O que estão compartilhando: que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem dois decretos assinados pelo criador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, para implantar lei marcial no Brasil e estabelecer estado de emergência sanitária nacional com a gripe aviária. Os decretos fariam parte de um plano para implementar uma vacina universal obrigatória. O primeiro passo teria sido dado com o envio de um navio chinês com milhares de aves contaminadas com uma nova cepa da gripe aviária. O próximo passo seria desligar a internet no Brasil.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Em vídeo com quase 10 minutos de duração, um homem comenta trechos de um áudio de uma mulher. A “conversa” entre os dois é um compilado de teorias conspiratórias variadas, que passam pela pandemia de covid-19, vacinação forçada, prisões de brasileiros em campos de detenção, confisco de bens, uma espécie de “reset humano” para ativação de cyber zumbis, além de divagações sobre atuação de militares e previsões bíblicas.
Todas as alegações são falsas ou enganosas, como explicam especialistas e órgãos oficiais ouvidos pelo Verifica. A tese de que pessoas estão sendo infectadas propositadamente com aves infectadas com uma nova cepa da gripe aviária, vindas em um navio chinês, por exemplo, não se sustenta – primeiro, porque é falso que um navio tenha chegado em Santos com as tais aves contaminadas. Segundo, porque ainda não há nenhum caso de gripe aviária em humanos no Brasil.
Saiba mais: O vídeo aqui investigado acumula quase 1 milhão de interações em apenas uma publicação no Facebook. Além disso, o conteúdo também foi publicado em pelo menos três contas diferentes no Kwai, somando mais 88 mil visualizações, e circula no TikTok, onde apenas uma publicação tem mais de 30 mil visualizações.
Nenhum destes perfis pertence ao homem que aparece nas imagens: ele se chama Esdras Prado e é conhecido nas redes por disseminar desinformação e conteúdos com teorias conspiratórias, como as do material investigado (leia mais abaixo).
Afirmações como as que ele faz no vídeo, que envolvem o questionamento de descobertas científicas e de decisões oficiais, têm, segundo especialistas, ganhado espaço ao redor do mundo nos últimos anos. O professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Camilo Aggio detalhou ao Verifica alguns pontos que são comuns nas teorias conspiratórias, como a contida no vídeo.
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“São supostas histórias que estariam sendo escondidas do interesse público, mantidas em segredo, de uma maneira maliciosa”, explicou. “É um mecanismo que não esclarece qual seria a questão de interesse público, mas que busca induzir de maneira discreta um determinado tipo de comportamento”.
Analisando especialmente o conteúdo do vídeo, Aggio desenhou o padrão enganoso utilizado pelo autor da postagem. “São teorias funcionais por dar um verniz de lógica para que as pessoas contestem informações oficiais e reforcem suas próprias crenças, e são essas crenças que formam a identidade de grupo dessas pessoas”.
Confira, abaixo, a checagem do Verifica para as principais teorias listadas pelo autor do vídeo:
Klaus Schwab deixou decretos assinados para Lula aplicar no Brasil, impondo lei marcial e estado de sítio?
É falso. O economista alemão e fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, esteve no Brasil em 17 de maio, quando se encontrou com o vice-presidente Geraldo Alckmin, que ocupava interinamente a Presidência durante a visita oficial de Lula ao Japão. Mas é falso que ele tenha deixado decretos assinados para que o presidente Lula os aplicasse no Brasil – de estado de sítio e para uma lei marcial. E, mesmo que tivesse, isso seria juridicamente impossível.
No Brasil, os decretos são de atribuição exclusiva dos chefes do Poder Executivo – presidente, governadores e prefeitos. Ou seja, mesmo que quisesse, Lula não poderia aplicar no País decretos assinados por outra pessoa, menos ainda por um economista estrangeiro. A Constituição Federal de 1988 determina, no artigo 21, que cabe única e exclusivamente à União decretar estado de sítio, estado de defesa ou intervenção federal, e o artigo 84 especifica que esta atribuição é exclusiva do presidente da República.
