Viralizou nas redes sociais um vídeo em que vereadores do PT e do PSB de Bagé, no Rio Grande do Sul, filmam o que seria um estoque de quase 9 mil cestas básicas que ainda não foram distribuídas à população. A cidade enfrentou duas situações de emergência este ano, por causa de um período de estiagem e de fortes chuvas de granizo. O vídeo foi compartilhado por vários usuários em postagens com enunciados que afirmam que os alimentos estão estocados “há meses” após terem sido “enviados no início do ano pelo presidente Lula”. Alguns posts destacam que o prefeito, Divaldo Lara (PTB), é bolsonarista.
Mas não é bem assim. De fato, até o dia 31 de outubro, dia em que foi gravado o vídeo, nem metade do total de 10.800 cestas básicas havia sido distribuída pelo município. No entanto, os recursos para a aquisição dos produtos só foram repassados pelo governo federal em 18 de julho, e não no início do ano, como mostra a linha do tempo elaborada pelo Estadão Verifica com base na apuração dos fatos (veja abaixo). A situação de emergência foi reconhecida pelo governo federal em 13 de março.
Outro ponto que necessita de contexto é em relação ao prazo para a distribuição das cestas básicas. Houve sim atraso nas entregas, mas o prazo final para a conclusão, conforme estabelecido pelo governo federal, é 3 de janeiro de 2024. A prefeitura justifica a demora devido à mobilização dos agentes da Defesa Civil municipal para atender a população em dois novos desastres: duas chuvas de granizo, nos dias 25 de agosto e 23 de setembro, que resultaram em outras duas portarias com reconhecimento de situação de emergência pelo governo federal.
Já as afirmações de que o vídeo gravado pelos vereadores mostra cestas básicas da prefeitura estocadas em um depósito, em um quantitativo de quase 9 mil e por um período de meses carecem de confirmação. Em relação a essas alegações, as informações são conflitantes. Abaixo, a checagem feita pelo Estadão Verifica das principais alegações em torno da distribuição das cestas básicas em Bagé:
As cestas básicas foram mandadas pelo governo Lula no início do ano?
Não. A liberação da verba pelo governo federal foi em 18 de julho.
A Prefeitura de Bagé decretou estado de emergência em razão da estiagem no dia 6 de fevereiro deste ano. A solicitação pelo reconhecimento da situação de desastre e o pedido de recursos para aquisição de 10.800 cestas básicas para socorro aos atingidos se deu no dia 13 daquele mês, segundo a prefeitura.
O reconhecimento pelo governo federal foi no mês seguinte, com a publicação no Diário Oficial da União, em 13 de março, da Portaria nº 995. Ainda em março, entre os dias 17 e 20, houve a tomada de preços pela prefeitura para compra dos alimentos, que selecionou, pelo menor valor, o fornecedor Atacado Araújo.
No entanto, foi somente quatro meses depois, no dia 18 de julho, que houve o repasse do governo federal da verba de R$ 2.125.946,55, como mostra este documento. O valor incluía recursos destinados à aquisição de 10.800 cestas básicas, cinco reservatórios móveis de água, 400 caixas d’água e 10.400 litros de combustível, como mostra este outro documento.
Em nota, o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR), ao qual está vinculada a Defesa Civil nacional, explicou que a demora entre o reconhecimento da situação de emergência e a liberação dos recursos foi devido à análise do processo e aprovação da liberação. O ministério citou ainda a necessidade de aguardar a publicação da Medida Provisória nº 1180/23, que recompôs o orçamento para ações de proteção e defesa civil em auxílio a municípios afetados por desastres naturais.
Segundo o MIDR, a autorização para o pagamento saiu no dia 7 de julho, com a publicação da Portaria 2.302, e a ordem bancária, no dia 18 do mesmo mês.
As cestas estão estocadas há meses?
Esta é uma afirmação conflitante. Ao Verifica, o proprietário do atacado que venceu a licitação, Márcio Araújo, disse que as primeiras retiradas de cestas básicas pela Defesa Civil municipal de Bagé ocorreram entre o final de agosto e o início de setembro, período que coincide com o informado pela prefeitura.
Segundo Márcio, todas as cestas já estão pagas e a primeira remessa foi quase toda retirada, mas as entregas foram suspensas por causa de uma nova situação de emergência na cidade: desta vez, duas chuvas de granizo. De fato, a Defesa Civil nacional fez dois reconhecimentos de emergência por tempestade de granizo em Bagé: em 13 e em 26 de setembro. A prefeitura também argumenta que os eventos prejudicaram a distribuição dos alimentos.
O que os vereadores questionam é que, de lá para cá, não houve mais entregas de cestas básicas, embora a população venha cobrando pela distribuição. No dia 7 de novembro, a Câmara de Vereadores de Bagé fez uma sessão especial em que recebeu o coordenador da Defesa Civil do Município, Éverton Kaupe, para falar sobre o assunto. Havia moradores nas galerias cobrando a entrega de cestas.
Se não há distribuição de cestas básicas desde setembro, é possível afirmar que elas estão estocadas há pelo menos dois meses. Mas, sobre isso, a prefeitura apresenta uma versão diferente: o município enviou ao Estadão Verifica um termo de fiel depositário firmado com o responsável pelo Atacado Araújo, com data de 23 de outubro, para assegurar o depósito de 7.800 cestas básicas junto às instalações do estabelecimento.
