Xadrez: sex toy, código morse e engine; entenda toda a polêmica entre Magnus Carlsen e Hans Niemann


Derrota de enxadrista experiente para novato provoca onda de insinuações em um esporte que preza o respeito entre os rivais

Por Eugenio Goussinsky
Atualização:

Esporte milenar, o xadrez surgiu com base em quatro elementos que dividiam os exércitos indianos, nos idos do século 5: elefantes, cavalaria, carruagens e infantaria. Ao longo do tempo, ganhou novos contornos, personagens e velocidade, e passou a espelhar a própria condição humana, em que inteligência e emoção interagem no silêncio das partidas.

Nos últimos dias, no entanto, tal silêncio, que tanto caracteriza o esporte, se transformou em barulho, por causa de uma das maiores polêmicas da história do jogo, ocorrida em função da partida entre Magnus Carlsen, norueguês, de 31 anos, campeão mundial desde 2013, e o novato Hans Niemann, americano, de 19 anos.

A surpreendente derrota de Carlsen para Niemann, no último dia 4, no prestigiado torneio Sinquefield Cup 2022, na cidade de Saint-Louis (EUA), provocou não só o abandono de Carlsen do torneio, três dias depois, como fortes insinuações, por parte do campeão mundial, de que Niemann trapaceou para obter sua vitória. Nesta semana, ele abandonou novo confronto com Niemann, pela sexta rodada da Julius Baer Generations Cup, da etapa de Meltwater na Turnê dos Campeões.

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Por ora, as desconfianças de trapaças não passam do que são: insinuações de rivais de um jogo que sempre teve características opostas a tudo isso, com elegância e respeito entre os oponentes.

A atitude de Carlsen teve grande repercussão em função do tamanho do evento e de seus personagens. A premiação era de algo em torno de US$ 500 mil (R$ 2,5 milhões) e quem o financia é o bilionário americano Rex Sinquefield, que também mantém uma fundação sem fins lucrativos voltada ao xadrez. Saint-Louis é um dos mais importantes centros do xadrez do mundo, que abriga o Hall da Fama do esporte.

Niemann teria mesmo trapaceado ou tudo não passou de um rompante de vaidade de Carlsen? Com a insinuação, o norueguês colocou, ironicamente, em xeque a carreira do jovem colega, que o tinha como ídolo. Segundo boa parte dos especialistas, não há nenhuma prova, tampouco evidência, de que houve fraude.

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Magnus Carlsen participa de evento na Dinamarca, em 2019 Foto: Claus Bech/Ritzau Scanpix/via Reuters

Essa, por exemplo, é a opinião do enxadrista brasileiro Davy de Israel, de 65 anos, proprietário da empresa Xeque-Mate, que já organizou grandes eventos do esporte, como o Grand Slam de Xadrez no Brasil, em 2011 e 2012, que contou, inclusive, com a presença de Carlsen, um ano antes de se sagrar campeão mundial.

“Certamente Carlsen abandonou o torneio porque acredita ter sido trapaceado. A sua postagem na rede social, embora não faça uma acusação direta, deixa isso muito claro ao anexar a postagem do técnico José Mourinho. Sabemos que Carlsen é um lutador por excelência, e cada derrota lhe é muito cara”, diz.

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A suspeita de Carlsen, tido como um jogador controvertido e introspectivo, se revelou em post nas redes, no qual ele utilizou um vídeo do treinador português de futebol afirmando, em relação a uma disputa, que “se eu falar, terei grandes problemas”. Disse isso para ilustrar uma situação atípica do jogo em si.

A partida contra Niemann ocorreu na terceira rodada, quando Carlsen liderava o torneio. Com as peças brancas, a sua preparação na abertura não lhe rendeu a vantagem esperada, diz Israel. Ele acrescenta que, decepcionado, Carlsen entrou em uma final ligeiramente inferior na jogada 17, o que não estava nos seus planos. Logo a sua posição foi se deteriorando até cometer um erro grave na jogada 24. Niemann, com jogo impecável, na opinião do brasileiro, aproveitou para chegar à vitória.

