Uma publicação no Facebook retoma um boato antigo sobre o suposto "decálogo de Lenin" -- uma lista atribuída ao líder soviético que traz orientações como "corrompa a juventude", "controle os veículos de comunicação" e "divida a população em grupos antagônicos". Na realidade, esse texto é uma farsa que circula em inglês, ao menos, desde a década de 1940.
Não existe qualquer indício de que Vladimir Ilitch Lenin (1870-1927), líder da Revolução Russa de 1917, seja o autor da mensagem. "Não tem pé nem cabeça", afirma o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) Osvaldo Luis Angel Coggiola, especialista em História Contemporânea. "Obviamente, não aparece em qualquer compilação de textos de Lenin feita com um mínimo de seriedade."
O professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) Anderson Deo, coordenador do Núcleo de Estudos de Ontologia Marxiana, também afirma que a mensagem é uma invenção. "Não há qualquer referência a esse tipo de proposição na longa obra de Lenin. Da mesma forma, não é possível deduzir tais absurdidades de seu pensamento", comenta Deo.
Na realidade, o falso "decálogo de Lenin" é uma adaptação de um texto em inglês com o título "Communist Rules for Revolution", ou "Regras Comunistas para Revolução", traduzido ao português. Trata-se de um boato antigo em circulação nos Estados Unidos, que pode ser lido na íntegra em checagem do site norte-americano Snopes, de agosto de 2013. A estrutura é idêntica à da postagem analisada pelo Estadão Verifica, com dez itens em série.
A publicação original do texto em inglês não indica autoria, que só posteriormente foi atribuída a Lenin. As supostas "regras comunistas" circulam com a alegação de que uma cópia do "documento" havia sido obtida pelos Aliados em maio de 1919, em Düsseldorf, na Alemanha, logo após o término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Mas a história não passa de uma "fraude popular e duradoura", de acordo com reportagem do jornal The New York Times publicada em 10 de julho de 1970.
"Toda reprodução das 'Regras' afirma que elas foram capturadas de comunistas por oficiais aliados em maio de 1919, em Düsseldorf, Alemanha. Nunca são dados nomes ou endereços. Os Arquivos Nacionais, a Biblioteca do Congresso e as universidades do país não têm cópia ou vestígio do 'documento'", destaca o The New York Times.
Essa também foi a conclusão do historiador Paul F. Boller Jr. e do cientista político John George, autores do livro They Never Said It: A Book of Fake Quotes, Misquotes and Misleading Attributions, publicado pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, em 1989. "As 'Regras' são claramente falsas; não soam nem um pouco como 1919", escrevem em capítulo dedicado ao assunto.
A origem do boato, segundo o livro, seria uma publicação britânica de 1946, denominada New World News. Anos depois, a farsa ganhou popularidade em setores conservadores nos Estados Unidos, em meio ao contexto da Guerra Fria (1947-1991). Os autores fizeram uma busca detalhada nos arquivos do FBI, da CIA e do Subcomitê de Segurança Interna do Senado e da Biblioteca do Congresso -- que "falhou em revelar qualquer indício" do suposto documento.
Post usa 'decálogo' como justificativa para golpe militar
A postagem analisada pelo Estadão Verifica acusa a imprensa, o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional e adversários políticos do presidente Jair Bolsonaro de tentarem implantar uma "ditadura comunista" no País. Esse suposto plano estaria seguindo o "decálogo de Lenin". O texto aponta essa conspiração como justificativa para um novo golpe militar no Brasil.
Assim como na versão em inglês do boato, na publicação em português aparecem as supostas orientações para "corromper a juventude", "controlar os meios de comunicação", "dividir a sociedade em grupos antagônicos" e "catalogar armas de fogo". Outras partes foram ligeiramente alteradas na tradução brasileira, como a inclusão do trecho "colocar em descrédito a imagem do País, especialmente no exterior" e a substituição de outra frase por "colabore para o esbanjamento do dinheiro público".
Além disso, o texto apresenta uma série de erros de português e letras maiúsculas. Também acrescenta comentários aos tópicos do "decálogo", com acusações contra a mídia, o Congresso Nacional, o STF e os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Até mesmo a pandemia de covid-19 é citada, chamada no post de "coronafarsa". O plano de "dominação comunista", segundo a postagem, teria ainda a participação dos black blocs e de grupos denominados antifascistas.
A existência do "decálogo" também foi investigada anteriormente por Boatos.org e Aos Fatos. Eles também concluíram que a alegação é falsa.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.