É falso que o escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881) tenha afirmado que no futuro as "pessoas inteligentes" vão ser impedidas de fazer "qualquer reflexão para não ofender os imbecis". Não há registro da citação em nenhuma obra conhecida do autor. A frase tem sido compartilhada em páginas de grupos conservadores no Facebook e no Instagram.
Uma dessas publicações superou 71 mil compartilhamentos antes de ser apagada nesta semana. Nos comentários, usuários reclamavam do chamado "politicamente correto" e de remoção de conteúdo nas redes sociais. O trecho atribuído a Dostoievski é o seguinte: "a tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão impedidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis".
O Estadão Verifica conversou com Flávio Ricardo Vassoler, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Literatura Russa pela Northwestern University. O pesquisador disse que a citação não existe na obra de Dostoievksi. Consultamos ainda o Centro de Estudos Euro-Asiáticos e Russos da Universidade de Tartu, na Estônia. A instituição informou que não encontrou a citação na obra do escritor.
O jornal português Observador rastreou a origem da frase, que teria começado a circular em sites russos e sem nenhuma menção ao autor. Chegando na rede social Reddit, foi traduzida para o inglês e então se espalhou pelo mundo. Inicialmente o trecho era acompanhado de uma imagem do filme russo "Heart of a Dog / ??????? ??????" (1988) -- em que também não há menção à citação verificada.
Dostoievski criticou grupos de esquerda em 'Os Demônios'
Vassoler ressaltou que, embora a citação não exista de forma exata na obra de Dostoeivski, há exposição de pensamentos similares em Os Demônios, livro publicado em 1872. Segundo ele, a frase "em parte se comunica com o romance Os Demônios, mas está muito fora de contexto, desprovida da substância do romance".
De acordo com o acadêmico, Dostoievski escreveu o livro depois que participou de grupos revolucionários e, como consequência, foi condenado à morte, com pena revertida para anos de trabalho forçado. Assim, o autor passaria da esquerda para uma atuação "bem mais conservadora". Vassoler afirma que Dostoievski começou a acreditar que os grupos dos quais participou exerceriam uma violência que iria se alimentar de si mesma e que não conseguiriam transformar a sociedade, principalmente nos costumes.
Um dos personagens do livro, o intelectual Chigalióv, chega a defender a guerra por "razões nobres". Ele desenvolve uma visão de mundo chamada chigalovismo, em que a igualdade está acima de valores individuais. Nesse contexto, o romance denuncia o que Vassoler chama de "enaltecimento da imbecilidade".
"Os valores são rebaixados de tal maneira que a inteligência e a propensão ao desenvolvimento pessoal são considerados elitistas -- e não a concentração de renda ou a concentração de poder no estado. Então chegaria ao ponto de um anti-intelectualismo e de um imbecilismo", afirma.
Nesse sentido, há um trecho do romance em que essa ideia é exposta. É possível consultá-lo na página 407 do livro publicado pela Editora 34, traduzido do russo por Paulo Bezerra.
"O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas -- eis o chigaliovismo. Ah, ah, ah, está achando estranho? Sou a favor do chigaliovismo!".
Vassoler opina que tudo o que é dito no romance "é uma crítica aos revolucionários de esquerda, mas que também serve para o capitalismo atual".
Fiodor Mikháilovitch Dostoievski nasceu em Moscou em 1821. Seu primeiro romance foi Gente Pobre, em 1846, seguido por O Duplo (1846) e Noites brancas (1847), entre outros. Depois de ser preso e condenado à morte pelo regime czarista em 1849, teve sua pena comutada para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, experiência retratada no livro Escritos da Casa Morta, publicado em 1860.
Escreveu obras clássicas, que ficaram conhecidas em todo o mundo, como Memórias do Subsolo (1864), Um jogador (1867), O eterno marido (1870), Crime e castigo (1866), O idiota (1869), Os demônios (1872), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamázov (1880). Tido como um dos maiores autores da história, Dostoievski morreu em São Petersburgo, em 1881. Na última quinta-feira, 11, celebrou-se o bicentenário do nascimento do autor.
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