Israel conta que já houve competições em que se levou um chip, com comunicação exterior que enviava jogadas por código morse. Elas eram extraídas do que se chama de engine, sistema inserido em softwares que antecipa e analisa movimentações a partir de cada jogada. No caso de um torneio da expressão do de Saint-Louis, isso é praticamente impossível de acontecer, garante o enxadrista brasileiro.

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Esses processadores e módulos de análise já existiam há algumas décadas, nos tempos de Anatoly Karpov e Gary Kasparov. Mas cada vez mais têm se aperfeiçoado, a ponto de o engine ter inúmeros modelos, desde os mais simples aos mais complexos, como o Stockfish.

FRAUDES E ASCENSÃO

O próprio Niemann admitiu que, tempos atrás, em jogos de xadrez online, ele se valia de informações fraudulentas para ganhar suas partidas. Mas negou terminantemente que tenha feito isso no jogo presencial contra Carlsen. “Sabe-se também que Niemann foi banido duas vezes da plataforma chess.com, uma das mais acessadas, e bastante severa com o seu ‘sistema antitrapaça’. O próprio Niemann confessa ter trapaceado na plataforma, porém jamais em partidas presenciais e mais ainda em torneios de elite”, diz Israel.

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Niemann se tornou um grande mestre, mas desconhecido da maioria dos enxadristas amadores, tendo uma ascensão meteórica. Passou de um Elo Fide de 2465 (pontuação de mestre internacional) em 2020 para 2609 em 2021 (pontuação de grande mestre) e a incríveis 2688 em 2022.”Isso chamou a atenção. Mas a seu favor podemos dizer que Niemann jogou uma quantidade enorme de torneios com bons resultados nos últimos dois anos, obtendo ótimas performances e de certa forma justificando a sua carreira meteórica”, diz o brasileiro.

No jogo em si, Israel afirma que a jogada 10 foi crucial. Nela, Carlsen tentou surpreender com uma variante inédita. Em vez de tomar o peão central com um peão seu, ele tomou com a dama. Niemann, de forma inesperada, respondeu quase que de imediato, como se estivesse preparado para aquilo, dando uma resposta que destruiu a estratégia de Carlsen e o colocou em posição frágil no restante da disputa. Carlsen teve uma precisão de 83,9, considerada baixa para um grande mestre. A precisão de Niemann? 93,4.

“De acordo com Niemann, em suas entrevistas, ele teve uma sorte enorme, pois a abertura e a posição obtidas após a jogada 10 foram analisadas por ele neste mesmo dia. De fato, após o jogo, quando você entra nos módulos virtuais de análise, descobre-se que alguém analisou, de fato, a posição que se deu na partida contra o Carlsen, dando veracidade aos comentários de Niemann.”

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O novato americano Hans Niemann, enxadrista de 19 anos  Foto: Lennart Ootes

O enxadrista brasileiro acrescenta. “Carlsen deve ter acreditado que iria surpreender o seu jovem oponente, mas o que aconteceu foi exatamente o inverso. Niemann começou a jogar rapidamente com as melhores respostas e deixando claro que estava bem preparado, o que deixou Carlsen desconcertado.”

Israel, apesar do histórico do jovem americano, não vê sinais de trapaça por parte de Niemann. Para ele, a situação em questão é diferente daquelas anteriores relativas aos jogos online. “Estive neste torneio em Saint-Louis em duas ocasiões. A sala em que eles jogam é reservada, não tem público, os jogadores passam por detector de metais, há condições de segurança muito sofisticadas”, ressalta ao Estadão.

Neste tipo de torneio, os participantes estão proibidos de levar o celular. Podem usar relógios de pulso e ir ao banheiro, reservado exclusivamente para eles. Idas em excesso ao banheiro causam desconfiança. A rigidez do controle levou internautas a levantarem suspeitas das mais estapafúrdias.