Também não seria possível que Lula adotasse lei marcial no País, já que o mecanismo sequer tem previsão legal no Brasil. A lei marcial, prevista em alguns países em situações excepcionais, “submete, durante o estado de guerra, todas as pessoas a regime especial, com a suspensão de garantias civis e políticas, asseguradas, em tempos normais, pelas leis constitucionais”.
No Brasil, a lei marcial não está na Constituição de 1988. A carta magna do País admite o estado de sítio e estado de defesa, sendo o primeiro aquele que mais se assemelha à lei marcial.
O estado de defesa pode ser decretado pelo presidente da República, depois de ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, “para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. Tem duração máxima de 30 dias e pode ser prorrogado pelo mesmo período.
Para decretar estado de sítio, o presidente da República precisa, além de ouvir os conselhos citados, pedir autorização ao Congresso Nacional. Segundo o artigo 137 da Constituição, o estado de sítio pode ser decretado em caso de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa” – com duração de 30 dias, prorrogável por igual período – ou em caso de “declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”, enquanto durar a guerra ou a agressão armada estrangeira.
Klaus Schwab tem sido alvo de teorias conspiratórias no Brasil, especialmente depois de visitar o País e se reunir com o vice-presidente, Geraldo Alckmin. O Verifica já desmentiu que o encontro fosse um plano de dominação global e também mostrou que é falso que o Fórum Econômico Mundial tenha ordenado a reescrita da Bíblia por meio de inteligência artificial.
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Apenas um Estado brasileiro não está em estado de emergência pela gripe aviária?
A informação compartilhada no vídeo é enganosa. Ao contrário do que diz o homem, os casos de gripe aviária em animais foram identificados em sete Estados do País. Apesar da confirmação dos casos, segundo o painel de dados oficial disponibilizado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), nenhum caso foi confirmado em aves que são vendidas para o consumo, as chamadas aves comerciais.
No total, foram confirmados 64 focos, sendo 62 deles em aves silvestres e dois em aves de subsistência. Os casos foram confirmados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia, e representam um total de 4% das 1.540 investigações realizadas. Apesar das confirmações, não há, de acordo com o Ministério da Saúde, nenhum registro de casos da doença em humanos no Brasil.
Outra fala enganosa citada na publicação diz respeito ao estado de emergência. Diferentemente do que afirma a postagem, a situação de emergência zoossanitária foi decretada no Brasil em 22 de maio por 180 dias. O decreto serve para prorrogar medidas preventivas contra o ingresso e a disseminação da influenza aviária em todo Brasil.
A China mandou um navio para a Baía de Santos com milhares de aves contaminadas com nova cepa da gripe aviária? Essas aves estão sendo distribuídas para todo o Brasil?
É falso. Segundo a postagem investigada, a China enviou ao Brasil, diretamente à Baía de Santos, um navio com milhares de aves contaminadas “com uma doença que ainda não tem”, insinuando que o país asiático enviou propositadamente ao Brasil aves infectadas com o objetivo de inserir uma nova doença no País. Em seguida, os autores do conteúdo dizem que as aves estariam contaminadas com uma nova cepa da gripe aviária.
A Santos Port Authority (SPA) garantiu ao Estadão Verifica que nenhuma carga viva chegou ao local no período citado no vídeo. A diretoria de comunicação da Prefeitura de Santos também desmentiu a alegação do vídeo. “Santos não registrou casos de gripe aviária em humanos e não houve nenhuma notificação, por parte do Estado, de aves vindas da China com gripe aviária no Município”, diz nota.
Além da negativa das autoridades oficiais, não há qualquer notícia em canais confiáveis sobre a chegada de “milhares de aves” infectadas vindas da China. No último dia 11 de julho, o jornal A Tribuna publicou que duas aves contaminadas pela gripe aviária foram encontradas na Baixada Santista no final de junho – uma em Santos e outra no Guarujá.
