Um vídeo no Facebook engana ao afirmar que uma rachadura surgida no Quênia em 2018 vai dividir o continente africano em dois. Para especialistas, a causa mais provável da fenda de largura de 19 metros é o processo de erosão do solo. A rachadura está localizada em uma região chamada Grande Vale do Rifte – uma estrutura de até 100 quilômetros de largura, originada pela interação entre placas tectônicas. Ali, sim, geólogos acreditam que ocorrerá uma ruptura – mas apenas em milhões ou bilhões de anos.
Ao longo de quase 10 minutos de vídeo, o autor do conteúdo mistura informações verdadeiras com afirmações enganosas, causando confusão. Uma legenda sustenta que a rachadura surgida em 2018 está separando o continente em duas partes. São exibidas imagens de uma grande fissura, que se estende por quilômetros, enquanto o autor afirma que estamos à mercê da formação de um novo oceano. Ele cita também que moradores foram evacuados do local “porque só Deus sabe o que vai acontecer” e que se trata de algo “natural, mas preocupante”. Por fim, sustenta que as placas tectônicas estão se afastando uma da outra porque os homens sugam elementos da terra, como o petróleo.
É verdade que a África pode se dividir, mas não veremos isso acontecer
É fato que existe uma fenda na África Oriental, entre a Etiópia e o Quênia, que pode vir a separar o continente em dois. Trata-se do Grande Vale do Rifte, que se estende por mais de 3 mil quilômetros, do Golfo de Aden, mais ao norte, até o Zimbábue, mais ao sul. A região dividiu a placa tectônica africana em duas partes desiguais, a da Somália e a da Núbia.
A doutora Cristiane Teixeira, professora da Faculdade de Geologia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), explica que a Terra se formou há mais de 4,5 bilhões de anos como uma massa extremamente aquecida. O planeta está dividido, de dentro para fora, em núcleo, manto e crosta. Trata-se de um corpo vivo que, desde a origem, tem dinâmica contínua. “A Terra está sempre em atividade, com movimentação de placas tectônicas, terremotos, vulcões, tsunamis, mudança climática, entre muitos outros eventos”, observa.
A movimentação das placas, ressalta a geóloga, é a grande responsável pela constante mudança no globo. “As placas tectônicas são compostas pela junção da crosta com o manto superior e, juntas, formam o que é conhecido por litosfera”, esclarece. “Essa camada rígida é dividida, como um quebra-cabeça, e forma um mosaico de placas que se movimentam, sobre uma camada quente e viscosa, se encaixando perfeitamente”.
No caso do Rifte, Texeira explica que o vale foi formado por uma sequência de rachaduras profundas em consequência dos movimentos das placas tectônicas e do aquecimento vindo das profundezas da Terra, num fenômeno chamado de pluma mantélica. Neste caso, segundo a geóloga, a litosfera – camada mais externa da terra – começará a quebrar e, depois, a se abrir.
Ao final, geólogos preveem que a consequência será a formação de um novo oceano. Esse processo, contudo, ocorre em velocidade lenta, entre 2 e 5 cm por ano. “Para a quebra, separação, redução do continente africano e formação de novo oceano serão necessárias dezenas de milhares de anos, e isso ocorrerá, em sua maioria, de forma silenciosa, sem interferir na dinâmica da superfície da Terra”, diz Cristiane. “Logo, a extensa rachadura entre a Etiópia e o Quênia ainda vai demorar milhares de anos para se concretizar”.
Uma verificação da agência Africa Check reforça que a fenda não causará mudanças dramáticas rápidas e a previsão de geofísicos do Nasa Earth Observatory é de que o rifte se tornará um novo oceano em cerca de 10 milhões de anos. A divisão deve ocorrer na Depressão de Afar, uma área ao longo da fronteira da Etiópia e do Djibuti, onde as placas núbia, somali e árabe se encontram. Acredita-se que ele será tão grande quanto o Atlântico.
A configuração da Terra em placas tectônicas nem sempre foi como é atualmente. Hoje, temos 13 grandes placas rígidas que se movem a uma velocidade média de 2,5 centímetros ao ano. “Há 1.1 bilhão de anos, a Terra era uma massa única. Pesquisas mostraram que por volta de 750 milhões de anos, ela começou a se fragmentar na dança dos continentes”, explica a geóloga. “As placas se agruparam e se separaram seguindo até a configuração atual”
Essa dança continua em evolução: “Os eventos geológicos ocorrem lentamente, numa escala de tempo que não é compatível com a do ser humano, entre milhares e bilhares de anos. Quando eventos geológicos chegam à superfície, isso significa que ele já vem se desenvolvendo há muito tempo”.