Uma delas dizia respeito ao suposto uso de um dispositivo anal por Niemann, que jogaria segundo as vibrações em código morse na região do reto, enviadas a partir de um interlocutor. “Criou-se uma polêmica ridícula. As insinuações do Carlsen são tão veladas. Não dá nem para avaliar. Outras pessoas e fontes tentam aumentar as ‘insinuações’ de forma sensacionalista”, diz outro enxadrista do Brasil, o tricampeão nacional Herman Claudius van Riemsdijk, de 74 anos.

Israel conta que é a tecnologia o fator que tem ajudado a desenvolver cada vez mais as variáveis do xadrez. Ela já era usada no fim do século passado. “Anatoly Karpov e Gary Kasparov (anos 70, 80 e 90) enfrentariam os atuais grandes mestres até porque já utilizavam as mesmas ferramentas. O xadrez é feito de conhecimento empírico, de informação. Esses gênios fizeram isso sem ajuda do computador. Hoje, um garoto de 12 anos entra no computador e pode jogar como um grande mestre.”

VEREDICTO

O uso da tecnologia, no entanto, ainda tem seus limites. Ela dificilmente conseguiria driblar a segurança em torno de um grande evento de xadrez. E, conforme afirmou Israel, uma importante análise após a partida entre Carlsen e Niemann foi encabeçada pelo grande mestre espanhol, Miguel llescas, de 56 anos.

Ao consultar, por meio de uma nuvem, as movimentações do engine antes do jogo, há exatamente a jogada 10, citada por Niemann, o que evidencia que ele estudou o movimento anteriormente à partida.

Além de enxadrista e octacampeão espanhol, Illescas é cientista da computação, tendo desenvolvido para a IBM o programa de computador de xadrez Deep Blue, que venceu Gary Kasparov em disputa em 1997. Illescas, em depoimento no seu canal do YouTube, porém, disse que também entende a posição de Carlsen.

“Niemann está pagando pelos pecados cometidos anteriormente, qualquer suspeita gera essas desconfianças, é uma situação extremamente difícil”, disse. Ele acredita, porém, que Carlsen poderia ter tido uma outra atitude e não abandonar o torneio. “Com todas as provas colocadas na mesa, tudo parece se encaixar com a versão de Niemann. Sou um admirador do jogo de Carlsen, mas é verdade que se retirar desta forma (não é adequado)... Quando Kasparov teve uma brecha de segurança em sua equipe, despediu um dos seus analistas e continuou jogando”, observa.

No fim de seu depoimento, o espanhol deu seu veredicto. “Há muitas coisas a resolver, entendemos a posição de Carlsen e de Niemann, seu argumento parece ser crível e, portanto, o veredicto profissional não pode ser outro além de inocente”, disse Illescas. Mas, como toda a desconfiança tem seu peso, a palavra “inocente” saiu sem nenhuma eloquência. Quase inaudível e silenciosa, como um jogo de xadrez.

Esporte milenar, o xadrez surgiu com base em quatro elementos que dividiam os exércitos indianos, nos idos do século 5: elefantes, cavalaria, carruagens e infantaria. Ao longo do tempo, ganhou novos contornos, personagens e velocidade, e passou a espelhar a própria condição humana, em que inteligência e emoção interagem no silêncio das partidas.

Nos últimos dias, no entanto, tal silêncio, que tanto caracteriza o esporte, se transformou em barulho, por causa de uma das maiores polêmicas da história do jogo, ocorrida em função da partida entre Magnus Carlsen, norueguês, de 31 anos, campeão mundial desde 2013, e o novato Hans Niemann, americano, de 19 anos.

A surpreendente derrota de Carlsen para Niemann, no último dia 4, no prestigiado torneio Sinquefield Cup 2022, na cidade de Saint-Louis (EUA), provocou não só o abandono de Carlsen do torneio, três dias depois, como fortes insinuações, por parte do campeão mundial, de que Niemann trapaceou para obter sua vitória. Nesta semana, ele abandonou novo confronto com Niemann, pela sexta rodada da Julius Baer Generations Cup, da etapa de Meltwater na Turnê dos Campeões.

