. Acredito que isso é em todo lugar. Vejo como os pilotos de todo mundo respeitam e gostam de correr em Interlagos por causa do Senna”, afirma Antonella, primeira mulher a conquistar o título da Porsche Cup.
O alcance da idolatria a Senna, de fato, atravessa as fronteiras. No grid atual da F-1, por exemplo, há diversos pilotos que têm o brasileiro como referência, mesmo não tendo a oportunidade de vê-lo em ação ao vivo. E não é o caso apenas de Lewis Hamilton, considerado pela própria família Senna como o maior embaixador do tricampeão pelo mundo. O monegasco Charles Leclerc e o espanhol Carlos Sainz Jr., ambos da Ferrari, e o francês Pierre Gasly, da Alpine, já afirmaram diversas vezes ter Senna como ídolo. Todos os três nasceram após a morte de Senna. Somente Hamilton, de 39 anos, o viu correr.
Como explicar esse fenômeno?
Uma lista de motivos explica a idolatria a Senna mesmo 30 anos após sua morte, de acordo com especialistas ouvidos pelo Estadão. “Ao longo da carreira dele, há uma série de motivos que justificam a admiração que ele despertou nas pessoas”, opina o jornalista Ernesto Rodrigues, autor de uma das melhores biografias do piloto.
“Em cada ano dele na F-1, ele viveu algum momento assombroso, genial, inesperado. Tem vários exemplos, como aquela vitória no aguaceiro de Estoril, em Portugal, em 1985. Fazia mágica com aquela Lotus, com a qual fez várias pole positions mesmo sem motor para durar a corrida toda. Teve as três finais em Suzuka, em cada uma delas foi assombroso de alguma maneira. Numa delas, o carro quebra no começo e ele passa a corrida toda se recuperando. Naquele famoso GP do Brasil, terminou só com a sexta marcha, coisa inacreditável, mas que é rigorosamente verdadeiro, não é boato”, enumera.
Os grandes feitos de Senna nas pistas eram resultado direto de um jeito perfeccionista, dedicado e profissional de ser fora das pistas, dizem os jornalistas que acompanharam a carreira do piloto. “Cada e todo detalhe era importante para ele, tudo tinha que estar em perfeita ordem. E, se precisasse sacrificar a vida pessoal dele em nome do trabalho, não pensava duas vezes”, diz o jornalista Roberto Cabrini, que acompanhou os últimos quatro anos de vida do tricampeão mundial.
Não à toa Senna foi um dos primeiros a levar a sério o preparo físico na F-1, em contraste com a vida boêmia que muitos pilotos levavam na categoria até então. “Ele era um atleta. E esse preparo físico dele passou a fazer diferença porque os carros da época exigiam muito mais do piloto”, lembra Cabrini, em conversa com o Estadão.
Tudo isso contribuía para as performances que apresentava na pista. “Ele era sempre o último cara a tirar o pé do acelerador numa curva. Era uma combinação perfeita entre arrojo e técnica. Temos que considerar que ele não foi o piloto que venceu mais corridas e campeonatos, que todos os recordes dele já foram quebrados. Mesmo assim, ele é generalizadamente considerado o mais espetacular dos pilotos.”
Habilidades fora das pistas
Não bastasse o talento nas retas e nas curvas, Senna também se destacava pela postura fora das pistas. “Ele era, de longe, o mais carismático. Falava fluentemente várias línguas. Todo mundo parava para ouvir o que ele falava, e não só no Brasil. Falava coisas com muita lucidez, fazia análise sociológicas com grande discernimento. Tinha noções de economia e geopolítica”, lembra Cabrini.
Ernesto Rodrigues aponta a inteligência de Senna também como um dos seus diferenciais. “Ele tinha uma capacidade cognitiva impressionante para tudo. Ele pegava qualquer máquina ou sistema, podia ser um avião, um jet ski ou um carro, e aprendia muito rápido, sempre com muita aplicação”, diz o biógrafo.
O mito
Os títulos, as performances e as atitudes fora da pista ajudaram a construir a figura do mito em torno de Senna, chamado de “herói” quando ainda estava vivo. A imagem do vencedor atravessa gerações num contexto de muitas camadas, a começar pelo lado social.
“A presença dele está acima de qualquer classe. Você percebe isso no trânsito, nos carros. Você vê um carro popular, baratinho, e está lá aquele ‘S’ num adesivo. Você vê um importado, caríssimo, e também está lá o mesmo adesivo”, aponta Ernesto Rodrigues.
Para o jornalista, Senna ajudou a melhorar a autoestima do brasileiro, como povo e nação. “Ele e seus títulos mundiais foram uma resposta ao chamado ‘Complexo de Vira-latas’ que o Nelson Rodrigues nos batizou como brasileiros. Ele nos encheu muito de orgulho porque foi campeão num esporte altamente tecnológico, competindo em países industrializados. E cravou a nossa marca, campeão por três vezes e considerado um dos melhores de todos os tempos.”
Contribuiu para isso também a forma como Senna se despediu dos brasileiros. “Foi muito ruim uma pessoa tão incrível e maravilhosa ter nos deixado tão cedo. Ao mesmo tempo, isso acabou cristalizando essa imagem vencedora, como grande campeão e exemplo, aquele sinônimo do Brasil que dá certo, que levava o Brasil com orgulho para fora”, explica Ivan Martinho, professor de marketing esportivo da ESPM.
“O Senna talvez tenha sido a primeira personalidade mundial a morrer ao vivo, na frente de milhões de pessoas. Isso criou uma mística, um aspecto quase religioso. É muito difícil separar onde termina o piloto e onde começa o mito”, diz Rodrigues.
O alcance de Senna nas novas gerações também se deve a outros ícones, como a música “Tema da Vitória”, que até hoje faz referência ao piloto. E ao trabalho em torno da imagem do tricampeão.
“Há todo um cuidado do Instituto Ayrton Senna, liderado pela irmã dele (Viviane Senna), com um carinho enorme, para estar nas boas discussões do momento, por exemplo. E há a figura do Senninha, personagem criado pelo Instituto, e que fez com o Senna nunca envelhecesse. Ele se manteve jovem assim, na figura de um jovem simpático e competitivo, mais uma vez a figura do Brasil que deu certo”, enumera Martinho.
*colaborou Toni Assis.