Os dois casos acometeram aves migratórias, uma Thalasseus maximus, conhecida como trinta-réis-real, e uma Thalasseus acuflavidus, conhecida como trinta-réis-de-bando, e não animais supostamente vindos em navios. As duas estavam contaminadas com o vírus H5N1, o mesmo identificado em outras aves contaminadas no Brasil –, ou seja, não se trata de uma cepa desconhecida.
Existe um plano para desligar a internet, levando as pessoas a protestarem nas ruas, se contaminarem com a gripe aviária e, assim, serem obrigadas a tomar uma vacina universal?
Vamos por partes. Primeiro, é preciso entender se é possível desligar a internet. A resposta para esta pergunta é que não chega a ser impossível desligar a internet, ao menos dentro de um limite geográfico específico, mas isso seria difícil em todo o Brasil, senão improvável, por algumas razões. O Estadão Verifica ouviu o advogado e consultor especializado em internet Omar Kaminski, que explicou que a internet é “suficientemente descentralizada para, caso a informação encontre uma interrupção, busque outros caminhos de continuidade”.
Ele continua: “Ao meu ver não há como ‘desligar’ a Internet, ou pelo menos não há notícias até o momento de situações em que isto tenha acontecido e que não estejam relacionadas a motivações autoritárias”. Kaminski afirma não ver como um desligamento seria legalmente possível, a não ser em situações drásticas como necessidade de estado de sítio, guerra nuclear ou ataque terrorista, e que “poderia, inclusive, haver a recusa de cumprimento de uma ordem judicial manifestamente ilegal, como desse porte: paralisar as comunicações de dados em determinado país ou região”.
Do ponto de vista prático, avalia o especialista, qualquer iniciativa dentro dos parâmetros legais de “desligar” a internet muito provavelmente passaria por uma tentativa de paralisar os provedores de backbone, ou provedores de infraestrutura, como acontece em alguns bloqueios de conteúdo, mas em escala muito menor.
Mas, por mais que a ideia pareça com um filme de ação – compara Omar Kaminski – um desligamento não seria de todo impossível. “Existem pontos nevrálgicos que podem ser sabotados, cabos submarinos rompidos”, observa. Mas, cabe alertar, são muitos cabos, como mostra este mapa produzido pelo Submarine Cable Map, com dados atualizados até 23 de junho de 2023.
E se isso acontecesse, as pessoas seriam infectadas nas ruas durante protestos contra a derrubada da internet?
É falso, pelo menos por enquanto. A teoria disseminada por este trecho do vídeo é que, após espalhar aves contaminadas pelo Brasil, o governo, junto com Klaus Schwab, desligaria a internet, forçando as pessoas a saírem de casa para protestar e, assim, elas se infectaram com a gripe aviária devido às aglomerações. O problema desta teoria é que a gripe aviária normalmente não é transmitida de pessoa para pessoa, a menos que haja um número grande de animais doentes e que aconteça uma mutação no vírus, como já explicaram especialistas ao Estadão.
O que se sabe atualmente sobre a gripe aviária é que a transmissão para humanos ocorre por meio do contato com secreções, sangue, fezes e até com o tecido da ave infectada. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que as infecções em humanos são menos frequentes do que nos animais e que há um risco de casos esporádicos em pessoas.
A transmissão de pessoa para pessoa não está descartada, nem uma pandemia da doença é impossível de ocorrer, mas a OMS destaca que, mesmo quando há esse tipo de transmissão, o vírus não se espalha facilmente entre humanos. Uma das razões é o fato de os humanos não carregarem os genes receptores do vírus, diferente do que acontece com as aves.
Existe uma vacina universal?
De acordo com o autor do vídeo, faz parte dos planos de controle da população a aplicação de uma “vacina universal”, cuja obrigatoriedade virá por meio de controle militar. Com essa vacina, as pessoas receberiam uma estampa de identificação digital subcutânea, na região do pulso, o que seria usado como uma espécie de passaporte digital, também obrigatório, imposto pela OMS. Isso não é verdade: a OMS divulgou a criação de um passaporte digital de saúde, mas não disse que ele será obrigatório.