Por ora, as desconfianças de trapaças não passam do que são: insinuações de rivais de um jogo que sempre teve características opostas a tudo isso, com elegância e respeito entre os oponentes.

A atitude de Carlsen teve grande repercussão em função do tamanho do evento e de seus personagens. A premiação era de algo em torno de US$ 500 mil (R$ 2,5 milhões) e quem o financia é o bilionário americano Rex Sinquefield, que também mantém uma fundação sem fins lucrativos voltada ao xadrez. Saint-Louis é um dos mais importantes centros do xadrez do mundo, que abriga o Hall da Fama do esporte.

Niemann teria mesmo trapaceado ou tudo não passou de um rompante de vaidade de Carlsen? Com a insinuação, o norueguês colocou, ironicamente, em xeque a carreira do jovem colega, que o tinha como ídolo. Segundo boa parte dos especialistas, não há nenhuma prova, tampouco evidência, de que houve fraude.

Magnus Carlsen participa de evento na Dinamarca, em 2019 Foto: Claus Bech/Ritzau Scanpix/via Reuters

Essa, por exemplo, é a opinião do enxadrista brasileiro Davy de Israel, de 65 anos, proprietário da empresa Xeque-Mate, que já organizou grandes eventos do esporte, como o Grand Slam de Xadrez no Brasil, em 2011 e 2012, que contou, inclusive, com a presença de Carlsen, um ano antes de se sagrar campeão mundial.

“Certamente Carlsen abandonou o torneio porque acredita ter sido trapaceado. A sua postagem na rede social, embora não faça uma acusação direta, deixa isso muito claro ao anexar a postagem do técnico José Mourinho. Sabemos que Carlsen é um lutador por excelência, e cada derrota lhe é muito cara”, diz.

A suspeita de Carlsen, tido como um jogador controvertido e introspectivo, se revelou em post nas redes, no qual ele utilizou um vídeo do treinador português de futebol afirmando, em relação a uma disputa, que “se eu falar, terei grandes problemas”. Disse isso para ilustrar uma situação atípica do jogo em si.

A partida contra Niemann ocorreu na terceira rodada, quando Carlsen liderava o torneio. Com as peças brancas, a sua preparação na abertura não lhe rendeu a vantagem esperada, diz Israel. Ele acrescenta que, decepcionado, Carlsen entrou em uma final ligeiramente inferior na jogada 17, o que não estava nos seus planos. Logo a sua posição foi se deteriorando até cometer um erro grave na jogada 24. Niemann, com jogo impecável, na opinião do brasileiro, aproveitou para chegar à vitória.

Israel conta que já houve competições em que se levou um chip, com comunicação exterior que enviava jogadas por código morse. Elas eram extraídas do que se chama de engine, sistema inserido em softwares que antecipa e analisa movimentações a partir de cada jogada. No caso de um torneio da expressão do de Saint-Louis, isso é praticamente impossível de acontecer, garante o enxadrista brasileiro.

Esses processadores e módulos de análise já existiam há algumas décadas, nos tempos de Anatoly Karpov e Gary Kasparov. Mas cada vez mais têm se aperfeiçoado, a ponto de o engine ter inúmeros modelos, desde os mais simples aos mais complexos, como o Stockfish.

FRAUDES E ASCENSÃO

O próprio Niemann admitiu que, tempos atrás, em jogos de xadrez online, ele se valia de informações fraudulentas para ganhar suas partidas. Mas negou terminantemente que tenha feito isso no jogo presencial contra Carlsen. “Sabe-se também que Niemann foi banido duas vezes da plataforma chess.com, uma das mais acessadas, e bastante severa com o seu ‘sistema antitrapaça’. O próprio Niemann confessa ter trapaceado na plataforma, porém jamais em partidas presenciais e mais ainda em torneios de elite”, diz Israel.