Rachadura de 2018 tem pouco a ver com essa divisão
Embora tenha surgido uma grande rachadura no solo do Quênia em 2018, não há comprovação científica de que ela esteja ligada à movimentação tectônica que gerou o rifte. Na verdade, até existem evidências contrárias. De acordo com a pesquisadora Lúcia Diaz, do Grupo de Pesquisa de Dinâmica de Falhas da Royal Holloway University of London, eventos como falhas repentinas podem dar a sensação de urgência ao rifting continental, no entanto, trata-se de um processo muito lento e que, na maioria das vezes, sequer é percebido. Ela escreveu um artigo sobre o assunto em março de 2018, quando surgiu a rachadura queniana
No mesmo ano, em um artigo publicado no jornal britânico The Guardian, o pesquisador Stephen Hicks, do departamento de Sismologia Computacional da University College London (UCL), concluiu ser mais provável que a rachadura seja, na verdade, um barranco. Ao analisar fotos e vídeos da fenda, ele explicou ser possível identificar que ela não é de origem tectônica, porque os dois lados não têm o mesmo contorno e ela não é totalmente contínua.
Hicks analisa, ainda, que não há escarpas claras e a terra é plana em ambos os lados da fenda. Para o sismólogo, essas evidências demonstram que a abertura se formou por conta de uma erosão súbita, e não por falhas geológicas ativas. Além disso, ele destacou não ter havido, à época do surgimento da rachadura, relatos oficiais de terremotos das autoridades do Quênia.
Para Hicks, as evidências apontam que a fenda foi formada, na verdade, pela erosão do solo sob a superfície devido às chuvas fortes que caíram no país naquele período. A água teria lavado camadas profundas de cinzas vulcânicas soltas depositadas por erupções anteriores no vale da fenda. Ele cita, ainda, que características erosivas similares ocorreram em regiões tectonicamente estáveis, como no Arizona.
No Twitter, a cientista Wendy Bohon, que estuda terremotos, publicou uma sequência de posts naquele ano afirmando ser incorreto afirmar que a rachadura estivesse dividindo a África em duas, embora isso esteja, de fato, ocorrendo, mas muito lentamente, pelo processo de rifting.
Ela explicou que a rachadura poderia aparecer por causa de terremotos, eventos vulcânicos ou erosão. No entanto, não houve registro de atividade vulcânica recente nem de terremoto naquela área. “As redes sísmicas aqui são esparsas, mas provavelmente teríamos detectado qualquer terremoto grande o suficiente para perturbar o solo dessa maneira”, disse, acrescentando também que ocorreram fortes chuvas e inundações no Quênia.
Wendy Bohon observou, contudo, que não se sabe por que a rachadura se formou exatamente naquele local e o que está por baixo dela; há a necessidade de coletar mais dados, evidências e observações diretas de cientistas no terreno para descobrir as sutilezas geológicas do fenômeno. O artigo de Lúcia Diaz também ressalta restarem dúvidas sobre a formação na região e se está conectada ao Rifte da África Oriental.
Não há interferência humana na movimentação das placas
O autor do vídeo checado associa a interferência humana no solo, como a extração do petróleo, a uma das causas do afastamento das placas tectônicas, o que é incorreto. Não existe tecnologia humana que se aproxime da profundidade das placas. Como já explicado, a Terra é viva e está em constante mudança, o que é comprovado por eventos que ocorrem do interior à superfície do planeta e que não são uma exclusividade do continente africano.
A geóloga Cristiane Teixeira cita como exemplo tremores que foram registrados em cinco países da América Latina – Argentina, Chile, Equador, México e Peru – neste mês com magnitudes que variaram entre 6.8 e 7 na escala Richter. “Eles são consequências do choque entre duas placas tectônicas, Sulamericana e Nazca, que neste caso formam uma região de terremotos. Vale ressaltar que esta relação de contato ocorre há milhares de anos, ou seja, não é um evento inesperado que ocorreu em superfície por acaso, mas sim uma consequência da dinâmica natural da Terra”, avalia.
Da mesma forma, ela menciona outros eventos geológicos ocorrendo na superfície e no interior da Terra, como a formação de cadeias de montanhas nos Himalaias e Andes, terremotos no Japão e vulcanismo no Arquipélagos de Ilhas no Havaí. “Existe monitoramento para estes eventos. Ao longo do tempo, a tecnologia avançou e sistemas de redes sismográficas acompanham os eventos geológicos, detalhando onde, como e por que eles estão acontecendo, permitindo um melhor entendimento da dinâmica interna do Sistema Terra”, finaliza.
Um estudo apontou que atividades humanas podem, sim, causar terremotos, mas como explica a revista National Geographic, a maioria deles ocorre ao longo de falhas geológicas, encontradas quase sempre onde diferentes placas tectônicas se tocam.