Além disso, segundo especialistas, a criação de uma vacina universal não é viável, já que as vacinas são criadas para combater vírus específicos. O que pode acontecer é a criação de bases para combater doenças de um mesmo grupo. É o que acontece com a vacina contra a gripe, como explica Sérgio Zanetta, professor de Epidemiologia e Saúde Pública no Centro Universitário São Camilo.
“Nesses casos, existe uma espécie de molde para a vacina. Como se existisse uma corrida do vírus que vai sofrendo mutações para continuar resistindo e escapando das vacinas e da ciência para atualizá-las”, disse. “Justamente por serem feitas a partir de estruturas muito específicas, não existe qualquer base científica para uma vacina universal, que seja capaz de atuar contra todas as doenças”.
O médico explicou ainda que, diferentemente do que diz a postagem, não há como uma vacina servir para implementar qualquer tipo de rastreamento humano ou identificação. Isto porque a vacina é totalmente metabolizada pelo organismo e não fica de forma permanente no corpo. “O que a vacina faz é dar uma espécie de aula ao sistema imunológico para que, se um vírus como aquele aparecer, sejam produzidos os anticorpos. Se deixa uma memória”, disse o professor.
A China mandou 140 mil soldados para treinar os militares brasileiros a vacinar pessoas à força?
É falso. Não há qualquer registro de que a China tenha enviado 140 mil soldados ao Brasil e que eles estejam atuando no País para treinar militares brasileiros a vacinar pessoas à força. Segundo o vídeo, o envio teria ocorrido no mês de junho, o que leva a crer que a publicação tenha feito uma distorção esdrúxula de uma visita oficial de militares chineses a Brasília no dia 1º de junho deste ano.
A delegação que desembarcou em Brasília e visitou o Quartel-General do Exército era formada por 18 militares das Forças Armadas da China, Em nota, o Exército disse que a informação do vídeo não é verdadeira e que a visita dos militares chineses em junho “fez parte da viagem de estudos estratégicos e cumpriu um programa de intercâmbio militar, assim como ocorre com as demais nações amigas”. O Estadão noticiou a visita e o contexto dela, em meio às desconfianças dos Estados Unidos.
Além de não ter recebido a visita e o treinamento de 140 mil militares chineses, o Exército Brasileiro também negou que tenha planos de atuar em campanhas de vacinação forçada, e disse que “não há acordo de cooperação relacionado a controle de pandemia ou aplicação de vacinas”.
No Brasil, não há legislação que permita a vacinação forçada – mesmo no caso da covid-19, quando o STF considerou constitucional a vacinação compulsória, em 2020, não se permitiu que a imunização fosse feita à força, e sim que o Estado impusesse medidas restritivas previstas em lei aos cidadãos que se recusem a se vacinar.
Quem é o autor do vídeo?
O homem que aparece no vídeo se chama Esdras Prado, como mencionado acima, ele é conhecido nas redes por disseminar teorias conspiratórias e desinformação sobre política. Em 2019, ele foi denunciado à polícia por um site de Cuiabá (MT), o Livre, depois de usar o layout de uma matéria do veículo para espalhar uma mentira sobre o Supremo Tribunal Federal em um vídeo no YouTube.
O nome de Esdras ainda aparece no inquérito 4.781, do STF, que investiga fake news e ameaças à Suprema Corte e aos seus ministros. Não há detalhes sobre a investigação, apenas a informação de que o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, encaminhou para o inquérito 4.828 – que apura manifestações antidemocrática desde 2020 – a cópia de um vídeo com “diversas informações falsas acerca da atuação do Supremo Tribunal Federal” e um ofício com declarações de Esdras Prado Reck à Polícia Federal na Bahia.
O Verifica não conseguiu localizar nenhum canal oficial do youtuber, apenas vídeos publicados por outras contas sobre a desativação das redes sociais dele. Por isso, não foi possível questioná-lo sobre o vídeo. No ano passado, mais de um canal publicou um conteúdo em que Esdras diz que irá se ausentar das redes sociais, enquanto vídeos de 2019 e 2020 pediam doações para ele, depois de o canal ser desativado.