Niemann se tornou um grande mestre, mas desconhecido da maioria dos enxadristas amadores, tendo uma ascensão meteórica. Passou de um Elo Fide de 2465 (pontuação de mestre internacional) em 2020 para 2609 em 2021 (pontuação de grande mestre) e a incríveis 2688 em 2022.”Isso chamou a atenção. Mas a seu favor podemos dizer que Niemann jogou uma quantidade enorme de torneios com bons resultados nos últimos dois anos, obtendo ótimas performances e de certa forma justificando a sua carreira meteórica”, diz o brasileiro.

No jogo em si, Israel afirma que a jogada 10 foi crucial. Nela, Carlsen tentou surpreender com uma variante inédita. Em vez de tomar o peão central com um peão seu, ele tomou com a dama. Niemann, de forma inesperada, respondeu quase que de imediato, como se estivesse preparado para aquilo, dando uma resposta que destruiu a estratégia de Carlsen e o colocou em posição frágil no restante da disputa. Carlsen teve uma precisão de 83,9, considerada baixa para um grande mestre. A precisão de Niemann? 93,4.

“De acordo com Niemann, em suas entrevistas, ele teve uma sorte enorme, pois a abertura e a posição obtidas após a jogada 10 foram analisadas por ele neste mesmo dia. De fato, após o jogo, quando você entra nos módulos virtuais de análise, descobre-se que alguém analisou, de fato, a posição que se deu na partida contra o Carlsen, dando veracidade aos comentários de Niemann.”

O novato americano Hans Niemann, enxadrista de 19 anos  Foto: Lennart Ootes

O enxadrista brasileiro acrescenta. “Carlsen deve ter acreditado que iria surpreender o seu jovem oponente, mas o que aconteceu foi exatamente o inverso. Niemann começou a jogar rapidamente com as melhores respostas e deixando claro que estava bem preparado, o que deixou Carlsen desconcertado.”

Israel, apesar do histórico do jovem americano, não vê sinais de trapaça por parte de Niemann. Para ele, a situação em questão é diferente daquelas anteriores relativas aos jogos online. “Estive neste torneio em Saint-Louis em duas ocasiões. A sala em que eles jogam é reservada, não tem público, os jogadores passam por detector de metais, há condições de segurança muito sofisticadas”, ressalta ao Estadão.

Neste tipo de torneio, os participantes estão proibidos de levar o celular. Podem usar relógios de pulso e ir ao banheiro, reservado exclusivamente para eles. Idas em excesso ao banheiro causam desconfiança. A rigidez do controle levou internautas a levantarem suspeitas das mais estapafúrdias.

Uma delas dizia respeito ao suposto uso de um dispositivo anal por Niemann, que jogaria segundo as vibrações em código morse na região do reto, enviadas a partir de um interlocutor. “Criou-se uma polêmica ridícula. As insinuações do Carlsen são tão veladas. Não dá nem para avaliar. Outras pessoas e fontes tentam aumentar as ‘insinuações’ de forma sensacionalista”, diz outro enxadrista do Brasil, o tricampeão nacional Herman Claudius van Riemsdijk, de 74 anos.

Israel conta que é a tecnologia o fator que tem ajudado a desenvolver cada vez mais as variáveis do xadrez. Ela já era usada no fim do século passado. “Anatoly Karpov e Gary Kasparov (anos 70, 80 e 90) enfrentariam os atuais grandes mestres até porque já utilizavam as mesmas ferramentas. O xadrez é feito de conhecimento empírico, de informação. Esses gênios fizeram isso sem ajuda do computador. Hoje, um garoto de 12 anos entra no computador e pode jogar como um grande mestre.”

VEREDICTO

O uso da tecnologia, no entanto, ainda tem seus limites. Ela dificilmente conseguiria driblar a segurança em torno de um grande evento de xadrez. E, conforme afirmou Israel, uma importante análise após a partida entre Carlsen e Niemann foi encabeçada pelo grande mestre espanhol, Miguel llescas, de 56 anos.

Ao consultar, por meio de uma nuvem, as movimentações do engine antes do jogo, há exatamente a jogada 10, citada por Niemann, o que evidencia que ele estudou o movimento anteriormente à partida.