Segundo a prefeitura, até a data, 3 mil cestas haviam sido entregues e foi somente neste dia que o pagamento das cestas foi feito na íntegra ao Atacado Araújo. Assim, os alimentos da prefeitura estariam estocados há menos de um mês, e não “há meses”.
Há mais de 8 mil cestas básicas estocadas?
Também existem versões conflitantes para isso. De acordo com o termo de fiel depositário, pode-se inferir que, no momento da gravação do vídeo pelos vereadores, em 31 de outubro, o número em estoque seria de, no máximo, 7.800 cestas básicas. Segundo os vereadores Lelinho Lopes, Caren Castêncio, Flavius D’Ajulia e Marlon Monteiro, do PT, e Beatriz Souza (PSB), os números são outros. Na visita de 31 de outubro, teriam sido informados por uma funcionária do atacado que 2.309 cestas haviam sido retiradas, restando 8.491 a serem entregues. A informação consta em boletim de ocorrência registrado por Lelinho e Marlon, em 1º de novembro, na Delegacia da Polícia Federal de Bagé.
A segunda visita dos vereadores ao Atacado Araújo teria ocorrido, segundo o vereador Lelinho Lopes, em 6 de novembro. Desta vez, foram recebidos pelo dono do estabelecimento, Márcio Araújo, que confirmou em vídeo os mesmos números citados pelos vereadores. No mesmo dia, a prefeitura fez uma comunicação de fato ao Ministério Público Federal contra os vereadores por divulgação de “fake news”. No dia 3, já tinha feito a mesma comunicação à Polícia Federal. As denúncias dos vereadores e da prefeitura ainda estão em fase de análise preliminar pelo MPF, sem prazo para conclusão desta etapa.
Os itens filmados pelos vereadores no depósito são as cestas básicas da prefeitura?
Não é possível fazer essa afirmação. No vídeo, os vereadores afirmam mostrar cestas básicas montadas e estocadas pela prefeitura. Já o dono do atacado disse ao Estadão Verifica que constam ali itens de seu estoque particular e também outros para a confecção das cestas básicas da prefeitura.
“Os itens que filmaram são fardos, é fácil de ver no vídeo. Fardos de açúcar, fardos de feijão, fardos de sal. Aquilo ali é meu, são produtos do meu atacado, que tem 20 anos dentro de Bagé”, disse. “São produtos que eu vendo, que podem ser usados na cesta básica ou não. Tem alguns itens, dois ou três, que eu comprei especificamente para a cesta básica, porque eram itens de marcas com as quais eu não trabalhava e nem são produtos que comercializo, como leite em pó e bolacha. O resto não, são produtos que eu compro e vendo diariamente na minha empresa”.
As entregas das cestas estão atrasadas?
Em parte. De acordo com o MIDR, a prefeitura tem o prazo de 180 dias para concluir a entrega das 10.800 cestas básicas, a contar da publicação da Portaria de liberação dos recursos, em 7 de julho. Ou seja, o prazo final termina em 3 de janeiro de 2024.
Em relação à data-limite, portanto, não há atraso. Mas, quanto ao cronograma de entrega, sim. Isso porque, segundo o município, a distribuição das 10.800 cestas básicas seria feita em três levas. O fornecedor confirma a informação, acrescentando que seriam três remessas de 3.600 cada uma.
Ele disse ao Verifica que não chegou a ser estipulado um prazo específico para a conclusão da distribuição, mas que havia um intervalo previsto entre uma entrega e outra. “A previsão era de 30 a 40 dias cada remessa dessas para ser entregue. A primeira foi quase completa”, diz o responsável pelo atacado: “Aí deu todo esse problema que deu, duas chuvas de pedra, uma seguida da outra (as tempestades de granizo de agosto e setembro), e eles pararam”.
A prefeitura dá a mesma justificativa para o atraso. Segundo o órgão, a mesma equipe da Defesa Civil municipal responsável por entregar as cestas básicas teve que se mobilizar para captar e distribuir lonas e telhas para o reparo de 14 mil residências atingidas. “Com a situação controlada, a prefeitura solicitou ao atacado a confecção de novas cestas básicas para continuar a entrega da 2ª e 3ª etapas”, diz a prefeitura em nota.
O vereador Lelinho Lopes reconhece que o prazo final de 180 dias ainda não venceu, mas defende que, em uma situação de emergência, a entrega não deve ser estendida até o último dia. Se, à época do vídeo que gravaram, o número apontado pelos vereadores estiver correto – 2.309 cestas entregues –, isso significa que, em pouco mais de três meses, foram distribuídas apenas 21% das cestas básicas, e que a prefeitura tem agora menos de dois meses para entregar os quase 80% restantes.
Se o número correto for o apresentado pela prefeitura – 3 mil cestas entregues até 23 de outubro –, o percentual de cestas entregues sobe para 27%, mas ainda indica que a Defesa Civil de Bagé tem até 3 de janeiro do ano que vem – quando completam 180 dias da portaria que liberou o recurso – para distribuir 73% das cestas restantes.
“Se isso é da estiagem, é recurso emergencial e tem pressa, não quer dizer que tenha que entregar até o último dia dentro de 180 dias, porque quem tem fome, tem pressa. E precisa entregar com agilidade esses alimentos”, defende Lelinho Lopes.