Além de enxadrista e octacampeão espanhol, Illescas é cientista da computação, tendo desenvolvido para a IBM o programa de computador de xadrez Deep Blue, que venceu Gary Kasparov em disputa em 1997. Illescas, em depoimento no seu canal do YouTube, porém, disse que também entende a posição de Carlsen.

“Niemann está pagando pelos pecados cometidos anteriormente, qualquer suspeita gera essas desconfianças, é uma situação extremamente difícil”, disse. Ele acredita, porém, que Carlsen poderia ter tido uma outra atitude e não abandonar o torneio. “Com todas as provas colocadas na mesa, tudo parece se encaixar com a versão de Niemann. Sou um admirador do jogo de Carlsen, mas é verdade que se retirar desta forma (não é adequado)... Quando Kasparov teve uma brecha de segurança em sua equipe, despediu um dos seus analistas e continuou jogando”, observa.

No fim de seu depoimento, o espanhol deu seu veredicto. “Há muitas coisas a resolver, entendemos a posição de Carlsen e de Niemann, seu argumento parece ser crível e, portanto, o veredicto profissional não pode ser outro além de inocente”, disse Illescas. Mas, como toda a desconfiança tem seu peso, a palavra “inocente” saiu sem nenhuma eloquência. Quase inaudível e silenciosa, como um jogo de xadrez.

Esporte milenar, o xadrez surgiu com base em quatro elementos que dividiam os exércitos indianos, nos idos do século 5: elefantes, cavalaria, carruagens e infantaria. Ao longo do tempo, ganhou novos contornos, personagens e velocidade, e passou a espelhar a própria condição humana, em que inteligência e emoção interagem no silêncio das partidas.

Nos últimos dias, no entanto, tal silêncio, que tanto caracteriza o esporte, se transformou em barulho, por causa de uma das maiores polêmicas da história do jogo, ocorrida em função da partida entre Magnus Carlsen, norueguês, de 31 anos, campeão mundial desde 2013, e o novato Hans Niemann, americano, de 19 anos.

A surpreendente derrota de Carlsen para Niemann, no último dia 4, no prestigiado torneio Sinquefield Cup 2022, na cidade de Saint-Louis (EUA), provocou não só o abandono de Carlsen do torneio, três dias depois, como fortes insinuações, por parte do campeão mundial, de que Niemann trapaceou para obter sua vitória. Nesta semana, ele abandonou novo confronto com Niemann, pela sexta rodada da Julius Baer Generations Cup, da etapa de Meltwater na Turnê dos Campeões.

Por ora, as desconfianças de trapaças não passam do que são: insinuações de rivais de um jogo que sempre teve características opostas a tudo isso, com elegância e respeito entre os oponentes.

A atitude de Carlsen teve grande repercussão em função do tamanho do evento e de seus personagens. A premiação era de algo em torno de US$ 500 mil (R$ 2,5 milhões) e quem o financia é o bilionário americano Rex Sinquefield, que também mantém uma fundação sem fins lucrativos voltada ao xadrez. Saint-Louis é um dos mais importantes centros do xadrez do mundo, que abriga o Hall da Fama do esporte.

Niemann teria mesmo trapaceado ou tudo não passou de um rompante de vaidade de Carlsen? Com a insinuação, o norueguês colocou, ironicamente, em xeque a carreira do jovem colega, que o tinha como ídolo. Segundo boa parte dos especialistas, não há nenhuma prova, tampouco evidência, de que houve fraude.

Magnus Carlsen participa de evento na Dinamarca, em 2019 Foto: Claus Bech/Ritzau Scanpix/via Reuters

Essa, por exemplo, é a opinião do enxadrista brasileiro Davy de Israel, de 65 anos, proprietário da empresa Xeque-Mate, que já organizou grandes eventos do esporte, como o Grand Slam de Xadrez no Brasil, em 2011 e 2012, que contou, inclusive, com a presença de Carlsen, um ano antes de se sagrar campeão mundial.

“Certamente Carlsen abandonou o torneio porque acredita ter sido trapaceado. A sua postagem na rede social, embora não faça uma acusação direta, deixa isso muito claro ao anexar a postagem do técnico José Mourinho. Sabemos que Carlsen é um lutador por excelência, e cada derrota lhe é muito cara”, diz.

A suspeita de Carlsen, tido como um jogador controvertido e introspectivo, se revelou em post nas redes, no qual ele utilizou um vídeo do treinador português de futebol afirmando, em relação a uma disputa, que “se eu falar, terei grandes problemas”. Disse isso para ilustrar uma situação atípica do jogo em si.

A partida contra Niemann ocorreu na terceira rodada, quando Carlsen liderava o torneio. Com as peças brancas, a sua preparação na abertura não lhe rendeu a vantagem esperada, diz Israel. Ele acrescenta que, decepcionado, Carlsen entrou em uma final ligeiramente inferior na jogada 17, o que não estava nos seus planos. Logo a sua posição foi se deteriorando até cometer um erro grave na jogada 24. Niemann, com jogo impecável, na opinião do brasileiro, aproveitou para chegar à vitória.

Israel conta que já houve competições em que se levou um chip, com comunicação exterior que enviava jogadas por código morse. Elas eram extraídas do que se chama de engine, sistema inserido em softwares que antecipa e analisa movimentações a partir de cada jogada. No caso de um torneio da expressão do de Saint-Louis, isso é praticamente impossível de acontecer, garante o enxadrista brasileiro.

Esses processadores e módulos de análise já existiam há algumas décadas, nos tempos de Anatoly Karpov e Gary Kasparov. Mas cada vez mais têm se aperfeiçoado, a ponto de o engine ter inúmeros modelos, desde os mais simples aos mais complexos, como o Stockfish.

FRAUDES E ASCENSÃO

O próprio Niemann admitiu que, tempos atrás, em jogos de xadrez online, ele se valia de informações fraudulentas para ganhar suas partidas. Mas negou terminantemente que tenha feito isso no jogo presencial contra Carlsen. “Sabe-se também que Niemann foi banido duas vezes da plataforma chess.com, uma das mais acessadas, e bastante severa com o seu ‘sistema antitrapaça’. O próprio Niemann confessa ter trapaceado na plataforma, porém jamais em partidas presenciais e mais ainda em torneios de elite”, diz Israel.

Niemann se tornou um grande mestre, mas desconhecido da maioria dos enxadristas amadores, tendo uma ascensão meteórica. Passou de um Elo Fide de 2465 (pontuação de mestre internacional) em 2020 para 2609 em 2021 (pontuação de grande mestre) e a incríveis 2688 em 2022.”Isso chamou a atenção. Mas a seu favor podemos dizer que Niemann jogou uma quantidade enorme de torneios com bons resultados nos últimos dois anos, obtendo ótimas performances e de certa forma justificando a sua carreira meteórica”, diz o brasileiro.

No jogo em si, Israel afirma que a jogada 10 foi crucial. Nela, Carlsen tentou surpreender com uma variante inédita. Em vez de tomar o peão central com um peão seu, ele tomou com a dama. Niemann, de forma inesperada, respondeu quase que de imediato, como se estivesse preparado para aquilo, dando uma resposta que destruiu a estratégia de Carlsen e o colocou em posição frágil no restante da disputa. Carlsen teve uma precisão de 83,9, considerada baixa para um grande mestre. A precisão de Niemann? 93,4.

“De acordo com Niemann, em suas entrevistas, ele teve uma sorte enorme, pois a abertura e a posição obtidas após a jogada 10 foram analisadas por ele neste mesmo dia. De fato, após o jogo, quando você entra nos módulos virtuais de análise, descobre-se que alguém analisou, de fato, a posição que se deu na partida contra o Carlsen, dando veracidade aos comentários de Niemann.”

O novato americano Hans Niemann, enxadrista de 19 anos  Foto: Lennart Ootes

O enxadrista brasileiro acrescenta. “Carlsen deve ter acreditado que iria surpreender o seu jovem oponente, mas o que aconteceu foi exatamente o inverso. Niemann começou a jogar rapidamente com as melhores respostas e deixando claro que estava bem preparado, o que deixou Carlsen desconcertado.”

Israel, apesar do histórico do jovem americano, não vê sinais de trapaça por parte de Niemann. Para ele, a situação em questão é diferente daquelas anteriores relativas aos jogos online. “Estive neste torneio em Saint-Louis em duas ocasiões. A sala em que eles jogam é reservada, não tem público, os jogadores passam por detector de metais, há condições de segurança muito sofisticadas”, ressalta ao Estadão.

Neste tipo de torneio, os participantes estão proibidos de levar o celular. Podem usar relógios de pulso e ir ao banheiro, reservado exclusivamente para eles. Idas em excesso ao banheiro causam desconfiança. A rigidez do controle levou internautas a levantarem suspeitas das mais estapafúrdias.

Uma delas dizia respeito ao suposto uso de um dispositivo anal por Niemann, que jogaria segundo as vibrações em código morse na região do reto, enviadas a partir de um interlocutor. “Criou-se uma polêmica ridícula. As insinuações do Carlsen são tão veladas. Não dá nem para avaliar. Outras pessoas e fontes tentam aumentar as ‘insinuações’ de forma sensacionalista”, diz outro enxadrista do Brasil, o tricampeão nacional Herman Claudius van Riemsdijk, de 74 anos.

Israel conta que é a tecnologia o fator que tem ajudado a desenvolver cada vez mais as variáveis do xadrez. Ela já era usada no fim do século passado. “Anatoly Karpov e Gary Kasparov (anos 70, 80 e 90) enfrentariam os atuais grandes mestres até porque já utilizavam as mesmas ferramentas. O xadrez é feito de conhecimento empírico, de informação. Esses gênios fizeram isso sem ajuda do computador. Hoje, um garoto de 12 anos entra no computador e pode jogar como um grande mestre.”

VEREDICTO

O uso da tecnologia, no entanto, ainda tem seus limites. Ela dificilmente conseguiria driblar a segurança em torno de um grande evento de xadrez. E, conforme afirmou Israel, uma importante análise após a partida entre Carlsen e Niemann foi encabeçada pelo grande mestre espanhol, Miguel llescas, de 56 anos.

Ao consultar, por meio de uma nuvem, as movimentações do engine antes do jogo, há exatamente a jogada 10, citada por Niemann, o que evidencia que ele estudou o movimento anteriormente à partida.

Além de enxadrista e octacampeão espanhol, Illescas é cientista da computação, tendo desenvolvido para a IBM o programa de computador de xadrez Deep Blue, que venceu Gary Kasparov em disputa em 1997. Illescas, em depoimento no seu canal do YouTube, porém, disse que também entende a posição de Carlsen.

“Niemann está pagando pelos pecados cometidos anteriormente, qualquer suspeita gera essas desconfianças, é uma situação extremamente difícil”, disse. Ele acredita, porém, que Carlsen poderia ter tido uma outra atitude e não abandonar o torneio. “Com todas as provas colocadas na mesa, tudo parece se encaixar com a versão de Niemann. Sou um admirador do jogo de Carlsen, mas é verdade que se retirar desta forma (não é adequado)... Quando Kasparov teve uma brecha de segurança em sua equipe, despediu um dos seus analistas e continuou jogando”, observa.

No fim de seu depoimento, o espanhol deu seu veredicto. “Há muitas coisas a resolver, entendemos a posição de Carlsen e de Niemann, seu argumento parece ser crível e, portanto, o veredicto profissional não pode ser outro além de inocente”, disse Illescas. Mas, como toda a desconfiança tem seu peso, a palavra “inocente” saiu sem nenhuma eloquência. Quase inaudível e silenciosa, como um jogo de xadrez.

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